Diléa Frate - Conto
Imortal da Academia de Letras, Moacyr Scliar, morre aos 73 anos
Graciliano Rocha
De Porto Alegre (RS)
Nascido em Porto Alegre e formado em medicina, o escritor e colunista da Folha publicou mais de 70 livros entre diversos gêneros literários: romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio.
Sua obra tem forte influência da literatura fantástica e da tradição judaica.
Integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2003, Scliar já recebeu prêmios Jabuti, uma das mais prestigiadas premiações literárias do país, em 1988, 1993, 2000 e 2009.
Entre suas obras mais importantes destacam-se os livros 'A Guerra no Bom Fim', 'O Centauro no Jardim', 'O Exército de um Homem Só' e 'Max e os Felinos'.
Fonte: Folha.com - Ilustrada
Foto reprodução: Scliar
Maria Teresa Horta - Poema
Beijoo à vontade das mãosna imagem dos homensO oceanopor entre o oceanoa paz estagnadano contorno dos espelhosBeijo-tena terra à secreçãodos passosódios redondosacuado de seiosa noite na espessuraquentedas almofadas sem manhãa imortalidadeabortadaque mulheres conduzempresaspelo ventre e saciadasde filhosBeijoo absoluto contidonos objetos sem castaa incerteza brancadas paredesimóveisa insalubridade arqueadano silêncio espessodas portas sem casascom jardins malogradosno início do nadacomo se depois das vertentesárvores fossemchuvaou nuvens fossem árvoresBeijo-vosa todos por de dentrodos lábiosas línguas da areianas bocas das praiasgolfos quadradosde alvorarembarcosbarcos erectosagressivos de mastrosA cidade é nossaBeijo-tena cidadenas ruas onde carrossão floresque crescem em ruídosde palmasBeijo-tena sede agudaque gaivotas têm de céue de estátuasestátuas anemiade cabelosem patamares de doençamissivas acresde grades aciduladasa água é no princípiodas palavrasveia fechadasaliente nas rochaságua vertebradacom pulmões escondidosBeijo-tena água de caulessucessivosO grito é um navioperdidona memóriaBeijo-teno vidrosearas verdadeirasde cristal p'loódioa batalha é o azulque deixamos atrásBeijoa súbita vontadeda vigília dos partosos suicídios molescom precipícios vastosas pedras castradasnas retinas dosgatoshorizontena distância onde o crimeacontece nas lâminasFatos inconcretosna geometriado medoas viúvas são laranjasvestidasde encarnadoBeijo-teesquecida na vertigemdas algaso vento é oblíquonas âncoras antecipadasas lágrimassão incógnitasna orgânica dos sonsIntrodução às pétalasna urgência da glóriaabelhas saqueadasna saliva ruivaem poentes sem vérticea boiarem na pele rugosamenteopacada luaA nossa vontadeé nos ombros das plantasorvalho de febre sem objetivoBeijo-vosno bosque onde o animalé a penumbrae os joelhos da luzcogumelos de asfaltono centro de um invernosem notícia nem espantoBeijo-vosprolongada de geraçõesem silêncioé para nós agoraa vezdas planícies que erguemospelas ancasna curva onde o hálitoé ansiedade no homemsão para nósas notícias de mortesnecessáriasna simetria do espaçoBeijo-vosnos pulsos de naufrágiocircularesa onda é um motivoassimétrico de revoltaFronteiras mutiladascedorente aos caisBeijo-vosna vontade de recomeçarmosos olhosos cavalossão paisagense o neon é um cavalode mergulharmos os dedosBeijo-vosa todos nos meus lábiosonde antiguidade de manhãé gaiola insubmersade nunca existirem passos
In. Palavrarte
Foto by Francisco Perna Filho
Vasco Graça Moura - Poema
Auto-retrato com a musa
1.
vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.
sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).
ia a passar fumando
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,
palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra
e se entrevê no espelho,
tingindo as suas águas
de um dúbio maneirismo
a que hoje cedo. e fico
feito de tinta e feio.
2
quem amo o que é que pode
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado,
nem guardá-lo num livro,
nem rasgá-lo ou queimá-lo,
mas pode pôr-se ao lado
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos
ou não achar. quem amo
não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago
e deixo de me ver
e apenas me confundo,
amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar.
assim nem john ashberry,
nem o parmegianino,
nem espelho convexo,
nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.
3
quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço
tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,
nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições
de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.
é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.
Apud Releituras
Imagem Magrite: Espelho
Vasco Graça Moura - Poema
Soneto do amor e da morte
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
In. Antologia dos Sessenta Anos
Imagem retirada da Internet: mãos dadas
Alexandre Bonafim - Poema
Manuel Bandeira - Poema
Versos Escritos N'água
Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.
Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...
Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.
Imagem retirada da Internet: folha seca
Manuel Bandeira - Poema
SATÉLITE
Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
Satélite.
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e dos enamorados.
Mas tão-somente
Satélite.
Ah Lua deste fim de tarde,
Demissionária de atribuições românticas,
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
Gosto de ti assim:
Coisa em si,
- Satélite.
In. Estrela da vida inteira. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p.232.
Imagem retirada da Internet: Lua
Patativa do Assaré - Poema
O PEIXE
Tendo por berço o lago cristalino,
Folga o peixe, a nadar todo inocente,
Medo ou receio do porvir não sente,
Pois vive incauto do fatal destino.
Se na ponta de um fio longo e fino
A isca avista, ferra-a insconsciente,
Ficando o pobre peixe de repente,
Preso ao anzol do pescador ladino.
O camponês, também, do nosso Estado,
Ante a campanha eleitoral, coitado!
Daquele peixe tem a mesma sorte.
Antes do pleito, festa, riso e gosto,
Depois do pleito, imposto e mais imposto.
Pobre matuto do sertão do Norte!
Imagem retirada da Internet: Peixe
In. Recanto das Letras
Célio Pedreira - Poema
Que tempo é esse
passando ao contrário
levando a gente distante
bem longe.
Tem jeito assim
de passado e presente
diz um silêncio na gente
vereda.
E sem dar fé
a gente quer ser
passarin.
Manuel Bandeira - Poema
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite de um túmulo.
Manuel Bandeira - Poema
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco
Manuel Bandeira - Poema
Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.
In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Recife antigo
Edival Lourenço - Poema
Nem me dou se sou sim ou se sou não
Já nem sei se sou grão ou se sou mó
Se sou um sol ou só um ser de pó
Ou se sou pó de luz de sol em grão
Nem me dou se sou rés ou se sou vão
Já nem sei se sou vau ou sou nó
Se sou um ser do mal ou ser de dó
Dum cão em si sem dom ao rés do chão
Quem diz que ser é ser o sal de Ló?
Quem diz que ser é ter o dom de Jó?
Quem diz que ser tem que ser ás e são?
Quem diz que ser é ter o breu na mão?
E ter que ser de Deus ou ser do cão?
- No vão de ser eu só sei que sou só.
(26.11.07)
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