Francisco Perna Filho - Poema


Geografia


Mando o meu endereço no envelope,
não quero que me respondas,
apenas que me visites.
Certeza  eu não tenho a respeito do rio,
das corredeiras
e do desbotado silêncio de suas lendas.
Mas necessito que venhas,
para eu entender de vez a tua geografia.

Imagem retirada da Internet: mulher

Luiz de Miranda - Poema

Paolo Pagani: Sediaci ženský akt (výrez)
By Paolo Pagani: Mulher nua sentada




Liricamente




O amor na distância
sempre trai
fico sem alicerce
nesse início de abandono
descalço na rua de dentro
do meu próprio amor
que é sabido
mas surpreende
iluminando-me

Amor, espécie de felicidade
passageiro do verão de maio
amor, silêncio de música
assemelhado à cor ao cheiro
às linhas do teu corpo nu


In.Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Instituto Estadual do Livro, 1995, p. 275.

Renato Russo - Poema



Tempo perdido


Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo.


Todos os dias antes de dormir,
Lembro e esqueço como foi o dia:
"Sempre em frente,
Não temos tempo a perder".


Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem.


Veja o sol dessa manhã tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos.
Então me abraça forte e me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.


Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora.
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu.


Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.


Imagem retirada da Internet: Renato Russo

Jacques Prévert - Poema





PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO



                                                                            Para Elsa Henriquez


Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insectos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.


de “Paroles” (1945)


Tradução de Silviano Santiago




In. Poemas de Jacques Prévert,  Rio de Janeiro: Nova Fronteira - 2000.
Imagem retirada da Internet: Revista Agulha 

Jacques Prévert - Poema


O combate com o anjo



Não vás
Tudo já foi combinado
A luta é fraudulenta
E quando ele aparecer no ringue
Nimbado de relâmpagos de magnésio
Eles entoarão aos berros o TEU DEUM
E antes que te levantes da cadeira
Tocarão os sinos sem parar
Jogarão no teu rosto
A esponja sagrada
E não terás tempo de voar-lhe nas penas
Cairão sobre ti
E ele te golpeará no baixo-ventre
Desabarás
Os braços estupidamente em cruz
Na serragem
E nunca mais poderás fazer amor.


Tradução de Dora Ferreira da Silva



Imagem retirada da Internet: Jacques Prévert

J. Guillén - Poema


Uma Porta



Entreaberta, uma porta.
A quem busca essa luz?
Fluente o claro-escuro.


        Transparente e foge
- Para quem o silêncio -
Um âmbito de clausura.

                       Chama, talvez promete
                  A incógnita. Vislumbres.
                  Pra que sol tal repouso?

        E o trajeto propõe,
Dirige por um ar
Vazio e persuasivo.

         Interior. As paredes
Enquadram bem a incógnita.
Aqui? Nogal, cristal.

                         Um silêncio se isola.
                      Familiar, muito urbano?
                      Cheira a uma rosa diária.

           Porta fechada: longe.
Esta luz é destino?
Então, é face a face...


Tradução de  Dora Ferreira da Silva


Imagem retirada da Internet: Guillén

Allen Ginsberg - Poema





Arte é ilusão, pois eu não ajo


Fico ou Parto – com constante alegria
Meus pensamentos, embora céticos, são sagrados
Santa prece para o conhecimento ou puro fato.

Então enceno a esperança de que posso criar
Um mundo vivo em torno de meus olhos mortais
Um triste paraíso é o que imito
E anjos caídos cujas asas perdidas são suspiros.

Neste estado não mundano em que me movimento
Minha Fé e Esperança são diabólica moeda corrente
Em mundos falsificados, cunho pequenos donativos
Em torno de mim, e troco minha alma por amor.


