Régis Bonvicino - Entrevista


INESGOTÁVEL MEDIOCRIDADE



O paulista Régis Bonvicino sustenta que a poesia brasileira está se tornando previsível e quantitativa Natural da cidade de São Paulo, onde nasceu em 1955, o escritor Régis Bonvicino estreou em livro com Bicho de papel, obra poética publicada em 1975. Desde então mergulhou na poesia contemporânea, como editor das revistas Poesia em Greve, Qorpo Estranho e Muda. Formado em direito pela USP, é juiz estadual de São Paulo desde 1990 e também tradutor. Em 1997, organizou, com Michael Palmer e Nelson Ascher, a antologia poética Nothing the sun could not explain, bilíngüe, publicada em Los Angeles, nos Estados Unidos. Traduziu, também, ensaios sobre o simbolista francês Jules Laforgue.

Régis Bonvicino é autor, entre outros livros, de Régis Hotel (1978), Sósia da cópia (1983), 33 poemas (1990), Num zoológico de letras (1994) e Céu-eclipse (1999), entre outros. A poesia de Bonvicino apresenta influências diversas, que vão do modernista Oswald de Andrade ao tropicalista Caetano Veloso, passando por Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto, Laforgue, Paulo Leminski, Wallace Stevens, William Carlos Williams. Nesta entrevista ao Opção Cultural, concedida aos escritores Carlos Willian, Francisco Perna e Flávio Paranhos (da revista eletrônica Bula), Régis Bonvicino não foge da polêmica. Entre os alvos de sua língua ferina estão o poeta pantaneiro Manoel de Barros e o ministro da Cultura Gilberto Gil.


• Carlos Willian Leite — A poesia se esgotou como gênero literário?

Não, de modo algum. A poesia é um gênero inesgotável. O que se esgota são certas poéticas, certos modos de se escrever poesia, certas práticas poéticas, certas épocas, como o modernismo brasileiro se esgotou, como o concretismo se esgotou, como o tropicalismo se esgotou. Daí a necessidade de se encarar poesia como ato de invenção, como ato para além das rotinas de uma literatura. Eu diria que inesgotável é a mediocridade da poesia brasileira no momento, fechada em si mesma, com tendência forte à repetição e, sempre, ao passado.

• Carlos Willian Leite — Qual o grande poema brasileiro?

Canção do exílio, de Gonçalves Dias.

• Carlos Willian Leite — Quem é o maior poeta brasileiro vivo?

Nenhum. Aliás, esse conceito é vazio, falando criticamente. É no máximo mercadológico. Pensando melhor: o maior poeta é sempre, necessariamente, “vários”.

• Carlos Willian Leite — Quais são os novos?

O que mais há, atualmente, são novos poetas. A poesia brasileira se tornou um fenômeno quantitativo, previsível. Nunca se publicou tanto e ao mesmo tempo nunca se pereceu tanto, fazendo uma brincadeira com o dístico “publish or perish”, que vigorou até os anos 1960, digamos. Posso afirmar que gosto de alguns trabalhos como o de Josely Vianna Baptista, que, todavia, não é mais uma “jovem poeta”. Gosto de Wilson Bueno, que é um prosador-poeta, na casa dos 55 anos. Creio que as opiniões de poetas sobre outros poetas são sempre suspeitas e equivocadas. Certamente, há novos poetas que são bons, interessantes. Pensando bem, eu poderia dizer a você que eu não gosto de poesia mas exclusivamente de certas manifestações, mais duras, mais viscerais, mais lancinantes.

• Carlos Willian Leite — Por que o senhor gosta tanto da poesia norte-americana?

Não leio toda a poesia norte-americana. Gosto daquela mais vinculada às tradições de inovação ou daquelas vinculadas às várias tradições de inovação, que, ao cabo, foram lidas e discutidas no mundo todo e inclusive na Europa. William Carlos William, Ezra Pound, Gertrude Stein, George Oppen e depois Robert Creeley, os Black Mountains, os Language Poets. Vou dar um exemplo: acho Elisabeth Bishop horrorosa, acho Mark Strand horroroso, etc. A poesia norte-americana do século 20 foi a única poesia americana, das Américas, que inverteu as relações entre metrópole (Europa) e colônia (América). Ela é mais inovadora do que a brasileira, por exemplo, em muitos aspectos. Mas eu gosto muito de poetas latino-americanos também, de europeus. Tenho muitos defeitos e lacunas, mas não compartilho do fechamento nacionalista abraçado — consciente ou inconscientemente — pelos brasileiros...

• Francisco Perna — Qual é a importância de Robert Creeley para a sua formação literária, sobretudo como poeta?

Creeley não foi importante para minha formação, mas sim para o alento do meu percurso já nos anos de 1990. Ele morreu no dia 21 de março último. Este sim era um grande poeta. Minha formação: Drummond, Oswald de Andrade, Álvares de Azevedo, a poesia concreta, Jimi Hendrix...

• Francisco Perna — Em As One, de Creeley, o senhor abre o livro dizendo: “Reúno, neste volume, os primeiros resultados de três anos de convivência e reflexão a respeito da vida, das idéias e da poesia de Robert Creeley...” Até que ponto essa relação de amizade entre tradutor e autor flui sem interferir na tradução?

Fui mais tradutor do que amigo de Creeley. Quando se fala em amizade, fala-se em afeto. E sem afeto não se faz nada.

• Carlos Willian Leite — Qual a distância entre a adaptação e a fidelidade literária? Traduzir é trair?

A rigor, só existe adaptação, uma adaptação mais fiel ou menos fiel. A rigor, não existe fidelidade possível entre línguas diferentes. É por isso que a tradução é sempre um desafio, um problema, um fracasso. Os conceitos de fidelidade e de traição são um pouco moralistas no que se refere à tradução. Penso que traduzir é dialogar com modelos. E isso é muito importante para uma literatura, embora sujeito ao fracasso, como eu disse.

• Carlos Willian Leite — Na tradução de A pupila do zero (En la masmédula) de Oliverio Girondo, considerado o maior poeta argentino ao lado de Jorge Luis Borges, o senhor afirma: “En la masmédula pode ser considerado um poema único, longo, composto por 36 fragmentos e/ou textos, autônomos, porém relacionados entre si em nível formal, semântico, temático”. Assim como a prosa de Joyce, a poesia de Girondo é extremamente complexa. Como foi a experiência de traduzir essa obra da escola vanguardista? Quanto tempo levou nesse trabalho?

