Francisco Perna Filho - Poema

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COBRA DE FOGO





Não sabem os homens
que o fogo consome,
assim como a água,
tudo que vê.
Um corredor de fogo,
uma serpente de labaredas,
uma convulsão de calor e amarelidão.
O cerrado treme,
grita,
estrala.
Rapidamente,
é consumido.
Os homens,
endemoniados,
roubam dos deuses o fogo,
e lançam suas chamas,
queimando o seco
que brotaria,
o verde ainda tenro.
Os homens,
sem escrúpulos,
sem culpa,
sem misericórdia,
roubam da natureza a vida.
De um lado,
o rio,
“cobra de vidro”,
singra.
Do outro,
o cerrado,
cobra de fogo,
sangra.
Os homens,
senhores do fogo,
zombam dos deuses,
ao anunciarem a sua incúria,
a sua insensatez,
passeando pelas ruas largas da cidade,
nos seus carros de som.
Os bairros,
doídos de abandono,
com suas ruas engasgadas de fumaça,
gemem desolados.
As casas,
que também gritam,
vomitam a fuligem das queimadas folhas,
o pó que se alastra pelos seus alpendres,
assistidas pelo mormaço desses longos dias.



Palmas, 21 de setembro de 2010

Imagem retirada da Internet: cobra de fogo

Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko) - Poema


LENDO "HAMLET"



I


No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pé
e, por trás dele, brotou um rio azul.
Tu me disseste; "Então
vai para o convento
ou casa-te com um idiota..."
Só os príncipes falam sempre assim.
Mas eu lembro dessas palavras:
deixem que elas flutuem por cem séculos
como um manto de arminho jogado sobre os meus ombros.


II


E como por engano
eu disse: "Tu..."
Iluminou-se a sombra com o sorriso
suave de meu amado.
Esse é o tipo de deslize da língua
que faz com que todo mundo fique te olhando...
Mas eu te amo, como quarenta
meigas irmãs.


Anna Akhmátova. Antologia Poética. Seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre: L&PM.
Imagem retirada da Internet: Anna


Brasigóis Felício - Crônica

A revolução dos catrumanos



O homem é o único animal que, sabendo-se humano, pode se tornar desumano. Supra-sumo sapiente, embora insano e cruel, inclusive em relação aos seus irmãos. Não saber ter “o poder de ser bom”, que é a vacina mais certa contra todas as formas de maldade. “O alto poder existindo para os braços da maior bondade”, conforme intuiu Riobaldo, nos intervalos das travessias doGrande Sertão:Veredas, em que rasgava gerais, em suas lutas jagunceiras, antes de atravessar a terra sinistra e deserta do Liso do Sussuarão.

Encarnação de milagre foi Riobaldo (um rio baldo), tão tosco e brejeiro, mas tendo clarões da eternidade, ao perceber que existem “semeados na terra” que não fazem parte da humanidade, pois que tendo nascido como pessoas, não conseguiram tornar-se humanos. Separa-os da humanidade “o não saberem das redes de proibições e alianças que presidem as trocas humanas”, como assinala Katrim Holzermayr Rosenfield, em Desenredando Rosa (Topbooks).

Na visão de Riobaldo (e, por certo, do mago Rosa), “os nascidos da terra crescem como vegetais, e massacram-se mutuamente, saindo e retornando do ventre da mãe”. Qualquer semelhança com a barbárie que, nos campos e cidades, em tempos de guerra ou de paz, em forma de terrorismo político-religioso, ou de criminalidade organizada, avança como a querer destruir os marcos civilizatórios, não é mera coincidência.

A revolução dos catrumanos (ou a barbárie pura e simples) pode ser vista no fundo de um mar magmático de selvageria e barbárie, espécie de horda das ruas, ou levante do absurdo, no país da cordialidade e do jeitinho. Já não dá para não saber que a banalidade do mal, que teve seu auge nos campos de extermínios nazistas, com a chamada “solução final”, retorna com o terrorismo justificado em nome dos direitos humanos.

Os catrumanos, espécie de Aliens vindos dos abismos da mente humana, não do espaço sideral, clandestinos embarcados em naves embarcadas em guerras nas estrelas, pertencem à grei mortal e mortífera dos atacados pela peste emocional do caráter, no dizer de Wilhelm Reich. Ou acabaram por se transformar em mortos vivos, inimigos ferozes de tudo o que vive, no dizer de Pierre Levy, pós-doutor da cybercultura: “Algumas pessoas estão praticamente mortas por dentro. Buscam sugar a vida de pessoas vivas, mas neuróticas, isto é, que projetam a própria luz nos mortos vivos, incapazes que são de reconhecê-los”.

Dentre os Aliens, mortos vivos e morcenigos (vampiros humanos portadores da peste emocional do caráter, a doença mental dos encouraçados, descritos por Reich) há os fanáticos pelo ódio ao diferente. São capazes de planejar e realizar atentados terroristas que levam à morte centenas ou milhares de pessoas inocentes, pelo simples fato de não rezarem pelos dogmas de seu credo religioso. Mas há também os que matam em nome do que chamam de amor.

