Heloísa Buarque de Holanda - Entrevista


Esta entrevista com a professora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda, concedida à publicitária Tainá Corrêa e aos escritores Carlos Willian Leite e Francisco Perna Filho, foi originalmente publicada no Jornal Opção e na Revista Bula.




ENTREVISTA COM HELOÍSA BUARQUE DE HOLANDA




Heloísa Helena Oliveira Buarque de Hollanda é ensaísta, escritora, editora, crítica literária e pesquisadora brasileira. É também Professora Titular de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ) e da Biblioteca Virtual de Estudos Culturais (Prossiga/CNPq) e diretora da Aeroplano Editora Consultoria Ltda. Foi também Diretora da Editora da UFRJ e do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.


Francisco Perna Filho – Passados vinte e oito anos da primeira edição da antologia “26 Poetas hoje” que, naquela época, foi tida como ousada ao propor, no seu prefácio, uma subversão da expressão intelectualizada; a recuperação do coloquial numa determinada dicção poética, bem como, um circuito de produção e distribuição independente. Para senhora, os resultados foram satisfatórios. Fale-nos um pouco sobre isso.

Heloísa Buarque de Hollanda - Para mim foram satisfatórios e ao mesmo tempo inesperados. Satisfatórios porque me interessava estimular o debate entre os pesquisadores e criadores de literatura sobre a quebra de paradigmas que se processava naquele momento em todas as áreas do conhecimento e da produção artística. E isso foi muito bom. Na repercussão crítica da antologia, fosse ela negativa ou positiva, discutiram-se como nunca as questões de valor, qualidade, tendências e relações da literatura com o mercado editorial e com a sociedade em geral. Inesperados porque aqueles poetas rebeldes e marginais de ontem entraram para o cânone literário.

Carlos Willian Leite – A poesia marginal foi mais um sintoma de uma época do que uma elaboração da linguagem. Passados 30 anos, por que continua existindo esse fascínio exagerado com os poetas malditos?


Heloísa Buarque de Hollanda - Porque a maldição é fascinantes mesmo. Ela contém uma taxa alta de resistência, de atuação fora da norma, de liberdade, que se oferece de forma irresistível para os criadores e para nós, pobres trabalhadores intelectuais com baixa expectativa de transformação a curto e médio prazos.

Francisco Perna Filho – Recentemente, o autor Bernardo Carvalho, no seu Romance Nove Noites, ao misturar ficção com fatos reais, demonstrou-nos quão tênue é a linha entre ficção e realidade, o que, para muitos, apesar do caráter verossímil, soaria como falso e provocaria um enfraquecimento do texto. Como a senhora vê isso?


Heloísa Buarque de Hollanda - Vejo a mistura de ficção e realidade, existente na obra de Bernardo de Carvalho, como a expressão de nosso cotidiano mais corriqueiro, que se encontra inserido, de forma irreversível, na cultura do espetáculo e do simulacro o que, do meu ponto de vista, fortalece ainda mais o texto de Nove Noites.

Carlos Willian Leite – A queda vertiginosa do nível intelectual dos escritores fez com que surgissem fenômenos como Paulo Coelho; qual sua opinião sobre ele e sobre o amesquinhamento da linguagem observado na última década?


Heloísa Buarque de Hollanda - Não há dúvida de que entramos numa sociedade de mercado. E nesse quadro a existência e o sucesso de autores como Paulo Coelho e inevitável. Querendo ser otimista (um velho traço meu), olhada da perspectiva do nosso mercado editorial, infelizmente ainda tão frágil, esse tipo de obra pode até ser avaliada como positiva.

Francisco Perna Filho – Ainda no aspecto da representação, olhando pela ótica aristotélica, é possível se falar em ética na poesia?

Heloísa Buarque de Hollanda - Acho que não só se pode, como nesse momento Bush, deve-se.

Carlos Willian Leite – O Rodrigo Petrônio disse que a maior parte da obra do Paulo Leminski oscila entre o fraco, o muito fraco e o péssimo. E que o romance Catatau é uma arapuca para otários. Concorda com ele?


Heloísa Buarque de Hollanda - Concordo não. Com o tempo foi ficando claro para mim que não há só uma régua para se medir o valor e a qualidade da produção artística. Leminski até hoje mobiliza um público de leitores jovens e não tão jovens, certamente porque expressou de forma bastante eficaz o ethos de seu momento geracional e político.

Tainá Corrêa – Me perdoe, até porque sei que já te perguntaram isso – mas o Bruno Tolentino é realmente necessário à poesia brasileira?