Tradução Cláudio Willer



Imagem retirada da Internet: Allen Ginsberg

François Villon - Poema




BALADA DA GORDA MARGOT





Se amo e sirvo a dama de bom grado,
Pensareis que sou vil e cabeçudo?
Ela faz tudo que é do meu agrado,
Por seu amor eu cinjo adaga e escudo.
Se vem cliente, a um trago mais graúdo
De vinho me recolho, a um canto perto.
De água, pão, fruta e queijo faço oferta.
“Bene stat” – eu digo a quem mais vaza –
“E volte sempre se embaixo lhe aperta,
Aqui neste bordel que é a nossa casa.”

Mas ocorre que as coisas ficam pretas
Quando sem prata vem dormir Margot.
Mal posso vê-la, de ódio às suas tretas.
Tomo cinto e jaqueta, e o que mais for.
E juro que me servem de penhor.
Ela, punhos nas ancas “Anticristo!”
Grita e jura por Nosso Senhor Jesus Cristo,
Que não dará. Com um pau lhe quebro as asas
E em seu nariz lhe gravo o meu escrito
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Depois vem paz e solta um peido bruto,
Venenoso qual sapo dendrobata.
Logo me acerta, rindo, o cocuruto:
“Vem vem, neném”, nas coxas me arrebata.
E dormimos qual saco de batatas.
Pela manhã quando lhe ronca o ventre,
Monta em mi, antes que se gaste dentro
Seu fruto. Gemo – e em cinza faz-se a brasa:
De tanto futucar, eu me desventro,
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido.
Igual às marafonas, sou servido.
Lá, mau gato a mau rato, bem medido –
Lado a lado – se sabe a maior rasa?
Onde lama é amor, amor é lama.
Nem quer-se a honra ou ela nos reclama
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Tradução de Sebastião Uchoa Leite





In. François Villon/Poesia. Edusp, 2000
Imagempintura de Fernando Botero, pintor e escultor colombiano.

François Villon - Poema



Balada dos Enforcados




Irmãos humanos que depois de nós viveis.
Não tenhais duro contra nós o coração.
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis.
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada.
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Chamamo-vos irmãos : disso não desdenheis.
Apesar de a justiça a nossa execução
Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis
Que nem todos possuem juízo firme e são.
Exculpai-nos – que mortos, mortos, nos sabeis -
Com o filho de Maria, a nunca profanada;
A sua graça, para nós, não finde em nada,
No inferno não nos venha o raio despenhar.
Ninguém nos atormente, a vida já acabada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;
O sol nos ressequiu até à negridão;
Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! -,
Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.
Em tempo algum tranqüilos nos contempiareis:
Para cá, para lá, o vento de virada
A seu talante leva-nos , sem dar pousada;
Mais que a dedal, picam-nos pássaros no ar.
Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Príncipe bom Jesus, de universal mandar,
Guardai-nos, ou o infemo nos arrecada:
Lá nada temos a fazer, nada a pagar.
Homens, aqui a zombaria é inadequada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


In.Poemas de François Villon. São Paulo: Art Editora, 1986.





João Bonifácio - Ensaio Crítico


 


Raymond Radiguet: o regresso do mais odiado




A vida de Raymond Radiguet foram 20 anos e o tifo a ceifá-lo depois de um jorro de mulheres, escândalo, ódio popular, escrita fria e as inevitáveis comparações com Rimbaud. O seu romance de estreia, "Com o Diabo No Corpo", escrito em idade precoce, volta a estar entre nós.

Foi-se embora com a mesma pressa com que surgiu e enquanto cá esteve nunca abrandou, nunca olhou para trás ou sequer para os lados: escreveu, escreveu e, consta, viveu com a ferocidade dos audazes ou dos escolhidos.

E depois já lá não estava.

Deixou um rasto de escândalo, obras por publicar, amigos fraternais, ódios extremos e amores, muitos amores vividos com celeridade e sangue quente. Com coração frio, dizia Cocteau - seu protector e, constam as más línguas, amante -, mas com sangue quente. Deixou, também, um livro de poesia publicado ainda em vida, bem como um romance, que espoletou iras e o tornou famoso, "Le Diable au Corps" - que finalmente pode ser lido em português, graças à tradução que a Relógio D'Água agora publica. Na sua arca póstuma, pequena em termos pessoanos, jazia um romance inédito mas acabado, "Le Bal du Comte D'Orgel" e mais alguma poesia.

