Valdivino Braz - Coletânea


PASSOS PASSADOS


Passos que esbarram
nos cristais do orvalho
e roçam nas belas imagens
dos caminhos de pólen e pétalas
por onde pervagueia
minha infância descuidada
meus pulos descalços
ressoando no solo
E minhas mãos querendo alcançar
os pássaros que voejam
no claro espaço das manhãs
meladas de sol.
Passos que se apagam
nos remotos arrebóis
longínquos de mim.
In. A palavra por desígnio


Melancolia Telúrica

V

A hora mais triste da terra,
quando o sol se apaga e a dor é solitária.
Hora de amargura e desespero das almas.
Punge, confrange, apequena, aniquila,
faz-nos sofrer, a luz do dia
que pouco a pouco já não brilha.
Que agonia!
O que fazer para não morrer?

VI

A hora tristonha,
chapada pela luz agonizante do crepúsculo,
hora em que a terra parece não mover
um músculo sequer.
Os paturis se foram já embora,
logo a inquietante quietude das sombras
e os brilhos da noite imperam na água imóvel.
Vitrificada pelo reflexo da luz,
a lagoa se arredonda num espelho cósmico.
Ê mundo melancólico!
Ô lua sonambúlica!
Que noite é essa,
que a tudo abarca
pra Terra do Nunca?
In. Poema da terra perdida


O LABIRINTO EM FLOR


Pensar, pensar, até florir,
incendiar-se o labirinto em flor.
Arranjos florais de uma desordem
— girassóis-girândolas em chamas —,
O caos dentro de sua própria ordem.
Penso a palavra
e se deságuo emoção,
aí procura a razão.
No caos entre uma e outra,
me sustento.
O caos cria, desfaz, diferencia.
Não me construo com a forma,
antes me desmorono,
mais familiarizado com o fundo,
minha fôrma.
Pêndulo no fio de equilíbrio
— gangorra absurda
e um visgo de nada —,
crio vertigens,
vejo o fundo de sangue do que sou.
Imenso, o abismo de um verso.
Me solto do fio,
no fundo me arrebento,
e me incendeio.
Sílex, antes que Fênix.

OS PORTAIS DE AURORA


Ó estúpida,
Desgraçada lucidez!
Quantas auroras são em seu relógio?
A hora clara e o sol,
ovo estrelado
na frigideira do dia.
Tartarugas
— tártaras rugas —
num rolo de tarugos.
Este é meu chão.
Devo envelhecer-me ao sol,
apaziguar meu coração.

In. As lâminas de Zarb
Imagem retirada da Internet: Braz

Valdivino Braz autografa romance no Pop House



Obra parodia e satiriza período da história brasileira





O romance “O Gado de Deus”, do jornalista e escritor Valdivino Braz, tem noite de autógrafos nesta terça-feira, 24, às 20h30, no bar Pop House, localizado no Setor Marista (ver Serviço). O evento conta com o apoio da casa, que abriga iniciativas culturais e convidou o autor para a noite de autógrafos. O livro integra a terceira edição do projeto Coleção Goiânia em Prosa e Verso, da Prefeitura de Goiânia.

Escrito entre os anos 1980 e 1990, “ O Gado de Deus” recebeu certificado de Menção Honrosa no Concurso Nacional de Romances do Paraná, em 1993, quando concorreu com o título “As Dores da Terra Antiga”, uma vez que intercala cenas rurais gravadas na infância do autor. Misto de paródia e sátira, onde um país de nome Pátria é uma clara alegoria, o romance inspira-se na história e no caráter macunaímico da sociedade brasileira, sobretudo no golpe militar de 1964.

“O regime militar foi o Produto Interno Bruto para as narrações contidas no romance, feito um fio elétrico desencapado e sangrento, mesclando-se realidade e ficção. A obra mantinha-se inédita há duas décadas, e não vem a público para repisar o pisoteio do golpe — terra batida de negra memória, já nos anais da história —, mas, sim, retirar da gaveta uma amarelada obra de ficção”, esclarece o autor. Acrescenta, no entanto, que “O Gado de Deus” é um tratamento de choque para sacolejar consciências adormecidas e, quem sabe, suscitar reflexões.