Heloísa Buarque de Hollanda - Eu não li o Bruno Tolentino então não posso responder a essa pergunta.

Carlos Willian Leite – Ainda existe vanguarda?


Heloísa Buarque de Hollanda -No sentido das vanguardas históricas dos anos 20 e 50, acho que não. Mas no sentido da expressão de um desejo radical de transformação da arte e da sociedade acho que sempre vai existir. Essa não morre nunca.

Tainá Corrêa – Quem foi o maior poeta marginal?


Heloísa Buarque de Hollanda - Carlos Drummond de Andrade, sem sombra de dúvida.

Francisco Perna Filho – Sendo a poesia um produto de difícil consumo, tanto do ponto de vista intelectual, quanto da acessibilidade (preços elevados dos livros). As antologias seriam uma boa saída para formação de novos leitores, apesar de elas provocarem um empobrecimento ao não permitirem um conhecimento mais aprofundado sobre o poeta ali representado?


Heloísa Buarque de Hollanda - É difícil responder a essa questão porque existem muitos tipos de antologias com projetos editoriais diferentes. Então falar de antologias de foram geral é muito complicado. Existem as antologias de grupos ou movimentos literários que marcam território (e algumas até tornam-se obras clássicas), existem aquelas de intenção político-literário que é a de intervir no debate intelectual que é a que eu faço, existem as facilitadoras, que reúnem “as mais belas poesias de todos os tempos” que são interessantes como divulgação e formação de leitores (que, quem sabe, passarão a ler os poetas por si), e tantas outras. O que acho interessante no gênero antologia é quando ela assume seu caráter autoral, não representativo, de montagem arbitrária, de trabalho de crítica literária (como a organizada por Manuel Bandeira, belíssima).

Carlos Willian Leite – O que sobrou do concretismo?


Heloísa Buarque de Hollanda - Pelo menos 40% do que é feito hoje.

Tainá Corrêa – Qual a distancia entre intertextualidade e o plágio?


Heloísa Buarque de Hollanda - a Tainá sempre faz perguntas provocativas. E eu gosto delas. Acho que nesse momento de crise da legislação dos direitos autorais, do debate sobre o creative commons, uma legislação que flexibiliza a proteção autoral na direção do suporte para criadores coletivos, ou como é mais conhecida para a “pirataria criativa”, que se propaga cada vez mais especialmente na música e nas vanguardas das artes plásticas, o assunto se desloca para a pergunta: até onde a própria noção de autor vai se sustentar nesse misterioso século XXI.

Francisco Perna Filho – A senhora, pelo representativo papel que exerce e pela respeitabilidade granjeada ao longo desses anos como Professora e Crítica Literária, ao propor um espaço para poesia marginal nas antologias que organizou, possibilitou também que essa poesia fosse inserta no espaço da crítica, tornando-a aceita. A senhora acha que é esse um dos caminhos para nova crítica?


Heloísa Buarque de Hollanda - A crítica tem seu poder no campo intelectual. O uso desse poder não pode ser (e raramente o é) inocente.

Carlos Willian Leite – Na introdução da antologia Esses Poetas, você diz que há uma tendência a minimizar atritos por parte dos poetas, que essa geração é mais da negociação e da articulação, por quê?


Heloísa Buarque de Hollanda - Porque essa é a forma de se fazer arte e política nesse momento no qual o “inimigo” está um pouco em toda parte, onde as forças artísticas, políticas e econômicas estão mais dispersas e flexibilizadas, onde, portanto, a estratégia do confronto tem pouca eficácia.

Tainá Corrêa – Como está sua editora – a Aeroplano?


Heloísa Buarque de Hollanda - O nome da minha editora foi escolhido como homenagem ao poema “Aeroplano” de Luiz Aranha, publicado num número da Klaxon, porque expressava o fascínio com os sinais de futuro. E é por aí que formato minha linha editorial. Um compromisso com as tendências, com os novos debates, com o registro dos pontos de mudança na série cultural. Então eu adoro esse trabalho. Mas infelizmente essa linha editorial não dá lucro e eu não posso viver da editora…

Carlos Willian Leite – Alguém disse que o Francisco Alvim foi uma farsa criada pela Folha de São Paulo e que ele seria o Jeca Tatu da poesia brasileira. Qual a sua opinião sobre o poeta diplomata?


Heloísa Buarque de Hollanda - Acho o Chico um grande poeta moderno, dono de uma linguagem poética de fina ironia que conseguiu, em sua geração, mais do que qualquer outro, captar as nuances de seu tempo.