Ainda que escassos como corpo literário, esses dois romances foram mais do que suficientes para inscrever o nome de Raymond Radiguet no cânone ocidental. Chamaram-lhe "o novo Rimbaud", e de entre todos os candidatos ao lugar de novo Rimbaud talvez ninguém tenha desempenhado o papel tão bem. Mas quem não faz os seus juízos depender das suas inseguranças intelectuais, e portanto não submete a sua ordem racional à frigidez marmórea do cânone, pode sempre argumentar que Rimbaud não foi mais do que um adolescente talentoso com propensão para o histrionismo, ao passo que Radiguet - todo ele drama - tinha um raro poder de análise da luta travada entre o Superego e o Id, para usarmos os termos canónicos de Freud. A prova encontra-se não na poesia, mas nas escassas cento e poucas páginas de "Com o Diabo No Corpo".´

Ordem para morrer

"Ouve-me", disse Radiguet a Cocteau numa noite de Dezembro de 1923, "tenho uma coisa terrível a dizer-te: dentro de três noites serei morto por soldados de Deus".

Isto não deve ser lido como um dos típicos mitos românticos que povoam a literatura, tornando-a em pobre circo desses mistérios simplórios a que se reduzem as obras com recurso a adjectivos como "génio" ou " alma ". Isto era o tifo, que apanhou Radiguet aos 20 anos, quando ele já era um romancista conhecido - e rico - à conta de "Com o Diabo No Corpo". Os soldados de Deus vieram pouco depois, a 12 de Dezembro: segundo a descrição de Cocteau, Radiguet disse "A ordem foi dada" e depois acrescentou "Eu ouvi a ordem".

Após mais duas ou três frases sem sentido, Radiguet estava morto. No entanto, em escassíssimo tempo ele tinha conseguido não só atormentar a França que gostava de decoro como também uma boa parte dos indecorosos - entre outros, Hemingway não o gramava nem a tiro, acusando-o de usar o corpo para ascender no reino da literatura. Ao que parece, Radiguet mantinha relações homossexuais com este ou aquele escritor (Cocteau à cabeça) enquanto passeava o seu corpo jovem mas experimentado por todas as raparigas que lhe aparecessem à frente.

Não era uma criança frágil perante o mundo, mas também é inconcebível que fosse um cínico (como à altura lhe chamaram, muito por causa do tom do narrador de "Com o Diabo no Corpo"): a experiência de viver nitidamente espantava-o e tudo em que tocou, tudo o que desejou, sentiu ou pensou, foi alvo de análise. Acontece que Radiguet, tendo o sangue quente (vivendo depressa e muito, ou deixando um cadáver bonito), pensava frio: era um analista sem piedade da experiência humana, retratando sem pudores cada oscilação de humor, cada indício de crueldade ou egoísmo que subjaz às acções de cada indivíduo.

Acerca da sua morte, Cocteau escreveu: "Não acusem o destino. Não falem em injustiça". Estava convencido de que Radiguet pertencia àquela raça que chega, vê, vence e se esvai, num processo de combustão que faz de um dado homem o seu próprio combustível. Há outra razão - menos sentimental - para Cocteau desejar que não se fale em injustiça. É que, escreveu, o coração de Radiguet era "duro e, como um diamante, impenetrável a qualquer toque". O coração de Radiguet precisava de "fogo e outros diamantes" e "permanecia indiferente a tudo o resto".

No entanto, nada na sua genealogia previa tamanhos talentos, tamanha indiferença glaciar perante esse mundo que atravessou a velocidade estrepitosa. Ou pelo menos, nada que saibamos, já que o seu crescimento permanece envolvido em mistério.