Ainda de acordo com o autor, realidade e ficção compõem um painel com tintas escabrosas, escatológicas, filosóficas, poéticas, hilárias, heréticas e, sobretudo, políticas, sem poupar esquerda ou direita, sociedade e religião, instituições estatais, poderes constituídos e autoridades estabelecidas.

O romance traz “Livro do Ressentimento” como subtítulo. Há personagens baseadas em pessoas reais, de Goiás e de Minas Gerais, além do próprio autor, na irônica figura do menino Inocêncio de Deus Divino. Chorosas e ressentidas, as falas dos personagens são de estarrecer, incluídas umas heresias arrepiantes, envolvendo a Providência Divina. E não é por menos a advertência de Braz na abertura do livro, no sentido de que o leitor esteja preparado.

“O romance lida com o gado, o rebanho de Deus, como se diz da humanidade, logo é um bicho bruto, e não é para espíritos fracos, muito menos para fanáticos religiosos ou ideológicos, embora nada os impeça de ler o livro. Mas lê-lo com inteligência, sem hipocrisia, para entender a dimensão humana dos personagens”, acentua Braz.

Ousado, Valdivino Braz vende seu peixe afirmando que o romance pode não ser um dos melhores do gênero em Goiás, mas é a paródia que faltava na literatura goiana, “que é tão brasileira quanto a de outros estados”. Modesto, como ele se diz em tom maroto, sonha com“O Gado de Deus” no eixo Rio-São Paulo, no vestibular das universidades goianas e nas salas do Ensino Médio.


Sobre o Autor


Valdivino Braz é goiano, residente em Goiânia. Jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás, com passagem por vários órgãos de comunicação, como jornais, revistas, televisão, assessorias de imprensa e agência de publicidade. Além de “O Gado de Deus”, publicou dois livros de contos e dez de poemas, seis dos quais premiados em concursos do gênero, inclusive o Prêmio Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte”, em 1992, com o livro “A Trompa de Falópio”. É detentor de outras premiações, regional e nacionalmente. Possui obras inéditas e outras em preparo. Há quatro anos escreve para a revista eletrônica “Bula”, de Goiânia, destacada entre as cinco melhores do País. Braz recebeu, em 1996, o Troféu Tiokô de Poesia, da União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás (UBE-GO), da qual é secretário-geral reeleito. Em 2004, foi agraciado com o Troféu Goyazes de Poesia “Leodegária de Jesus”, da Academia Goiana de Letras (AGL).



Serviço:

Evento: Noite de autógrafos do romance “O Gado de Deus”, do jornalista e escritor Valdivino Braz

Data: Terça-feira, 24 de agosto de 2010

Horário: 20h30

Apoio: Pop House, bar e eventos culturais (Rua 1.145, nº 228 – Setor Marista – Nos fundos do Batalhão de Choque da PM. Via de referência: Av. Ricardo Paranhos)

Preço do livro: R$ 20,00


Foto by Flávio Isaac

Gabriel Garcia Márquez - Conto

Me alugo para sonhar



Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à ideia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

Março de 1980


In. Doze Contos Peregrinos.

Imagem retirada da Internet: Gabo

POETA VALDIVINO BRAZ LANÇA LIVRO EM GOIÂNIA


CONVITE


O escritor e jornalista Valdivino Braz e o bar Pop House convidam e contam com as honrosas presenças de Vª Sª e Ilmª Família para a noite de autógrafos do romance O Gado de Deus (Menção Honrosa, sob o título “As dores da terra antiga”, em Concurso Nacional de Romance do Paraná).