Demorei uns cinco anos, com ajuda de amigos como Raul Antelo e o Jorge Schwartz. Foi uma ótima experiência. Aprendi muito como poeta. Discordo só da locução “escola vanguardista” porque En la masmédula refoge de classificações. É sem gênero.

• Carlos Willian Leite — Qual autor o senhor gostaria de traduzir?
O poeta norte-americano (já morto) contemporâneo do modernismo brasileiro George Oppen. Tender Buttons, de Gertrude Stein. Mas, penso mesmo é em escrever meus poemas.

• Francisco Perna — Na sua poesia, a contenção da linguagem e a feição fotográfica (aproximação do pictórico) são bem marcantes, como em Manoel de Barros. O que o senhor tem a dizer sobre a poesia dele?

Acho que a contenção de linguagem e a feição fotográfica são características encontráveis em muitos poetas. E em muitas poéticas. Sobre a poesia de Manoel de Barros: quase nada tenho a dizer... Ela me parece fácil demais.

• Francisco Perna — Quando falo de contenção da linguagem e feição fotográfica, de forma alguma busquei uma semelhança entre vocês, até mesmo porque a sua poesia, embora criação, reflete apenas o percebido (a gestalt), enquanto que em Manoel de Barros podemos ver o desregramento total dos sentidos. Ao justapor imagens, cria blocos semânticos surreais, de feição cubista, alógicos. Amalgama imagens e linguagem. Quando o senhor diz “Ele me parece fácil demais”, dá a impressão de que o senhor nunca leu Manoel de Barros. Estou certo?

Li, sim. Acho sua poesia leve, sem muita conseqüência, sem compromisso. Ela dissolve certo léxico do Rosa em situações amenas e as técnicas de composição nele me parecem aleatórias, diluídas. Prefiro poetas heavy metal, como João Cabral de Mello Neto e Murilo Mendes, pares geracionais de Manoel de Barros. Mas respeito opiniões em contrário.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre Finnegans wake, de James Joyce?

Um monumento de todos os tempos da humanidade.

• Carlos Willian Leite — Mas alguns críticos dizem que Finnegans Wake é um engodo.

Seguramente, os críticos que dizem isso é que são um engodo.

• Carlos Willian Leite — Um dos promissores nomes da crítica brasileira, Rodrigo Petrônio, disse, em entrevista, que o romance Catatau, do escritor paranaense Paulo Leminski, é uma arapuca para otários. Na condição de amigo, mas deixando de lado a camaradagem prestimosa, o que você pensa sobre a obra dele, mais especificamente sobre o experimentalismo à moda de Joyce, que norteou toda sua trajetória literária?

O jovem crítico precisa reler o Catatau. Leminski não foi experimental à moda de Joyce. Foi experimental. E deixou aí uma vasta obra, com altos (prosa e alguns poemas) e baixos (a poesia, de um modo geral), embora os seus baixos sejam mais altos do que a maioria dos “altos” dos outros contemporâneos.

• Carlos Willian Leite — Qual a diferença entre inovação e experimentação?

Você pode experimentar e não chegar a lugar nenhum mais novo, não? Inovadora foi, por exemplo, a poesia de João Cabral, no momento e no tempo em que foi feita, embora pouco experimental. Os romances dos anos 1920 de Oswald de Andrade — João Miramar e Serafim Ponte Grande — são experimentais e inovadores. São bons exemplos que me ocorrem.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre a “transcriação” dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos?

Bem, eles são os dois mais importantes tradutores contemporâneos brasileiros, goste-se ou não do resultado do trabalho deles. Acho muito bacana a teoria da “transcriação”. Ela é inovadora e bastante interessante. Acho que ela é mais do Haroldo que do Augusto. Eles precisavam introduzir uma série de poéticas por aqui, traduzindo de uma maneira diferente. E daí, creio, surgiu a idéia de teorizar a respeito da “transcriação”.

• Francisco Perna — Falando sobre tradução, como é lidar com a palavra do outro sem deixar se dominar por ela?

Olha, nunca me vi seriamente como tradutor... Mas vejo o jogo da tradução como um jogo criativo e não de dominado/dominador. Tradução é diálogo, diálogos que se travam e que se soltam.

• Francisco Perna — Com quem o senhor ficaria: Ferreira Gullar ou Paulo Leminski?

Com os dois. E com restrições aos dois, embora sejam ambos autores que produziram coisas relevantes. O Gullar começou de um modo muito original e depois se entregou a certos dialetos do modernismo brasileiro...

• Carlos Willian Leite — Onde estão os modismos na poesia de Ferreira Gullar?

Não falei em modismos mas em recaídas modernistas. Mas, sim, ele foi um autor de modismos, sim, no sentido de buscar mais, como toda a sua geração, uma geração experimentalista: do surrealismo do começo ao poema concreto e, depois, neoconcreto; do CPC ao tom modernista, que adotou posteriormente; de Poema sujo a Muitas vozes. Mas reitero que acho Gullar importante, tão importante quanto muitos outros poetas de sua geração como Affonso Ávila e Laís Correa de Araújo, como Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Gullar é importante até contra si mesmo, à revelia daquelas croniquinhas de velho que ele publica aos domingos, na Folha de S. Paulo.

• Francisco Perna — Hoje, pode-se falar numa vanguarda poética no Brasil? Quem são os eleitos?

Não, não se pode mais falar em vanguarda, em lugar nenhum, tecnicamente dizendo. Mas, aqui, no Brasil, detesta-se a vanguarda, não?, embora ela tenha criado a própria cultura brasileira em si mesma. Lúcio Costa, por exemplo, era um vanguardista. O espírito crítico das vanguardas foi o que iluminou a poesia brasileira no século 20. E o que a fez andar. Eleitos? São membros das muitas academias, que estão por aí. São aqueles muitos que estão no poder, nos jornais, nos prêmios, etc. O pessoalzinho da Geração 90, não?

• Carlos Willian Leite — O que restou do concretismo?

Acho que você deveria fazer essa pergunta a Augusto de Campos e a epígonos altissonantes como o Frederico Barbosa, não? Mas, falando sério, do concretismo restou o espírito crítico, que pode ser muito útil. O impulso antinacionalista do começo. As traduções de Ezra Pound, Mallarmé, da poesia russa, etc. A poesia de Décio Pignatari, a do próprio Augusto. As galáxias, do Haroldo. Os diálogos com a Tropicália, com o cinema marginal de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. O anticoncretismo que gerou muitos “empregos”. Restou muita coisa, que ainda precisa ser apurada.