Radiguet nasceu em 1903, em in Saint-Maur-des-Fossés, uma terreola a cerca de dez quilómetros de Paris. Pouco mais se conhece da sua infância além da ascendência paterna: era filho de um caricaturista não propriamente célebre. Sabe-se que desde cedo Radiguet escrevia e desenhava, mas não consta que o seu talento para esta última disciplina fosse mais do que razoável.

Era o mais velho de sete irmãos, facto que surge (com maior ou menor precisão no número de irmãos) em "Com o Diabo No Corpo". Não é a única coincidência biográfica entre a obra e a vida. Em "Com o Diabo No Corpo", que, para todos os efeitos, pode ser visto com um romance de iniciação, o protagonista - um adolescente com tremenda consciência de si, que relata os factos na primeira pessoa - não abandona os estudos, mas mesmo assim está livre da escola (à excepção de um breve período): por uma série de razões estuda em casa e tem muito tempo livre para se iniciar nas artes do amor, isto pela simples razão de ser um jovem sobredotado que consegue estudar em quatro horas o que leva aos outros dois dias.

O herdeiro de Rimbaud

Na prática, na vida, corria o ano de 1918 e Radiguet mudou-se para Paris, onde começou de imediato a colaborar com jornais e revistas. Fez parte de círculos artísticos ligados à pintura: Picasso contava-se entre os amigos e Modigliani pintou-o de forma comovente: é no traço elíptico de Modigliani que nos apercebemo da beleza de Radiguet.

Obviamente que, sendo um homem de letras, a poesia também fazia parte da sua dieta e do seu círculo social. Escreveu na revista "Sic", onde pontificavam os surrealistas (Breton e Aragon à cabeça), e pouco depois editava o seu primeiro livro de poesia, "Les Joues En Feu", que saiu em 1920 mas estava acabado desde uns precoces 15 anos. O facto de o livro não lhe ter valido de imediato o epíteto de "génio" tê-lo-á enfurecido, e terá sido aí que nasceram as comparações com Rimbaud: diziam-lhe que até o amante de Verlaine tinha esperado até aos 17 anos para escrever uma obra-prima. No entanto, é incerto que Radiguet tivesse mesmo os poemas escritos aos 15, bem como incerta é a sua reacção (há registos contraditórios).

Aos 20, Radiguet isola-se numa pequena terra perto de Toulon e escreve "Com o Diabo No Corpo". Hoje pensa-se que Cocteau, que por esta altura já era o seu mentor, terá tido um papel essencial na edição do texto. Hoje sabe-se também que por esta altura já abundavam os rumores de que a relação se estendia da mente para o corpo, ao mesmo tempo que se acumulavam alusões a uma certa promiscuidade de Radiguet com o belo sexo e estudos posteriores indiciam que o grau de autobiografia das suas obras ficcionais é maior do que se imaginava - pensa-se mesmo que a famosa cena de "Com o Diabo No Corpo" em que o jovem anti-herói arrasta, por capricho, a sua amante grávida pelas ruas de Paris à chuva seja verdadeira.

Igualmente se diz que "Le Bal du Comte D'Orgel" tem traços similares com a biografia de Radiguet, o que simultaneamente aponta para uma vida guiada pelos prazeres mas possuída por um grau de auto-análise quase cruel. Entre um e outro romance, Radiguet escreveu mais um livro de poemas, "Devoirs de Vacances", e uma peça de teatro em dois actos, "Les Pélicans".

O amor talvez tenha sido o seu grande tema, mas também a indiferença pelas "grandes questões": "Com o Diabo No Corpo" passa-se na Grande Guerra mas não há sinais de demasiada preocupação com o assunto. O narrador faz, aliás, questão de dizer que esse foi o melhor tempo da sua vida, sendo esta uma das razões para o escândalo que o livro causou: um adolescente na cama com a esposa de um combatente, demonstrando uma total indiferença pelos destinos da França, era de mais para os franceses.

Com ou sem guerra, a obra de Radiguet sustém-se no que tem de mais agudo: a auscultação de cada sentimento, o questionar deste, o assumir dos egoísmos e das pulsões, a análise de cada acto como possível jogo mental.