Mista de paródia e sátira, tendo como pano de fundo ações militares em que as semelhanças não são meras coincidências com um período da história brasileira, a obra espelha o conturbado mundo dos personagens, lidando com atos brutais e conflitando-se com a Providência Divina. Um livro forte para espíritos fortes. Diversão e choques elétricos. Irônico, político, pungente, hilário para falar a sério. Em foco a corrupção política, os descaminhos das instituições, dos poderes constituídos e das autoridades estabelecidas. O Brasil de ontem e de hoje.

Data: 24 de agosto (terça-feira) de 2010

Horário: 20h30

Local: Pop House (Rua 1.145, nº 228 – Setor Marista – Goiânia (Nos fundos do Batalhão de Choque da PM. Via de referência: Av. Ricardo Paranhos). Telefone: 4141-4922. Confira o balãozinho no mapa abaixo.

Brasigóis Felício - Crônica


A arte insólita de Moacir


Brasigóis Felício *



No povoado de São Jorge, em Alto Paraíso, vive um artista do povo, de imaginação onírica ou insólita, chamado Moacir. As estranhas figuras que desenha e pinta lembram o museu do inconsciente, de Nise de Silveira, que fez uma revolução na psiquiatria, ao revelar talentos artísticos de criaturas psicóticas em alto grau. Moacir faz seus desenhos desde os sete anos. Filho de pais muito pobres, garimpeiros e catadores de lenha na região, começou pintando nas pedras, paredes, toras, e o que encontrasse à sua frente.

Depois, já crescido, danou a ter medo de gente, evitando o contato até mesmo enquanto desenhava para as pessoas. Protegia-se com um cobertor vermelho, e segundo o pai, quando entrava no campo voltava correndo para casa, ao sentir “catinga de gente”. Aos poucos foi vencendo a ojeriza a gente, ampliando seu imaginário, à medida que via mais coisas e pessoas. Reportagens sobre ele já foram feitas, e são freqüentes as visitas de turistas, vindos da Europa, interessados em conhecer seu trabalho insólito.

O cineasta Walter Carvalho realizou um muito bom documentário sobre ele, intitulado: Moacir – arte bruta. Em verdade, é injusto ou equivocado chamar de bruta a sua arte – até por ser ela muito sensível, extrapolando as fronteiras ao alcance da mente racionalista. Analfabeto que lê alguma coisa, é uma estranha figura, tão insólita quanto as imagens que desenha. Sua mãe conta que ele rejeitou o seu leite. Dele não precisou. Bebeu direto da fonte da mãe natureza. Pintando o que vê no escuro, e não compreende, em sua inconsciência, pinta o que não sabe nem sente. Apenas expressa em dom natural o que o que ele vê no ar, em pleno escuro.

Visto, no início, como demente, em função de sua ojeriza a “catinga de gente”, hoje é aceito como artista pela comunidade de gente simples, se bem que alguns ainda se horrorizem com os seus capetinhas chifrudos. Se antes pintava escondido, passou a ver as pessoas de modo diferente, quando enxergado por um novo olhar. Não havendo mais estranhamento em relação ao seu estranho modo de ser, de viver e de se expressar, passou também a aceitar o contato. Sempre continuando o que tinha aprendido, continuou aprendendo.

Moacir pinta de dentro para fora, enquanto processa as imagens que lhe vêem do inconsciente. Enquanto as imagens de seu mundo insólito se ampliam, seu traço é sempre o mesmo. Inútil querer explicá-lo à luz da lógica cartesiana, como Siron Franco, em visita a Moacir, tentou faze-lo, mas de modo infeliz. Tanto assim que, ao brincar de desenhar, com o artista da arte bruta, saiu, digamos, humilhado, pelo olhar totalizador e integrador do artista naif, que deu sentido ao desenho iniciado pelo artista consagrado. Tal fato foi registrado pelo crítico que apresenta o documentário, no canal 66. Longe aqui estou de comparar Siron a Moacir – isto seria um absurdo. Apenas estou a assinalar que o saber cartesiano não é capaz de manipular – e sequer de entender – o que brota das luzes e sombras do inconsciente.