• Carlos Willian Leite — Quem é o grande tradutor brasileiro em todos os tempos?

Não li tudo e não saberia dizer. A tradução é mais perecível do que a criação. Posso falar mais estrita e estreitamente: na minha geração, gosto do trabalho do Paulo Henriques Britto, pelo acabamento e não pelas escolhas. Posso citar Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Paulo Rónai, Gonçalves Dias...

• Carlos Willian Leite — Qual o seu melhor livro?

Sugiro que pergunte ao Alcir Pécora.

• Carlos Willian Leite — Como foi o intercambio poético com o norte-americano Michael Palmer, que resultou no livro Cadenciando-um Ning, um Samba, Para o Outro (Ateliê Editorial). Não acha que as parcerias são algo perigoso?

As parcerias são ótimas. Dessa parceria nasceu o livro Nothing the sun could not explain — 20 brazilian contemporary poets (Sun & Moon, Los Angeles, 1997), que instaurou a idéia de contemporâneo na poesia brasileira e desencadeou muitas outras coletâneas locais. Michael Palmer é um excelente poeta, diga-se.

• Carlos Willian Leite — “A continuidade da cultura mostra que só pode haver originalidade contra um pano de fundo de elementos herdados, assimilados, traduzidos.” Essa frase de Lemisnki sobre sua poesia não se choca justamente com o que o senhor faz, ou seja, a idéia de inovar fugindo do risco de fossilização da linguagem?

De modo algum. Concordo com a frase do Leminski. A invenção aparece em confrontos com a tradição — com a tradição que você escolhe.

• Carlos Willian Leite — A crítica é necessária?

A crítica cria condições políticas para que se possa fazer poesia, exatamente ao contrário do que ocorre hoje. Eu diria que a crítica hoje, no Brasil, é muito mais necessária do que a poesia e que o estado de coisas atual, degradado, está aí justamente por falta de crítica. A crítica hoje é mero marketing, mera glosa. Falta crítica com espírito crítico e analítico.

• Carlos Willian Leite — O senhor acha que existe uma crise criativa na poesia atual?

Claro! Ela está estagnada, patinando em torno de estéticas esgotadas e sem rigor intelectual, existencial, etc. Patinando em quantidades e repetições. Mas, ela existe, ao contrário do que diz a crítica uspiana, marxista, etc.

• Carlos Willian Leite — Qual sua opinião sobre a política cultural implementada pelo governo Lula, tendo à frente o ministro da Cultura, Gilberto Gil?

Populista pop, um desastre. Gil é um desastre. O Governo Lula é uma decepção. Uma esquerda da Disneylândia... Não esperava que Lula fosse um Mao Tsé Tung, mas, também, não imaginei que ele beirasse a Menem...

• Flávio Paranhos — Você acha possível fazer filosofia pela literatura?

Acho que a poesia e a prosa se enriquecem ao abrir espaços para outros discursos, como o filosófico. Mas, poesia é poesia, prosa é prosa, filosofia é filosofia. Literatura é aquilo que se quer como literatura. Veja o caso do Tratactus de Wittgenstein: é um belo poema, em sua linguagem filosófica, de base lógica. Geralmente, o tom filosófico, na poesia brasileira, se perde num tom elevado e em versos sentenciosos. O exemplo mais bem-sucedido que conheço mesmo é o de Wittgenstein, um filósofo-poeta.

• Então, qual seria mais “eficaz”? A filosofia tradicional, acadêmica, ou a filosofia na ficção, em suas diversas formas? Por “eficaz”, entenda-se uma filosofia com potencial de transformar as pessoas.

Nada transforma as pessoas hoje. As estruturas capitalistas solapam tudo, infelizmente...

• Flávio Paranhos — Quando se fala em filosofia e literatura, geralmente tem-se em mente a prosa. A poesia é tão boa quanto a prosa para se filosofar?

A poesia é boa para poetar. Boa poesia é aquela que, dialogando com outros discursos, atinge sua especificidade poética, sua irredutibilidade, sua condição evidente de poesia. Acho que o ensaio analítico é o melhor lugar para se filosofar.

• Flávio Paranhos — Você conhece alguma análise filosófica interessante da obra de um poeta que valesse comentar?

Penso imediata e genericamente em Roland Barthes.


*Esta entrevista foi originalmente publicado no Jornal Opção, de Goiânia, e na Revista Eletrônica Bula.


Imagem retirada da Internet: Régis Bonvicino

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


Noiva da água


Por Brasigóis Felício


Faz alguns anos que Yêda Schmaltz fez a passagem para a eternidade – aqui e alhures, pouco ou nada dela, mesmo sendo uma voz tão exponencial na poesia brasileira feita em Goiás – fato reconhecido em nível internacional, mesmo não tendo a poetisa entrado no circuito das editoras de renome. Também pudera! Em nosso tempo soterrado pela mediocridade, só se destaca e tem espaço o que é mundano, frívolo, trivial ou superficial. Tenho em minhas mãos o seu livro Noiva da água, publicação póstuma das editoras Kelps/UCG. A poetisa preparou esta obra com especial zelo, para comemorar seus 40 anos de lides e lutas com a palavra – labor criativo a que se entregava, mal rompia a manhã, mesmo sabendo ser esta a luta mais vã. Não deu para comemorar, nem tocar em frente sua produção tão robusta e tão incessante que chegava a afogá-la, em oceanos de metáforas, e inspiradas palavras de seu inesgotável arsenal poético.

Yêda Sahmaltz, que era terra até nas veias da alma, noivou com a água, nirvanou, entrou em núpcias com o Absoluto. No dizer de Nelly Novaes Coelho, “a noiva se tornou esposa”. Casou-se, enfim, com o amado, a amada consciência crística, que esteve sempre presente em sua alma mística, em seus estudos de mitologia, nos profundos mergulhos na alquimia e na sombra da persona (máscara), sobre que tanto falamos, em nossas conversas e trocas de textos sobre a obra de C.G. Jung e Joseph Campbell. De seu livro Noiva da água: “Alguém chegou à praia e viu seu nome./Alguém chegou à praia e viu seu nome na areia, em letras grandes/Alguém chamou outra pessoa para ver o nome à beira do oceano./Era só isso:um nome escrito,/o mar, espumas e montanhas,/no exato momento em que Copacabana/e o céu ardiam as primeiras luzes./”.