Ao cruel rapaz que com pouca obra inscreveu o seu nome no cânone fizeram o pior que se pode fazer a um corpo: pegaram no seu cadáver e puseram-lhe outra cara. Disseram que era o grande herdeiro de Rimbaud. O tempo encarregou-se de fazer Radiguet desaparecer de todos os mapas, excepto, claro, do mapa da literatura francesa. A Relógio d'Água encarregou-se agora de fazer com que ele voltasse às nossas prateleiras. Esqueçam-se as comparações e o cânone, volte-se às palavras secas, calculadas, cheias de emoção medida, senhoras e presas de uma teia mental que intriga até à última página.

Saudemos portanto o regresso daquele que sabia demasiado e passou demasiado rápido.


Texto originalmente publicado na Revista Eletrônica Portuguesa Ipsilon a propósito do relançamento do livro Com o Diabo no Corpo.

Imagem retirada da Internet: Raymond Radiguet

Marinalva Barros - Poema


POEMA DE AMOR E RIO VI



As digitais de um rio
Tatuaram meu espírito
Sou por isso matizada,
Povoada de estações

Afeita a cidades antigas
E ruas estreitas.
Alinhavada de correntezas. 

Catulo da Paixão Cearense - Poema

O CANGACEIRO




   EU me chamo Sivirino
     Sapiranga, sim, sinhô.
     Sou fio de Zé Fôstino,
     que era fio d’um tropêro,
     Frô dos Santo, meu avô.

Sou naturá de Umbuzêro,
da Paraíba do Norte,
a terra das patativa
que eu amo cum todo o amô
de valente cangacêro!...
apois cangacêro eu sou.

     Não paga a pena, seu moço,
     eu dizê pruquê rézão
     já varei cum a parnaíba
     mais de vinte coração!

Minha históra é atrapaiada,
é toda cheia de ispinho,
e, cumo lá diz o outro,
seu moço, as água passada
já não move mais muinho.

Óie, moço!... Não há munío,
distante um casa de légua
de S. Migué de Traipú,
eu fisguei um cavaiêro,
o fio d’um fazendêro,
cumo quem fisga um tatu.

Esse garoto e canáia
um dia róbou de casa
a neta de um comboêro,
que era um hôme tão bondoso,
e despois, abandonou
aquele anjo fermoso,
cumo se fosse, seu moço,
um cachorro, um cão leproso!!!

Prú té matado o canáia,
a justicia que divía
me té dado uma medáia,
me chama de criminoso!!

               *

     Quando meu pae, que Deus tenha
     no Santo Reno da Glóra,
     ao pé d’um monte de lenha,
     mazômbo, os óio fechou;
     a fia que mais amava
     nestes braço me intregou.

Inda me alembro, seu moço!

Abraçado no pescoço
do véio, que se finava,
eu chorava, eu saluçava,
garrado cum minha érmã,
cumo à boquinha da noite,
chora e geme uma acauã!!

De noite, fazendo quarto,
óiando o pobre do véio,
taliquá, má cumparando,
 — São Pedro cum as barba branca,
 cum os seus cabelo branquinho,
 drumindo o sono da morte
 n’um véio banco de pinho...
 chorava, cumo, sintido,
 o pásso que foi firido,
 cum um tiro, dento do ninho!!

E quando, ao rompe da ôróra,
o véio foi carregado
n’uma rede, istrada à fora’!...
Quando ele foi sipurtado
prú báxo d’uns cajuêro,
ali, naquele momento,
eu fiz este juramento:
me torna n’um cangacêro.

               *

Dêxei meu pae sipurtado,
vortei lanhado de pena,
chorando a sorte tirana!

Mas porém, quando cheguei,
e intrei na minha choupana,
a minha mãe incontrei
cum o coração mais lanhado,
e mais duente que o meu!!

Prá dizê tudo, seu moço,
n’um domingo amarfadado
aquela santa morreu!!!