São longas e interessantes as falas de Moacir – de certo modo, soam como legendas, apontam para a incongruência do querer explicar o inexplicável, reduzindo o fluxo onírico de uma mente estranha e penetrante a teorias, esquemas, enquadramentos:”Não é o que eu falo? Essa coisa que ele desenha traz para ele o entendimento. Isto ta na cabeça dos compreendidos. Mas ta fora da cabeça dos que ignoram”.

Ele também diz que envelhecer é muito ruim, sempre diz isto aos jovens. E quando eles perguntam como fazer para não ficarem velhos, ele diz que são muito bons para isso a formicida, o BHC, o veneno para ratos. Mas ninguém quer saber de beber, então vão ter mesmo que envelhecer. À lista de providenciamentos para evitar o envelhecimento o pai de Moacir poderia acrescentar a longa lista de drogas ilícitas, como o crack, a cocaína, e outros baratos que, no fim das contas, não saem barato...

Passado o tempo em que não queria ver nem ser visto por gente, Moacir passou a crescer, com a dor de existir e conviver. E se fez diferente, permanecendo o mesmo. Sem nada saber de seu gênio criativo, nem de sua humanidade, mas também sem fazer de seu ofício uma missão fatídica de o trair. “É longe, muito longe o pensamento”, diz Moacir, em um monólogo que poderia ser de um energúmeno, se não expressasse uma profundidade da qual ele mesmo não se dá conta: “O meu pensamento tá muito longe... nem sei desse pensamento. Pensamento, entendeu? Pensamento...”.

Lá vai Moacir, artista doidivano, pelas ruas empoeiradas do povoado de São Jorge, a conduzir sua bicicleta cargueira, à frente da qual vai uma imagem do capeta, que ele mesmo fez. Sob olhar acostumado dos nativos, e o susto e espanto dos turistas, atravessa a tarde solarenga, não sabendo que com este gesto inconsciente de afronta aos que desfilam e cantam no coro dos normóides, atua como inteligente marqueteiro que não sabe o que é marketing.

Só ele vê o mundo em que vive – ninguém pode expressar ou entender o mundo que ele vê. As pessoas se espantam e não aceitam que alguém possa enxergar o estranho e grotesco mundo que a elas não é revelado. Moacir, porém, não se importa, pois vive em fulgores de não saber o que os críticos ensinam por não saberem fazer.

Feliz é o ingênuo Moacir, que no povoado de São Jorge vive no mundo do desenhar e pintar as imagens que lhe vêem do inconsciente (que ele garante estarem no ar) sem perder-se no nos entrechoques com as vanidades do pensamentar que só é capaz de criar, aumentar e reproduzir as dores e conflitos de um mundo que tudo perdoa, menos a verdade, a inocência e a pureza que levam pessoas como Moacir à dignidade e grandeza de serem iguais a si mesmas.



* Brasigóis Felício, escritor e jornalista, é vice-presidente da UBE-go e membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem retirada da Internet: Moacir

Deu na Folha de São Paulo: Morre o Poeta Edwin Morgan

Morre Edwin Morgan, um dos poetas mais importantes da Escócia

DA FRANCE PRESSE, EM LONDRES


Edwin Morgan, considerado um dos poetas mais importantes da Escócia, morreu nesta quinta-feira aos 90 anos, informou a Academia Escocesa de Poesia. Ele sofria de pneumonia.

Morgan foi nomeado primeiro poeta nacional, ou Scots Makar, em 2004. Ele era conhecido pela variedade de sua escrita, que passava pelo soneto e pela poesia concreta.

Nascido em Glasgow em 1920, ele serviu ao corpo médico do Exército Real e ensinou inglês por mais de 30 anos na Universidade de Glasgow, informou o jornal The Guardian.

O primeiro-ministro da Escócia, Alex Salmond, chamou Morgan de "um homem verdadeiramente bom, um poeta excepcional e uma inspiração".