Quanto tempo medido em meses, anos, se passou, desde que a poetisa saiu do bairro Feliz, para a última viagem a São Paulo. Parece que foi ontem, mas fluíram vários janeiros dos dias de susto de viver, em que os médicos lhe disseram que tinha um vaso no cérebro prestes a rebentar. A poetisa saiu da sua casa da poesia (vizinha à casa do milho) para não mais voltar. E bem que desejava voltar para seus filhos, seus amigos, e a poesia, arte que amava e ela por ela amada.

Estranha ironia: Yêda passava por um surto criativo de tirar o fôlego. Escrevia vários livros ao mesmo tempo, mantendo intenso contato com poetas do país e do mundo, via internet. Não teria sido neste excesso de trabalho que se afogou? Ela mesma alude ao fato, em poema de seu último livro:”Não consigo conter estas palavras/que me vêm como oceanos./Esta casa repleta de palavras/ e cercada/eu nadando aqui dentro/como num sonho- afogada”. E, mais adiante: “Vou atravessando as palavras/desta casa, vou nadando/Elas é quem mandam/(...) e continuarão mentindo/descaradamente/e isto continuará para sempre/e isto continuará me espantando/”.

Sim, palavras, mesmo belas e poéticas, podem mentir e espantar, ofuscar a visão da luz essencial que as inspirou.Como escrevi, em meu livro Hotel do tempo: Para que escrever tanto, Brasigóis?Acaso não esqueceste de amanhecer, e viver? Há muita beleza a se ler – e a viajar – neste Noiva da água, legado poético Yedeano. Ao final do livro, depois de viajar por mares que navegou (ou imaginou), confessa que o seu mar é o cerrado:”Se eu abrir esta janela agora/verei mongubas e paineiras,/nenhuma pedra ou montanha:/árvores baixas, retorcidas, parecendo um sofrimento/Verei águas azuis e doces,/sem balanço/e um sol, um sol de tudo, um sol rei – Se eu abrir esta janela agora/enxugando com as costas da mão o suor da testa/ de certa forma, apertando os olhos, me verei:/ é assim o mundo que eu entendo e gosto – meu mar salgado é no meu rosto/”. Mesmo sabendo que Yêda viajou para o mar absoluto para onde todos iremos um dia, não resisto à confissão: saudades de sua fraternura, do sorriso e da alegria da querida amiga e grande poetisa!


Imagem retirada da Internet: Yêda Schmaltz

Hércules Ribeiro Martins - Poema
















tempo de poesia



miguel possui a benção da vida
nos profundos olhos negros
que joão enfeita de quase verdes
e pretextas riscas azuladas

é tanta poesia enfeitando o quarto nestas
madrugadas



Imagem retirada da Internet: tempo

Hércules Ribeiro Martins - Poema


              aviso



              não deixe a porta aberta quando eu sair

              fosso de irremediável ilusão

              é uma porta aberta


              tranque-a

              e recolha todas as chaves


              porque sou daqueles

              que olham pra trás

              sou daqueles

              que voltam


Imagem retirada da Internet: porta

Hércules Ribeiro Martins - Poema



              hemisférios



              existia uma face

              que comigo vivia

              ostentava, fingia

              e bebia demais


              por trás

              doutra face

              apartada

              (que era minha face, também hemisfério,

              do homem sério que sou demais)

              voltada às coisas

              que a incoerência faz


              o mundo e as guerras, a fome, a sede

              eu numa face que bebia demais


              só que a noite tirou-me o sono

              e no hemisfério do abandono

              que minha outra face

              desfaleceu e refletiu

              esse mundo que verdades esconde demais


              temi que esta face

              tomasse a outra face

              e eu passasse a viver

              de disfarces demais

              minhas histórias



              quando as conto desconto as reticências

              e me abrevio

              porque somente entende a mesma coisa

              quem coisa igual se revelou


              e é bom que eu veja neste instante

              o quanto viajante ainda sou

              desmontando a tenda, resumindo a lenda

              cantando o estribilho

              que volta sempre

              ao mesmo lado que nem sei se estou


              é duro arder na onda infiel dos dias

              tramar fazer interessar as cenas

              ratificar, se desculpar, rever-se

              nos mesmos fiascos das

              razões pequenas


              tiveram todos os mesmos dilemas

              sofreram o tanto ou mais que as pequenas razões

              destas pequenas glórias


              e todos não vivem a repetir memórias

              repisar as delusões e o engodo

              de reprisar sempre as mesmas histórias


          • Imagem retirada da Internet: uma parte

Francisco Perna Filho - Conto


Encontro de amigos


Fui o primeiro a chegar, tudo era silêncio, as luzes ainda estavam apagadas. Entrei, deixei alguns livros sobre a escrivaninha, sentei-me e fiquei esperando para ver quem entrava depois de mim.

Era muito cedo, li alguns textos, fiz algumas pesquisas, conferi a manchete dos principais jornais, e esperei. Por algum momento, tive a impressão de que alguém havia chegado. Pura impressão! Somente eu permanecia ali.


Impacientei-me, deixei um aviso de que eu estava presente, mas que me ausentaria por um instante. Saí, fui à padaria da esquina, tomei um café delicioso, li o jornal diário, e voltei para interagir com os amigos, mas nada, eles ainda não tinham chegado. Fiquei preocupado, será que eu me enganara quanto ao horário? Não! Pude ver que já passava das oito e eles não chegavam, ninguém dava sinal de vida.


Resolvi adiantar umas atividades, escrevi algumas páginas, permaneci ali na expectativa, coloquei uma música e deixei-me embalar. Imerso que estava na música, não me dei conta de que Marcelo acabara de entrar. Chegou, permaneceu quieto, não falou com ninguém, apenas anunciou que chegara. Depois de constatado sua presença, respeitei seu desejo de ficar isolado, também permaneci quieto.


Após Marcelo, entraram Karine, Paulo e Rodrigo, todos eles pareciam cumprir um ritual, se portaram como Marcelo, silenciosamente. A princípio, fiquei apreensivo, imaginando que eles tivessem alguma coisa contra mim, mas depois percebi que era paranóia minha.


Lembrei-me de outras situações, de outros espaços, de outros lugares. Quantas vezes ficamos desconfiados, aturdidos, desolados, só porque alguém que a gente conheceu passa por nós, não nos cumprimenta, como se não existíssemos, como se o conhecimento de outrora, o bate-papo, as piadas, as gargalhadas, a roda de amigos, nada disso importasse, tivesse um pouquinho de valor, até descobrirmos que a pessoa era míope e havia esquecido os óculos em casa.