A morte era naturá!
Despois da morte do véio,
não poude mais suportá!

               *

Meu pae não perdeu a vida
pulos ano!! Não, Sinhô!

Morreu prú via d’um hôme
que era rico e, prú capricho,
uns mulambinho de terra
do pobre véio róbou!

     O jaburu quiz um dia
     que meu pae jurasse farso
     n’uma questã que ele teve
     cum um honrado lavradô.

O lavradô era pobre...

Meu pae, que era um hôme nobre
bateu o pé!... Não jurou.
A Justicia que fazia
tudo o que o hôme quiria,
im mêno de duas hora,
butou o véio prá fora!...
E tudo ansim se acabou!!

Despois que eu vim pró cangaço,
há munto que o tá ricaço
cumigo as conta ajustou!!

               *

óie, moço: vêje lá
se eu tenho rêzão
     ou não.

               *

Um dia, eu táva banzando,
deitado n’uma toucêra
de verde sanacurí,
quando vejo vim, d’ali,
o Antônio dos Picapáu,
amuntado n’um quartáu.


O coração piquinino
sartava, cumo um cabrito!

Vendo o Antônio que era eu,
gritou de lá: “Sirvirino!...
“A tua érmã!...“ Dei um grito,
que o cabôco istremeceu!

Apois, quando eu disse: — “Fala”
ele gritou lá da istrada:
 “Foi trazontônte róbada!!..”
E alevantando a çoitêra,
deu de ispóra no quartáu,
e se assumiu entre as fóia
de duas guapurinhêra!!

               *

Três dia andei a percúra,
atraz do tarapantão,
(o fio d’um figurão...)
mato abáxo, mato arriba,
e só discansei, seu moço,
quando eu tirei o pirão
do buxo daquele cão,
cum a ponta da parnaíba.

               *

 Gibão e chapéu de côro
 n’uma orêia derribado;
 um guarda-peito de onça
 no peito sarapintado;
 cravinóte sêmpe iscravo
 dos bom, cumo vassuncê,
 aqui tá um cangacêro,
 mas um cangacêro honrado,
 taliquá, cumo me vê.

Fonte: ebooksbrasil.org
Imagem retirada da Internet: cangaceiro

Juan Ramón Jiménez - Poema




PAVILHÃO


Muros altos de teu corpo.
Não havia entrada em teu horto.

(Que onda de asas ascendia!
Oh o que ali se passaria!)

Céu claro ou turvo, que importa?
Não havia entrada em tua glória.

(Que aroma às vezes subia!
Oh em teus vergéis que haveria?)

Tornaste a ficar fechada.
Não havia em tua alma entrada



Imagem retirada da Internet: Nu

Oliverio Girondo - Poema



No soy quien escucha...

No soy quien escucha
ese trote llovido que atraviesa mis venas.

No soy quien se pasa la lengua entre los labios,
al sentir que la boca se me llena de arena.

No soy quien espera,
enredado en mis nervios,
que las horas me acerquen el alivio del sueño,
ni el que está con mis manos, de yeso enloquecido,
mirando, entre mis huesos, las áridas paredes.

No soy yo quien escribe estas palabras huérfanas.

Imagem retirada da Internet: livro

Oliverio Girondo - Poema



No se me importa un pito que las mujeres...