"Amado na Escócia e no mundo todo, seu trabalho tratou de questões globais e eventos históricos", disse o premiê segundo a BBC.

"Sua paixão por observar todos os aspectos da vida escocesa levou a Escócia para o resto do mundo."

A poeta britânica Carol Ann Duffy disse sobre seu amigo: "Um gênio bom, generoso e gentil se foi. Ele era um filho da poesia e abençoado por ela. Ele é simplesmente insubstituível".

Em 1982, Morgan recebeu a ordem do Império Britânico. Em 2000, ganhou da rainha a medalha dourada da poesia.

O poeta irlandês Seamus Heaney, que ganhou em 1995 o Prêmio Nobel de Literatura, disse: "sua coragem como homem e sua constância como poeta só aumentavam com a idade".

"Toda a comunidade de poetas orgulhava-se de sua fertilidade, e foi bom ele ter vivido suficiente para saber a consideração que sua cidade e seu país tinham por ele", diz Heaney, citando Glasgow, a maior cidade da Escócia, sobre a qual Morgan escreveu muitos de de seus poemas. Outro tema caro ao poeta era a ficção científica.

Homossexual, Morgan só assumiu sua orientação sexual em 1990, quando tinha 70 anos, depois de a homossexualidade ter sido descriminalizada na Escócia.

"Um espírito solidário que respirou solidariedade, um experimentalista que não desdenhava a acessibilidade", completou Heaney.

Influenciado pelo poeta russo Maiakóvski, pelo britânico William Blake, pelo italiano Eugenio Montale e pelos beatniks, como Allen Ginsberg, Morgan trabalhou também com traduções, vertendo para o inglês textos de idiomas como russo, húngaro, francês, alemão, italiano, latim, espanhol e português.


Fonte:Folha Ilustrada

Imagem retirada da Internet: Edwin Morgan

Deonísio da Silva - Ensaio



TERRY EAGLETON
Ateístas de ocasião


Por Deonísio da Silva em 17/8/2010




O britânico Terry Eagleton, de 67 anos, é filósofo e crítico literário. Não navega na internet, não tem e-mail, não anda com celular e usa computador apenas para escrever. Ele faz falta na internet. Seus adversários intelectuais teriam muito a perder e sofreriam muito com suas tiradas irônicas. "Católico desde o berço e marxista desde a escola", como o definiu Laura Greenhalgh, que o entrevistou para o Estadão (14/8, caderno "Sabático", p. 4), disse que a onda de ateísmo atual começou no dia 11 de setembro de 2001. É que irrompeu ali um "absolutismo metafísico que colocou o Ocidente em xeque". Em nome do Islã, pessoas doavam a vida, certas de que morreriam em troca de um bem maior.

Aos ateístas, ele dá um conselho que não pediram. Nas palavras da entrevistadora: "Em vez de desacreditar Deus e fomentar a islamofobia, é tempo de recuperar o melhor das tradições socialistas e judaico-cristãs, gerando pensamento ético."

De sua autoria, a editora Civilização Brasileira está lançando O problema dos desconhecidos, e a Jorge Zahar, Jesus Cristo – os evangelhos. Ao criticar com veemência o biólogo Richard Dawkins, autor de Deus - um delírio (Companhia das Letras), ele diz: "Dawkins é um liberal respeitável, inclusive se manifestou contra a intervenção no Iraque", mas "está no fundo contribuindo com a ideologia da guerra, ao investir de forma tão alucinada contra Deus." Acha também que os autores ateístas surgidos recentemente formulam falsas questões: "Quando o mundo começa efetivamente é uma pergunta para os cientistas, não para os teólogos. Até São Tomás de Aquino sabia disso."

A política não se interessa pelas pessoas

É uma crítica nada sutil. Os autores que lideram o combate ao que entendem por Deus, nem sequer se dão ao trabalho de aferir se são maioria os cristãos que não aceitam a teoria da evolução e acreditam que Deus criou o mundo, lendo a Bíblia como se fosse um livro de ciências. Isso é coisa do século 19.