Ponderei nas minhas observações. Fiquei meio hesitante quanto a puxar conversa, mas arrisquei um “Oi!”. Não logrei êxito, a pessoa, não vou falar o nome, pois pega mal, simplesmente não me deu atenção, estava ocupada. Vê se pode, numa manhã como aquela, tranquila, ainda muito cedo, a pessoa já está ocupada, faz-me uma desfeita dessas. Logo para mim que nunca que lhe neguei uma palavra, uma resposta; que quase nunca me disse ocupado. Não porque não trabalhe, muito pelo contrário, mas por achar indelicado negar uma palavra para um amigo, mesmo um conhecido, ou colega de trabalho, como queiram as designações.


Continuei com o meu trabalho, quando entraram Rosana, Madel, Bôsco, Jádson e Maurício, todos eles de uma só vez, já passava das nove da manhã, muito tarde para um dia de trabalho, mas cada um tem seus motivos. Madel acenou com uma carinha alegre, pediu minha atenção e disse: Compadre, estou achando você muito sério hoje, o que lhe aconteceu? Achei graça da carinha, e respondi com outra carinha de tristeza, dizendo, em seguida, que de fato estava um pouco entristecido, por imaginar que ninguém me dava atenção, mas que o meu humor, depois dessa receptividade toda por parte dela, já começava a melhorar.


Trocamos mais algumas palavras, falamos do óbvio, nos aquietamos nos nossos afazeres, e o tempo passou. Era mesmo um dia frio, frio não somente pela temperatura do ar condicionado naquela sala, exageradamente 17º graus, mas pelo clima que se instalara ali, não sei se somente da minha parte, uma vez que as outras pessoas sorriam, trocavam palavras, olhares. O que sei, de fato, é que o mar parecia não estar para peixe, muito menos para pescador.


O telefone tocou, não o meu, o da sala, e todos, absortos nos seus afazeres, permaneceram ali, sentados, totalmente alheios ao que se passava exterior aos seus afazeres. Tive de me levantar, atravessei a sala, entrei na cabine de vidro, onde o chefe ficava, e atendi o bendito, digo, o estridente telefone. Ninguém, simplesmente ninguém, do outro lado da linha. Era mesmo uma manhã atípica. Não me aborreci, simplesmente voltei para o meu lugar e prossegui viagem nos meus afazeres.


Mais uma vez tive de ausentar-me da sala, mas deixei um recado, eu precisava ir urgente ao banheiro. Logo na saída esbarrei com a moça do café, que vinha abarrotada de garrafas e odores, contagiando todo o corredor por onde passara. Olhamo-nos, ela entrou, eu saí apressadamente. Como diz o ditado: “um pé lá, outro cá”. Foi desse jeito, eu estava muito envolvido com o meu trabalho e tinha pouco tempo para realizar aquela atividade. A minha pesquisa, aparentemente banal, me tomaria muito tempo ainda.


Quando voltei, recebi um recado: “durante a sua ausência Maurício tentou falar com você”. Eu pensei comigo, esse cara é muito estranho. Nós estávamos tão próximos, ele sabia que eu estava ali, anunciou quando chegou, passamos, desde a sua chegada, mais de duas horas próximas, para ele só puxar conversa quando eu me fizera ausente. Isso só pode ser gozação, pensei. Mas tudo bem!


Depois dessa do Maurício, eu resolvi agir. Pensei comigo mesmo: você não vai perder nada, muito pelo contrário, você só tem a ganhar. Arrisquei uma conversa com o Bôsco: olá! mas nada de resposta. O camarada simplesmente não me respondeu, achei-o grosseiro, mal educado e prepotente. Nada disso, era só julgamento precipitado, na verdade, o cara não havia percebido que eu falava com ele, estava mergulhado até a tampa nos seus afazeres, mas, após uns dois minutos, ele me respondeu: amigo, desculpe-me, é que eu precisava entregar um relatório agora de manhã, sem falta, e tive de terminá-lo com urgência, os homens precisavam dele.

Fiquei aliviado, era só impressão minha. Talvez com os outros também ocorresse o mesmo. Cada um nos seus afazeres, prioritariamente o ganha-pão, depois as conversas, as piadas, as gozações. Falamos amenidades, refletimos sobre o momento político, sobre os desmandos e escândalos: tudo igual, só o disfarce é que muda, disse-me.

Perguntou-me o que eu iria fazer no final da tarde, eu disse que não tinha nada programado, que pensava em sair para tomar uma cervejinha. Tudo bem, disse ele, é isso mesmo, uma cervejinha. Aonde vamos, perguntou-me. Não sei ainda, respondi. Que tal o Toscana? emendei. Perfeito, disse ele. - Então tá combinado, respondi. Voltamos para os nossos afazeres.

Depois daquele caloroso bate-papo, resolvi passar tudo a limpo, sem receio nenhum, chamei para conversar: Karine, Rosana, Jádson, Paulo, Rodrigo e Marcelo, com todos eles tive papos para lá de amistosos, reconhecemos que estávamos em dívida uns com os outros, que precisávamos sair, nos falar mais, foi quando eu lhes comuniquei que havia marcado com o Bôsco, no Toscana, eles acharam maravilhoso. Combinamos às seis.

Eu simplesmente estava feliz, quase feliz, pois ainda faltava o Maurício, que estava ausente. Resolvi ligar para ele, falou-me que teve de sair às pressas, pois tinha uma audiência às 9h30, e que não podia se atrasar. Falei do nosso encontro, ele acenou positivamente.


Estavam o Jádson, o Maurício e a Karine, todos muito animados, quando eu cheguei. Abraçamos-nos, foram minutos de sorrisos e brincadeiras. Nisso foram chegando os outros: Paulo, Rodrigo, Marcelo, Rosana e Madel. Foi uma grande festa, juntamos mais duas mesas, e a diversão havia começado sem tempo para acabar. Varamos a noite, já passava das duas, quando resolvemos ir embora.


Embalados pelos chopes, nos despedimos com promessas de nos encontrarmos mais vezes. Desejamo-nos boa sorte, felicidades. Mais uma vez, abraçamo-nos, pedimos a atenção de cada um ao volante, e o cuidado com os bafômetros. Em coro, cantamos: Se vai dirigir, não beba; Se vai beber, não dirija, e completamos: mas se já bebeu e tem de dirigir, vá belezinha pra casa. Foi quando a Madel falou: Amigos, a amizade tem de ser presencial, vamos nos encontrar mais vezes, chega de Messenger.

Manoel de Barros - Poema



Desejar ser





1

Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.