No se me importa un pito que las mujeres
tengan los senos como magnolias o como pasas de higo;
un cutis de durazno o de papel de lija.
Le doy una importancia igual a cero,
al hecho de que amanezcan con un aliento afrodisíaco
o con un aliento insecticida.
Soy perfectamente capaz de sorportarles
una nariz que sacaría el primer premio
en una exposición de zanahorias;
¡pero eso sí! -y en esto soy irreductible- no les perdono,
bajo ningún pretexto, que no sepan volar.
Si no saben volar ¡pierden el tiempo las que pretendan seducirme!
Ésta fue -y no otra- la razón de que me enamorase,
tan locamente, de María Luisa.
¿Qué me importaban sus labios por entregas y sus encelos sulfurosos?
¿Qué me importaban sus extremidades de palmípedo
y sus miradas de pronóstico reservado?
¡María Luisa era una verdadera pluma!
Desde el amanecer volaba del dormitorio a la cocina,
volaba del comedor a la despensa.
Volando me preparaba el baño, la camisa.
Volando realizaba sus compras, sus quehaceres...
¡Con qué impaciencia yo esperaba que volviese, volando,
de algún paseo por los alrededores!
Allí lejos, perdido entre las nubes, un puntito rosado.
"¡María Luisa! ¡María Luisa!"... y a los pocos segundos,
ya me abrazaba con sus piernas de pluma,
para llevarme, volando, a cualquier parte.
Durante kilómetros de silencio planeábamos una caricia
que nos aproximaba al paraíso;
durante horas enteras nos anidábamos en una nube,
como dos ángeles, y de repente,
en tirabuzón, en hoja muerta,
el aterrizaje forzoso de un espasmo.
¡Qué delicia la de tener una mujer tan ligera...,
aunque nos haga ver, de vez en cuando, las estrellas!
¡Que voluptuosidad la de pasarse los días entre las nubes...
la de pasarse las noches de un solo vuelo!
Después de conocer una mujer etérea,
¿puede brindarnos alguna clase de atractivos una mujer terrestre?
¿Verdad que no hay diferencia sustancial
entre vivir con una vaca o con una mujer
que tenga las nalgas a setenta y ocho centímetros del suelo?
Yo, por lo menos, soy incapaz de comprender
la seducción de una mujer pedestre,
y por más empeño que ponga en concebirlo,
no me es posible ni tan siquiera imaginar
que pueda hacerse el amor más que volando.


Imagem retirada da Internet: nu feminino

Raul de Leôni - Poema



Canção de todos




Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!


Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...


Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,


Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.


Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.


A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas


Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...


Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina


Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:


Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.


Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.


Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.


Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas


Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: almas

Raul de Leôni - Poema



Ciganos



Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.


Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.


Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...


Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...


Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.


Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.


Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.


E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.


Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.


E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: ciganos

Mécia Rodrigues - Ensaio Poético



La Bohème





para Egle Gruppi Turini, minha avó



Alguma coisa lírica soou na minha memória, quando entrei na Barão de Itapetininga, em meio à profusão dos pisca-piscas, à polifonia própria de dezembro e à infinita variedade de quinquilharias pelas vitrinas úmidas e garoentas. As palmeiras do Vale, a enorme árvore de natal ali montada, o Theatro Municipal.
2
Sabonetes em formato de noz. Da Kanitz. Havia as caixas grandes, com três, e a pequenas, com um. As caixas verde-claro, enfeitadas com papel transparente picado. No meio dele se acomodavam as nozes-sabonetes. E também havia as caixas de talco, de madrepérola, com esponjas tão leves que pareciam flutuar. E os chocolates da Kopenhagen.
3
O circo de Moscou, os doces sírios da ladeira Porto Geral, Os três mosqueteiros, O cavaleiro da máscara de ferro, Miguel Strogoff. As fotonovelas dos dias chuvosos, quando a máquina de costura deixava de ser pedalada. A caneta preta, de pena de irídio, do meu avô.
4
Subi até a Sete de Abril e entrei na galeria onde comprávamos, eu e minha mãe, os presentes de natal para minha avó. E, talvez, para reencontrar a ambas, eu procurava o sabonete da Kanitz.
5
A garoa se transformou numa chuva forte, que me obrigou a ficar parada na porta da galeria, na saída da praça Dom José Gaspar. Um punhal pintado na perna direita da minha calça jeans e uma rosa entrelaçada nele. Com essa displicência atravessei natais e invernos rigorosos, mp3 e gramophones, perfumes de pinheiro e todas as tempestades possíveis.
6
A chuva parou. As pessoas que, como eu, estavam por ali, esperando que ela passasse, começaram a se dispersar. E naquela pequena multidão eu via o vulto da minha avó e da minha mãe passando com caixas e caixas de sabonete e chocolates. E as notas claras de uma ária:
7
Al buio non se trova
Ma per fortuna è una notte di luna...
8
— Ah, como eu queria um Nintendo com dois controles e quatro cartuchos, suspirou a voz, ao meu lado, olhando para a vitrina. E depois, para mim. Era uma menina suja e mal vestida, de uns dez anos, cujo rosto brilhava com uma graça irresistível. — Você não queria um Nintendo daqueles? Ela perguntou bem alto. Dei um sorriso forçado. Eu estava atravessando a praça e havia parado um minuto em frente à uma loja de brinquedos, mais para olhar o movimento dos estudantes, costureiras, pequenas vendedoras de fósforos, gatunos, camelôs indo embora, vagabundos, homens de terno e gravata, mulheres cheias de charme.
9
— Você não me respondeu...e a menina cutucou minha perna com o dedo.
— O que eu não respondi?
— Sobre o Nintendo...