Eagleton teve um livro sobre teoria literária muito lido. A intelligentsia vivia outra época. Eram os anos 1960 e 70. "Havia uma atmosfera intelectual ambiciosa." E hoje? "Ficamos menos ambiciosos." E pergunta à entrevistadora: "Já percebeu como as pessoas não estão interessadas em formular questões fundamentais?" E ela indaga: "Seria preguiça intelectual?" Ao que ele responde: "Não é bem isso. As pessoas formulam grandes questões quando sentem que há chance de mudança lá na frente. Hoje as visões ficaram estreitas e de curto prazo, justamente quando o mundo mais se globaliza. A inteligência se retraiu, consequentemente a teoria literária também."

Como se trata de um autor que é também professor, acrescenta: "Perdemos o nervo que nos fazia ousar. Meus alunos hoje só se interessam por cultura popular. Ou pela cultura da política, não pela política." E, criticando especialmente as alunas, diz que elas não querem saber do potencial transformador que o movimento de liberação da mulher teve nos anos 1960.

Conclui dizendo que as pessoas não se interessam pela política porque a política não se interessa por elas.



In.
Observatório da Imprensa
Deonísio da Silva, escritor, doutor em Letras pela USP

Alcir Pécora - Crítica Literária


Erudito dissonante


Wilson Martins (1921-2010), sob vários títulos, poderia ser autor muito lido, citado e consultado na crítica universitária contemporânea. Em primeiro lugar, pela aproximação ampla que tentou da cultura material e, em particular, da história do livro e da leitura -hoje, objeto de uma infinidade de teses e artigos.

Foi o que fez, por exemplo, em ‘A Palavra Escrita - História do Livro, da Imprensa e da Biblioteca’ (1957), quando os historiadores Robert Darnton ou Roger Chartier nem haviam feito graduação.

Depois, pelo esforço de pesquisa documental exaustiva, pela disposição de compor inventários, séries cronológicas e biobibliográficas, que hoje são procedimentos correntes e valorizados nas investigações de arquivo em todas as faculdades importantes do país.

Nem seria preciso lembrar o quanto isso ocorre nos sete volumes da ‘História da Inteligência Brasileira’ (1976-79).

Martins poderia ser autor apreciado também pelo amplo cruzamento de áreas que promove em suas análises, pela comparação sistemática da literatura com os diversos gêneros letrados praticados em certo período.

Encontra hoje muitos ecos a sua tentativa metodológica de elencar e contrapor diferentes fenômenos intelectuais, de modo a lançar hipóteses sobre a sua estrutura comum, a detectar o que constituísse a sua ‘forma mentis’, como dizia, bem como a homologia entre as várias práticas intelectuais e artísticas.

É o que ocorre não apenas na citada ‘História da Inteligência Brasileira’, cujo título já é elucidativo desse empreendimento interdisciplinar, mas de boa parte de sua crítica.

Mas não se passa assim. Talvez consultado, antes das aulas, mas não discutido dentro delas; poucas vezes debatido nas bancas diárias dos estudos literários na universidade.

Por que isso se dá? Ou melhor, como isso se deu?, ocorre perguntar, quando a sua morte tão recente salienta, de repente, a sua ausência anterior.

É possível que o descaso seja fruto colhido pela ruptura do pacto de cordialidade no trato de parceiros de profissão? Está claro que Martins não tinha mãos para panos quentes e sua escrita deixava vazar sem dó o gosto da polêmica e da mordida crítica. Não raro, anotava na obra examinada a pouca familiaridade com a matéria, a ignorância bibliográfica, a indigência no domínio da língua, quando não isso tudo, e mais.

Em qualquer ano que se abra, por exemplo, os dois volumes da sua ‘Crítica Literária no Brasil’ (1983), colegas de ofício, com carreira acadêmica e representação institucional importantes, se veem constrangidos a lhe sentir publicamente a fervura do verbo.