2

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu
sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder
andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde,a
subir a ladeira do beco, torto e deserto...toc ploc toc
ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta,todo mundo ha-
veria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo
a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.


In.Livro sobre Nada. Manoel de Barros. Rio de Janeiro: Record, 1996, p.37,39.
Imagem retirada da Internet: linhas tortas

José Antônio Cavalcanti - Ensaio Crítico



O reino deste mundo, de Alejo Carpentier é relançado no Brasil



Por José Antônio Cavalcanti, Jornal do Brasil





RIO - Alejo Carpentier, juntamente com Lezama Lima e Severo Sarduy, integra a santíssima trindade da prosa ficcional cubana. Filho de pai francês e mãe russa, de quem herdou o amor à música – forte presença em seus textos – incorpora à obra a fusão de universos distintos, conciliando o pleno domínio dos recursos técnicos com uma poderosa imaginação. Apesar da experiência europeia e do convívio com os surrealistas, sua literatura é um marco da literatura latino-americana.


O relançamento do romance O reino deste mundo – pela Martins Fontes, em nova tradução, a cargo de Marcelo Tápia – é uma oportunidade de o leitor mergulhar em uma história hipnotizante. O livro, escrito em 1949, recria os acontecimentos que levaram à independência do Haiti, em 1803. O movimento liderado por Toussaint LOuverture, Henri Christophe e Jacques Dessalines criou o primeiro governo negro e a primeira monarquia das Américas ao dividir o país em duas regiões com regimes políticos diferentes: ao sul, uma república; uma monarquia, ao norte.


A saga do povo haitiano, aliás, já despertara o interesse de Vitor Hugo, cujo romance Bug-Jargal, de 1828, trata das relações entre escravos e franceses, e do poeta Lamartine, autor de Toussaint LOuverture, poema dramático sobre o herói da independência haitiana, publicado em 1860.

A primeira parte da narrativa apresenta Ti Noel, o protagonista, escravo de Monsieur Lenormand de Mezy, e fio condutor dos acontecimentos dos quais participa desde a juventude. Carpentier se vale dos dois para apresentar o universo do colono europeu e o mundo do negro haitiano, porém o narrador claramente assume o ponto de vista do oprimido. O capítulo inicial já apresenta uma comparação desfavorável à cultura europeia: “Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; sua semente preciosa engrossava, em centenas de ventres, uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, em contrapartida, o rei enviava seus generais para o combate, era incompetente para dirimir litígios, deixava-se repreender por qualquer frade confessor (...), não fazia mais que gerar um príncipe debiloide, incapaz de acabar com um veado sem ajuda de seus monteiros, a quem designavam, com inconsciente ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como era o delfim”. A crença de Ti Noel em uma África mítica resulta da influência de uma figura extraordinária, Mackandal, cuja presença domina a ação na parte inicial.

Carpentier desmonta, com o recurso de metáforas e ironia, o absolutismo de uma razão autocrática, objetivista, com pretensão de pleno domínio sobre o real, transformado em prisioneiro de seus dogmas. Mackandal é peça-chave nessa desmontagem. Antecessor dos líderes da independência, resistia à escravidão com recursos extraordinários. Grande orador, tentava unir os negros para promover a libertação. Afirmava poder prever o futuro e convence os escravos de sua propriedade imortal. Embriagado, termina preso e queimado em execução pública. Carpentier tira proveito magistral dessa personagem histórica, ao fazer com que nela se cruzem, no plano ficcional, as linhas da resistência e da mandinga. O negro xamã extrai da natureza, sob a forma de ervas destinadas ao envenenamento dos colonos europeus, conhecimento para municiar a revolta. O maneta Mackandal, ogã do rito Radá, promove uma insurreição invisível. Anula a própria morte, reescrevendo em um voo fantástico seus laços secretos com a imortalidade. Não há fim para um corpo com o poder de transformar-se em animal de cascos, em ave, peixe ou inseto. Mackandal, num processo de proliferação barroca, escapa à dominação europeia ao movimentar-se fora da lógica que a preside.


Monsieur Lenormand de Mezy, na segunda parte, após a perda da mulher e tornar-se tarado e bêbado, contrai núpcias com uma atriz decadente, Mademoiselle Floridor. Irrealizada na arte, vale-se da posição hegemônica para simular, de modo cômico-grotesco, a representação de papéis que jamais lhes seriam atribuídos para uma plateia atônita, convocada à força a um espetáculo cuja legibilidade lhe escapa. A palavra “crime”, única ponte entre o francês e o creóle, desprega-se do texto para estigmatizar a insana declamadora, razão pela qual os escravos passam a olhar a atriz como mais uma criminosa fugitiva da metrópole como tantas outras prostitutas. Civilização e opressão formam uma estranha rima nos trópicos.


A ação narrativa incide, na segunda parte, sobre Bouckman, o Jamaicano. Líder sem o encanto de Mackandal, suas ações são alimentadas pelo eco das ideias que promoveram a Revolução Francesa. Monsieur Lenormand de Mezy, em visita a cidade do Cabo, descobre que “a assembleia constituinte, integrada por uma chusma liberaloide e enciclopedista, concordara que se concedessem direitos políticos aos negros, filhos de manumissos”. Tudo parecia anunciar a revolta dos escravos, o que não demora a ocorrer. A rebelião, entretanto, não obtém êxito. A cabeça de Bouckman, fincada no mesmo lugar da morte de Mackandal, é testemunha inerme da violenta perseguição e extermínio dos sobreviventes.


Arrastado pela fuga de Mezy para Santiago de Cuba, Ti Noel descobre, horrorizado, o embarque de cães enviados a ilha de São Domingos com a finalidade de devorar os negros rebeldes. De Mezy compartilha uma vida social marcada pela degradação: “Um vento de licenciosidade, de fantasia, de desordem, soprava na cidade”. Nobres e colonos fugitivos montam, com um tesouro de ruínas, uma versão decadente do poder colonial reduzido agora ao reino do salve-se quem puder. Ti Noel também encontra nas igrejas espanholas um mundo próximo ao da magia do vodu: “Os ouros do barroco, as cabeleiras humanas dos Cristos, o mistério dos confessionários repletos de ornamentos, o cão dos dominicanos, os dragões esmagados por santos pés, o porco de Santo Antão, a cor parda de São Benedito, as Virgens negras (...) tinham uma força envolvente, um poder de sedução pela pompa, pelos símbolos, atributos e signos, parecidos com o que se desprendia dos altares do houmforts consagrados a Damballah, o Deus Serpente”.