Matam em nome da pátria, assim como assassinam levando bandeiras de ideais sublimes de salvação do mundo ou da alma. Matam em nome do que chamam de sua “coerência”, para não levar desaforo para casa, para “lavar a honra”, por motivo fútil, de fama ou infâmia – pois que é vasta, e cresce a perder-se de vista, o câncer coletivo da insanidade humana.

No dizer do professor Roberto Romano, “O terrorista, sem receber votos, faz-se poder Legislativo e decreta leis que devem ser atendidas por qualquer pessoa, mesmo que esta a desconheça. O terrorista, sem eleição, faz-se o poder Executivo de modo ditatorial, e arranca bens e recursos de qualquer indivíduo ou grupo; sem mandato legítimo, faz-se o Judiciário, e só ele julga com justiça o mundo e seus habitantes.

Ele também exerce o poder de polícia, chegando a ser, ele também, carrasco...”. Para ele, o ventre da besta autoritária não está vazio com a morte do nazismo e do stalinismo: “Ele está cheio de ódios que ajudam bandidos a arrancar peles e músculos de crianças desvalidas, mulheres frágeis, velhos trêmulos”.

Da mesma espécie de catrumanos são também os bandidos que assaltam carros, aos gritos de “Sai, vagabunda!”, e arrastam uma criança, como inocente Aquiles, até que seu corpo frágil se desfaça... Os que perpetram tamanha atrocidade ainda encontram quem os defenda: “A culpa é dos que moram em cobertura”, insiste em dizer a autoridade que vive a denunciar que os outros nada fizeram, enquanto ele se obstina em não fazer coisa alguma.

Catrumanos, criminosos hediondos, malandros de navalha e de gravata, existem por toda parte, e se multiplicam como praga, sendo alguns justificados em nome de nobres causas, que traem e aviltam, tão logo sejam eleitos e/ou reeleitos como pais da pátria, enquanto, nas palavras proféticas do poeta irlandês W.B. Yeats, “avança sobre a maré escura do sangue, e a simples anarquia desaba sobre a terra”.


Brasigóis Felício é Poeta e Jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.


Imagem retirada da Internet: silhueta

Paulo Henriques Brito - Poema



elogio do mal





1


A uma certa distância

todas as formas são boas.

Em cada coisa, um desvão;

em cada desvão não há nada.

À mão direita, a explicação

perfeita das coisas. À esquerda,

a certeza do inútil de tudo.

Ter duas mãos é muito pouco.

Por isso, por isso os nomes,

os nomes que embebem o mundo,

e os verbos se fazem carne,

e os adjetivos bárbaros.


2


O mundo se gasta aos poucos.

A coisa se basta a si mesma,

mas não basta ao que pensa

um mundo atulhado de coisas

que se apagam sem pudor,

que se deixam dissipar

como quem não quer nada.

Existir é muito pouco.

Por isso, por isso os nomes,

os nomes que se engastam nas coisas

e sugam o sangue de tudo

e sobrevivem ao bagaço

e negam a tudo o direito

de só durar o que é duro,

e roubam do mundo a paz

de não querer dizer nada.


3


Bendita a boca,

essa ferida funda e má.




In.Antônio Miranda

Imagem retirada da Internet:mãos

Joaquim Cardozo - Poema

O RELÓGIO


Quem é que sobe as escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo compasso
Com uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinho
Na penumbra da ante-sala?
Por que resmunga sozinho?
Por que não cospe e não fala?

Por que dois vermes sombrios
Passando na face morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela porta?

Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e tenras
Nascendo do solo frio.

Um punhal feriu o espaço. . .
E o alvo sangue a gotejar,
Deste sangue os meus cabelos
Pela vida hão de sangrar.

Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo passa
Com sua capa vazia.

O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que arpejam
Na aresta do seu cristal.

No tempo pulverizado
Há cinza também da morte:
Estão serrando no escuro
As tábuas da minha sorte.


Imagem retirada da Internet: relógio

Carlos Drummond de Andrade - Poema

Madrigal Lúgubre


Em vossa casa feita de cadáveres,

ó princesa! ó donzela!
Em vossa casa, de onde o sangue escorre,
quisera eu morar.


cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,
é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.

Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido com um véu.

O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso

que o vosso sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.

Princesa: acordada, sois mais bela, princesa.
E já não tendes o ar contrariado dos mortos à traição.
arrastar-me-ei pelo morro e chegarei até vós.
tão completo desprezo se transmudará em tanto amor...

Dai-me vossa cama, princesa,
vosso calor, vosso corpo e suas repartições,
oh dai-me! que é tempo de guerra,
tempo de extrema precisão.


Não vos direi dos meninos mortos
(nem todos mortos, é verdade,
alguns, apenas mutilados).


In. Sentimento do Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2002,p.69.

Imagem retirada da Internet: na rua

Carlos Drummond de Andrade - Poema


Lembrança do mundo antigo




Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo.
Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!


In.Sentimento do Mundo. 2ªed, Rio de Janeiro: Record, 2002, p.71.
Imagem retirada da Internet: criança

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