A vontade de tornar expressiva e superjustificada a crítica que fazia, mais do que de matizá-la e equilibrá-la, dava ar de truculência verbal e mesmo de destempero ao que, por outro lado, estava mais para orgulho de andar sozinho, de ser avis rara ‘no país da patotagem, do compadrio, do você é de direita, eu sou de esquerda’, como o traduziu seu editor José Mario Pereira.

É como se não aliviasse a mão para deixar claro que se comprometia moralmente, existencialmente, com a dissonância que introduzia na conversa, e que o desacordo era o modo privilegiado de fazer andar a conversa.

À estridência de sua crítica, que entrava sem pedir licença na cena da leitura, confundindo, por vezes, rigor e falta de polidez, tem correspondido o silêncio diante dela, o que tanto ressalta o ambiente suscetível e aparelhado, como a simples indisposição para o trabalho que daria responder a ela. Mas essa é apenas a hipótese mais imediata para o terceiro plano ao qual se relega a sua obra vasta, de proliferação enciclopédica.

Se comecei dizendo que Martins calhava com certa tendência inventarial da crítica contemporânea, ele se afasta dela não apenas pela exacerbação crítica, pela erudição, mas sobretudo pela concepção de crítica, que dá primazia cultural ao debate e ao juízo ‘a quente’ da produção contemporânea -exercidos principalmente nas páginas dos jornais- sobre o ensaio crítico universitário elaborado sobre o consagrado e consensual.

Quando ele diz que ‘a crítica só pode ser universitária depois que a crítica jornalística deu a sua palavra’, não está afirmando apenas uma prerrogativa temporal, mas uma precedência epistemológica. Num ambiente em que o jornalismo literário e de erudição autodidata já perdeu há muito tempo o prestígio diante da especialização universitária, compreende-se que Martins soe antiquado.

Não é o mais grave. Não é apenas que, por exemplo, as páginas de literatura se encolham nos jornais, não fosse por outro motivo, pela falta de eruditos nas redações ou de intelectuais de primeira dispostos a entrar na cena armada dos lançamentos editoriais.

Mais drástico é o encolhimento dos estudos literários dentro dos próprios departamentos universitários de literatura, a qual perde -já perdeu- não apenas espaço para os estudos culturalistas de gêneros, minorias, direitos, testemunhos terríveis e edificantes, como para a ‘teoria’ que a toma como ilustração e exemplo, não como corpo epistemológico da investigação ou do prazer físico da leitura.

Quer dizer, quando a própria literatura sai de cena, o nome de Martins é só mais um que sai junto com ela.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)."

Principal obra será relançada no ano que vem

Crítico literário atuante na imprensa brasileira, Wilson Martins morreu em Curitiba (PR) no dia 30 de janeiro de 2010, aos 88 anos. Nascido em São Paulo, foi professor de literatura na Universidade Federal do Paraná até 1972 e na Universidade de Nova York (EUA) até 1992.

Colaborou na revista ‘Joaquim’ -criada em 1946 pelo escritor Dalton Trevisan- e nos jornais ‘O Estado de S. Paulo’, ‘Gazeta do Povo’ (de Curitiba), ‘Jornal do Brasil’ e ‘O Globo’ (ambos do Rio). Seus textos na imprensa estão em ‘O Ano Literário’ (Topbooks) e ‘Pontos de Vista’ (T.A. Queiroz). Escreveu ainda ‘A Ideia Modernista’ (Topbooks) e ‘A Crítica Literária no Brasil’ (Francisco Alves).

Mas sua obra de maior envergadura é ‘História da Inteligência Brasileira’, em que percorre, em sete volumes, a formação das ideias politicas, sociais e culturais no país desde o século 16. Ela será relançada em 2011 pela Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Martins recebeu dois prêmios Jabuti pela obra -em 1977 e em 1978."