O narrador introduz no relato Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão e esposa de Leclerc, enviado no comando de uma expedição de 25.000 soldados com o intuito de acabar com a rebelião dos jacobinos negros. Inicialmente simpática à realidade americana e numa proximidade cúmplice com o escravo Solimán, entra em pânico após a morte do marido, vitimado por um estranho vômito negro. O retorno apressado de Paulina para a Europa simboliza a derrota definitiva dos franceses: “Agora os Grandes Loas favoreciam as armas negras. Ganhavam as batalhas aqueles que tivessem deuses guerreiros para invocar. Ogún Badagrí guiava as cargas de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão”.


Na terceira parte do livro, Ti Noel regressa ao Haiti na condição de homem livre, pois a revolução de Jean-Jacques Dessalines triunfara com o auxílio de “Loco, Petro, Ogum Ferraille, Brise-Pimba, Caplaou-Pimba, Marinette Bois-Cherche e todas as divindades da pólvora e do fogo”.


Ti Noel, subitamente dono da fazenda do antigo senhor, espanta-se com os pomposos uniformes napoleônicos dos soldados negros. O assombro é maior ao descobrir o luxo de Sans-Souci, a residência predileta de Henri Christophe. O soberano, em um esforço radical para livrar-se do peso da mística africanista, cria uma côrte com aparência francesa e abraça o catolicismo com fervor. A incursão a Sans-Souci foi desastrosa para Ti Noel, novamente escravizado, trabalha na construção da Cidadela de La Ferrière, símbolo da megalomania do monarca. Ti Noel é salvo das garras da tirania graças à rebelião contra o despotismo do rei. Sem saída, abandonado por todos, o ex-cozinheiro coroado suicida-se.


Um dos saqueadores do Palácio de Sans-Souci, o velho Ti Noel, na parte final do livro, volta à antiga moradia de Lenormand de Mezy, preenchendo os escombros com os produtos do saque. Sua tranquilidade, porém, é interrompida pela chegada dos agrimensores, expressão da nova realidade política haitiana: os mulatos republicanos haviam formado uma nova casta opressora que espalhava o terror no campo e obrigava os camponeses a buscarem refúgio nas montanhas. Exausto de tanta miséria e opressão, Ti Noel adquire as propriedades mágicas de Mackandal, transforma-se em ave, garanhão, vespa, formiga, ganso e abutre, convertendo-se em habitante invencível do reino da magia.


Na famosa introdução ao romance, considerada por Emir Rodriguez Monegal o “prólogo do novo romance latino-americano”, a preocupação com a documentação e a verdade histórica dos acontecimentos não apaga a consciência de que o fictício formula uma realidade além do factual, alcançando, por vezes, graças ao artifício, à deformação e ao insólito, uma proximidade visceral da experiência humana. O “real maravilhoso”, a controversa proposta apresentada por Carpentier no prólogo, ultrapassa os limites do romance; a iluminação e o alargamento promovidos pela proposição estética transformam o Haiti em metonímia da América. Pouco importa se o maravilhoso é um conceito europeu, ou se Carpentier projeta na expressão seu passado surrealista. O reino deste mundo, assim como Os passos perdidos e O recurso do método, é uma obra-prima cuja força não se esgota apenas na prodigiosa fusão temática de elementos oriundos de culturas diversas, mas brota de uma barroca arquitetura textual erguida com maestria por um olhar impensável fora do universo americano.

20:10 - 19/03/2010

Sinopse do livro
Recriação incomparável dos acontecimentos que precederam a independência haitiana até um Haiti em pleno período republicano a transição de colônia francesa governada por brancos para uma nação negra regida pelo primeiro monarca coroado no Novo Mundo. Estimulado pela prodigiosa história original e valendo-se de um magistral domínio dos recursos narrativos, Carpentier recria nesta obra um mundo exuberante, descomedido e legendário, inaugurando o que foi chamado de real maravilhoso (ou realismo mágico).


Imagem retirada da Internet: Alejo Carpentier

José Gomes Sobrinho - Poema









Eu sou daqui



Eu sou daqui

Como sou de todos os lugares

onde vivi


Eu sou de Palmas

cidade que eu gostaria

que tivesse mais alma


Que mostrasse nas janelas

um pouquinho da saudade

que precisa ser coberta

pela mais pura amizade


Eu sou daqui

como ainda sou de todos os lugares

onde fui (e sou!) amado


Quando eu me for

para onde for

quero deixar muito vivo

o meu recado de amor


Eu sou daqui sou dali

serei de todos os lugares

onde me abram os braços

e me abracem com calor


Mas sei que sou

- principalmente -

desta Palmas que precisa

- com urgência -

derrubar os muros frontais

de suas casas

e avizinhar-se

dando-se muito mais

amado-se muito mais.



In. Fio de Prumo

Imagem retirada da Internet: Palmas

Francisco Perna Filho - Crônica


A dor da gente é dor de menino acanhado
Menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar
Que salta aos olhos igual a um gemido calado
A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar
Moinho de homens que nem girimuns amassados
Mansos meninos domados, massa de medos iguais
Amassando a massa a mão que amassa a comida
Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais
(Raimundo Sodré)



O Silêncio dos Inocentes*




Por Francisco Perna Filho



Uma das coisas mais abjetas praticadas pelo ser humano é a tortura, seja ela física ou psicológica. Ato desumano, covarde, perverso e indigno. Atenta contra o que há de mais caro ao ser humano, sua liberdade.

Pelo menos é praxe na história universal que as torturas atendam a fins vários, mas, primordialmente, o que se sobressai é a de retirar do torturado confissões sobre algo que ele sabe ou que supostamente poderia saber sobre pequenos delitos ou sobre crimes mais graves.

Os métodos são vários, utilizados desde muito pela humanidade, como o fez a igreja Católica naquilo a que chamou de santa inquisição - na Idade Média - quando utilizou toda forma de aparelhos de tortura, como alicates, tesouras, garras metálicas para destroçar seios e mutilar órgãos genitais, barras de ferro aquecidas e chicotes. Os métodos eram vários, o que importava era a eficácia para obter informações sobre bruxaria, satanismo e outras loucuras inimagináveis. Tudo em nome de um deus que não era o nosso.

Há notícias de que o padre dominicano Bernardo Guy (Bernardus Guidonis, 1261-1331) escreveu o livro Liber Sententiarum Inquisitionis (Livro das Sentenças da Inquisição) no qual descreve vários métodos utilizados para obter confissões dos acusados, tanto físicos como psicológicos, dentre os quais o de obrigar a vítima a ingerir urina e excrementos.