10
So bien...le angoscie tue,
Non le vuoi dir
Non le vuoi dir
11
Os corrimãos de ferro e as escadas de mármore da Estação da Luz, a litorina das 21h, um cravo vermelho em um vaso de vidro e a toalha branca de linho do vagão-restaurante. E uma hora depois, a casa da minha avó.
12
— Olha aqui, chatinha, eu disse para a garota suja, o que eu tenho de dinheiro dá pra comprar uma vela bem bonita, milk-shake e batatas fritas do McDonald’s, serve? — Para que a vela? ela perguntou. Fingi que não ouvi.
13
— Os dois de chocolate, falei para a moça do caixa. Peguei o troco e disse à garota: — Vamos sentar nas escadas do Municipal, acender a vela e falar mal dos natais, das pessoas, das injustiças, da falta de dinheiro. — Estão molhadas, disse a menina. — Com esse calor, já secaram.
14
A neve caindo devagar sobre os telhados, um quadro a óleo, a casa de penhores, as cinzas da lareira apagada. Sobe o pano no Teatro Régio de Turim, 1896. Libreto por Giusepi Giacasa e Luigi Flicca, baseado em Scènes de la Vie de Bohème, de Henri Murger.
15
Mal nos sentamos em um dos degraus, vinha vindo um homem cheio de pacotes, que pelo volume, supus serem os caros panetones da Dulca. Levantei e fui até onde ele estava: — Boa-noite, cavalheiro, preciso acender esta vela, o senhor teria um isqueiro para me emprestar? Ele se atrapalhou um pouco, pediu para eu segurar os pacotes — os panetones? — enquanto acendia um zippo. Que mais parecia um lança-chamas.
16
Pisquei para a menina, sentada na escada, segurando os mil-shakes e as batatas. Que, por sua vez, também piscou para mim. O homem me olhou, segurando o zippo aceso: — Você...e pigarreou. Encostei o pavio da vela na chama e sorri: — Eu?
17
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.
In povertá mia lieta
Scialo da gran signore
Rime ad inni d’ amore.
18
Acendi a vela vermelha, enfeitada com frisos dourados, e o nome da minha avó, escrito nela, brilhou mais do que todas as luzes do centro da cidade.





 In. Jornaleco

Nelson Ascher - Poema


Hölderlin


para Antonio Medina Rodrigues



Luz não se vê tão límpida
quanto, inundando a casa,
aquela que extravasa
fugaz de qualquer lâmpada
que, de repente, exalte-
-se e atinja, por um átimo,
à beira do blecaute
mais último, seu ótimo.
Cega ao fulgor, a orelha
talvez capte de esguelha
um ultra-som que, esgar-
çador como um lamento,
provém do filamento
no afã de se queimar.
 



Imagem retirada da Internet: filamento
In. Jornal de Poesia

Mário Quintana - Poema




O mapa



Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...


(E nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...


Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moca bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)


Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso


Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso...









Imagem retirada da Internet: Porto Alegre

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