Fonte:


Imagem retirada da Internet: Alcir Pécora

Ildásio Tavares - Poema

















Natal em Bagdá
Thomas Hardy 2004


Dois meninos se caçam.
Dois meninos se acham
e se matam no deserto sagrado,
à sombra de um imponente zigurate.

Indiferentes, fluem os rios
que amamentaram a civilização
no lugar de onde saiu a semente
de justiça, de paz, o ungido do Senhor.

Fosse outra ocasião,
esses meninos estariam jogando bola
e depois, tomando uma cerveja
no primeiro bar da esquina,
contariam suas proezas, um
da fantasia, outro da realidade
de seus haréns, como fazem
os meninos de Ceca e de Meca,
de cá e de lá.




Imagem retirada da Internet: Meninos da guerra

Leila Míccolis - Poema



Vã Filosofia...



Falas muito de Marx,
de divisão de tarefas,
de trabalho de base,
mas quando te levantas
nem a cama fazes...



Imagem retirada da Internet: cama desfeita

Vinícius de Moraes - Poema





A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi
alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."



Fonte: Vinícius de Moraes
in
Antologia Poética
in
Pátria minha
in
Poesia completa e prosa: "Nossa Senhora de Los Angeles"

Imagens Google

Ildásio Tavares - Poema












Canto do homem cotidiano



Eu canto o homem vulgar, desconhecido
Da imprensa, do sucesso, da evidência
O herói da rotina,
O rei do pijama,
O magnata
Do décimo terceiro mês,
O play-boy das mariposas
O imperador da contabilidade.

Esse que passa por mim
Que nunca vi outro assim.

Esse que toma cerveja
E cheira mal quando beija.

Esse que nunca é elegante
E fede a desodorante.

Esse que compra fiado
E paga sempre atrasado.

Esse que joga no bicho
E atira a pule no lixo.

Esse que sai no jornal
Por atropelo fatal.

Esse que vai ao cinema
Para esquecer seu problema.

Esse que tem aventuras
Dentro do beco às escuras.

Esse que ensina na escola
E sempre sofre da bola.

Esse que joga pelada
E é craque da canelada.

Esse que luta e se humilha
Pra casar bem sua filha.

Esse que agüenta o rojão
Pro filho ter instrução.

Esse que só se aposenta
Quando tem mais de setenta.

Esse que vejo na rua
Falando da ida a lua.

Eu canto esse mesmo, exatamente
Esse que sonhou em, mas nunca vai
Ser:
Acrobata,
Magnata,
Psiquiatra,
Diplomata,
Astronauta,
Aristocrata.
(É simplesmente democrata)
Almirante,
Traficante,
Viajante,
Caçador de
Elefante
(Vive só como aspirante)
Pintor, compositor
Senador, sabotador
Escritor ou Diretor
(É apenas sonhador)
Pistoleiro,
Costureiro,
Terrorista,
Vigarista
Delegado,
Deputado,
Galã na tela
Ou mesmo em telenovela,
Marechal,
Industrial,
Presidente,
Onipotente,
(Ele é simplesmente gente)
E, inconsciente marcha pela vida
buscando no seu bairro
Na cidade lá do interior,
No escritório, consultório
No ginásio,
Na repartição,
Na rua, no mercado, em toda a parte
Somente uma razão
Para poder dormir com a esperança
E de manhã, na hora do encontro
Com o espelho, ao fazer a barba,
Ver o reflexo do campeão,

Mas que, na frustração cotidiana,
Vai encontrando aos poucos sua glória
Por isso eu canto a luta sem memória
Desse homem que perde, e não se ufana
De no rosário de derrotas várias
E de omissões, e condições precárias
Poder contar com uma só vitória
Que não se exprime nas mentiras tantas
Espirradas sem medo das gargantas
Mas sim no que ele vence sem saber
E não se orgulha, campeão na história
Da eterna luta de sobreviver.



Fotografia by Antonio Simoes: Paisagem Urbana

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