Se na Idade Média as práticas beiravam ao rudimentar, na modernidade ganharam sofisticação, como as câmaras de gás ou os campos de concentração, criados pela bestial figura de Adolf Hitler. Nas ditaduras espalhadas pelo mundo, milhares de pessoas sucumbiram nas mãos carniceiras de hediondas figuras. No nosso País não foi diferente, milhares de estudantes, pais e mães de família foram maltratados, torturados e mortos em nome de um regime de exceção.

Dos métodos utilizados pelos torturadores brasileiros, alguns chocaram e ainda chocam a todos, como seguem: Choque elétrico, Pau-de-arara, Cadeira de dragão, Afogamento, Telefone, Palmatória, Espancamento, Esbofeteamento, Empalamento, Queimadura com cigarros, Geladeira, Mordida de cachorro, Coroa de Cristo, Violação sexual, Arrancamento de dentes, Injeções de éter subcutâneas, Arrancamento de unhas, Soro da “verdade” (Pentotal), Fuzilamento simulado, Ameaça de morte (à própria pessoa, filhos, companheiros etc), Assistir à tortura de companheiros, Aplicar torturas em companheiros, Desorganização temporo-espacial.

Como se vê, a bestialidade humana se supera a cada tempo, às vezes nos pega de surpresa, nos deixando estarrecidos, como foi o caso da menina L. de 12 anos, torturada aqui em Goiânia pela “empresária” Sílvia Calabresi, 42, que, sem sombras de dúvidas, conhecia muito bem os métodos medievais de tortura descritos acima. O que choca, além do ato covarde da tortura, é a frágil figura torturada, sozinha, indefesa, obrigada a toda forma de humilhação e dor.

O que choca é saber dos gritos silenciosos desta criança, das dores da alma que persistirão por toda vida. O que choca é a indiferença de tantas pessoas à dor desse ser tão fragilizado. Oh, Deus! Pelo menos o que se tem lido sobre tortura é que os torturadores buscam, a qualquer preço, a confissão de suas vítimas, confissão de algum delito, de alguma trama. E dessa pobre criancinha, que confissão ela buscava obter?

Fora brutalmente maltratada, alijada do que se tem de mais caro, o direito à infância e à liberdade. Não estudava, passava dias sem comer, trabalhava até 1h40 da madrugada, retomando o trabalho doméstico às 5h. Viveu todo tipo de humilhação, inclusive métodos medievais, como ingerir fezes e urina de cachorro. Era constantemente amarrada, queimada com ferro elétrico, tinha as unhas mutiladas, a língua mutilada, era amordaçada, sendo obrigada a ficar por horas com um pano, dentro da boca, embebido por pimenta, a mesma que lhe era aplicada nos olhos.

Como deve ter sofrido esta menininha, meu Deus. Como deve ter clamado por socorro, silenciosamente. Uma coisa me chamou atenção, o paradoxo do ato: ao mesmo tempo em que torturava, que buscava não sei que tipo de confissão, tapava a boca da menina, não permitindo que ela falasse. Arrancava-lhe pedaços da língua. Por pouco não tivemos mais um serial killer, pela forma como vinha agindo, consciente dos seus atos, já havia torturado outras crianças, agora era só intensificar as sessões de tortura, até não se contentar mais com a dor física, buscando a morte.

Transtorno? Transtornados ficamos nós, ao assistirmos boquiabertos ao sadismo dessa besta, dessa psicopata, que, ajudada pela empregada doméstica, Vanice Maria Novaes, 23, cometera tamanha brutalidade. O que impressiona é que a empregada doméstica em vez de defender a criança das atrocidades da patroa, age contrariamente, e também passa a torturar a sua igual, o que nos remete a Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no Capítulo LXVIII / O Vergalho , quando um ex-escravo, Prudêncio, açoita outro em praça pública e, questionado pelo antigo patrão sobre o porquê daquele ato, recebe com resposta: “É um vadio e um bêbado”, a essa fala, segue a seguinte reflexão de Brás Cubas:

(...)Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!(...)

Recorremos à ficção na tentativa de uma compreensão do real, mas não há compreensão quando os casos se multiplicam, como os maus tratos do aposentado Ovídio Martinelli, de 93 anos, que sofre do mal de Alzheimer, e foi espancado pelas suas “cuidadoras” Rosângela Pereira Coutinho, de 44 anos, e Patrícia Santos Alves, de 25. Cenas chocantes que nos deixam indignados, estarrecidos, sofridos, principalmente quando são cometidas contra seres tão frágeis e indefesos, e por saber-se que os atos não são praticados por estranhos, mas por pessoas tão próximas, que ainda ousamos chamar de próximos e sempre oferecemos a outra face.


* título deste texto foi tomado de empréstimo ao filme (Silence of The Lambs, The, 1991), dirigido por Jonathan Demme.

Este texto foi publicado originalmente na Revista Bula, por ocasião da bárbara notícia de tortura praticada pela "empresária" goiana Sílvia Calabresi, 42, contra a menor L., de 12 anos.
Imagem retirada da Internet: Tortura

Francisco Perna Filho - Poema







Para Rosana Carneiro Tavares







VISITAÇÃO



Quando os meus olhos
já cansados de tantas buscas,
amarrados por um certo tempo a uma linha qualquer
perdida no caos do porto,
eu, aflito e insone,
perpetuando as mágoas
de um marinheiro afoito ante o mar tão caudaloso,
revivo nos teus olhos a paz tão procurada
e deposito no teu corpo a agonia de tantas noites perdidas,
na incessante procura de quem habita os bares de fuga e
canto.

E eu, um homem só,
sem coragem de voz
e congelado na inércia deste apartamento,
aliviado pelo barulho insípido da chuva que chora
compassadamente,
na compreensão dos gritos e soluços,
que maquinalmente eu não consigo emitir,
uno-me aos teus passos
e no movimento do teu corpo redescubro a vida
há tanto desaconselhada ao meu irresoluto ser.

E agora,
com a paz que os teus olhos me trouxeram,
irmanada pela vida redescoberta no meu ser,
restabeleço-me com a força dos teus passos,
aos passeios de vento e vela,
e durmo o sono adolescente,
para reinventar uma nova manhã
de pesca,
barco
e mar.


In.Visgo Ilusório. Goiânia:Kelps/PucGoiás, 2009, p.35-36.
Imagem retirada da Internet: Cais do porto

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