Carlos Willian Leite – Quais poetas compõem a sua estante?


Heloísa Buarque de Hollanda - Drummond, Manuel Bandeira, Cabral, Murilo Mendes, Joaquim Cardozo, e, a partir dos anos 70, praticamente todos os que foram lançados.

Tainá Corrêa – O jornalista americano Michael Kepp disse, em artigo recente, publicado pela revista Super Interessante, que existe um endeusamento epidêmico de Chico Buarque. Qual é sua opinião sobre o livro Estorvo e o que separa o compositor do escritor?


Heloísa Buarque de Hollanda - É uma vergonha, mas não li o Estorvo.

Carlos Willian Leite – Como é carregar o peso do sobrenome Buarque de Holanda?


Heloísa Buarque de Hollanda - Nenhum. Me sinto muito feliz em participar desse clã que tantas colaborações importantes deu à cultura brasileira.

PROGRAMA LEITURAS ENTREVISTA JIVM

Giorgio Agamben - Ensaio



Transcrevemos aqui este ensaio
até hoje inédito em espanhol e português, publicado pelo jornal Clarín, em 21-03-09, o qual estava disponível na página do Instituto Humanitas Unisinos. A tradução é de Moisés Sbardelotto.




O que é ser contemporâneo?
A visão de Giorgio Agamben





1.

A pergunta que eu gostaria de inscrever no início deste seminário é: "De quem e de que somos contemporâneos? E, sobretudo, o que significa ser contemporâneos?". (...) De Nietzsche, vem-nos uma indicação inicial, provisória, para orientar nossa busca por uma resposta. (...) Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que havia trabalhado até então em textos gregos e, dois anos antes, havia alcançado uma celebridade imprevista com "A origem da tragédia", publica as "Considerações Intempestivas", com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição com relação ao presente. "Intempestiva é essa consideração", lê-se no começo da segunda Consideração, "porque tenta entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se sente orgulhosa, ou seja, sua cultura histórica, porque penso que todos somos devorados pela febre da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso".

Nietzsche situa, portanto, sua pretensão de "atualidade", sua "contemporaneidade" com relação ao presente, em uma desconexão e em uma defasagem. Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com aquele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu tempo.

Essa não-coincidência não significa, naturalmente, que seja contemporâneo quem vive em outra era, um nostálgico que se sente mais cômodo na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe coube viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe que irrevogavelmente lhe pertence, sabe que não pode fugir de seu tempo.

A contemporaneidade é, pois, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, toma distância dele. Mais exatamente, é "essa relação com o tempo que adere a este, por meio de uma defasagem e de um anacronismo". Os que coincidem de um modo excessivamente absoluto com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo nela.

2.

Em 1923, Osip Mandelstam escreveu a poesia "O século" (a palavra russa vek significa também "época"). Ela contém não uma reflexão sobre o século, mas sim sobre a relação entre o poeta e seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o "século", senão, segundo o primeiro verso, "meu século" (vek moi):

Meu século, minha besta, há alguém que possa
Esquadrinhar em teus olhos
E soldar com seu sangue
As vértebras de dois séculos?

3.

O poeta, que devia pagar sua contemporaneidade com a vida, é quem deve manter o olhar fixo nos olhos de seu século-besta, soldar com seu sangue a coluna quebrada do tempo. O poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo em seu tempo. Mas que vê quem vê seu tempo, o sorriso demente de seu século? Gostaria aqui de lhes propor uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas sim as suas sombras. Todos os tempos são para quem experimenta sua contemporaneidade, escuros. Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra, quem está em condições de escrever umedecendo a pena nas trevas do presente. Mas o que significa "ver a escuridão", "perceber a sombra"?

Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos em um ambiente sem luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a sombra que vemos nesse momento? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, chamadas, precisamente, deoff-cells, que entram em atividade e produzem essa espécie particular de visão que chamamos de sombra. A sombra não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência de luz, algo como uma não visão, mas sim o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa (...) que perceber essa sombra não é uma forma de inércia ou de passividade, mas sim de algo que implica uma atividade e uma habilidade particulares, que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir sua escuridão, sua sombra especial que não é, de todos os modos, separável dessas luzes.

Pode se chamar de contemporâneo só aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e que é capaz de distinguir nelas a parte da sombra, sua íntima escuridão. Com isso, porém, não respondemos a nossa pergunta. Por que o fato de poder perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Por acaso, a sombra não é uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está dirigido a nós e não pode, portanto, nos incumbir? Pelo contrário, contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe incumbe e que não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer luz, se refere direta e singularmente a ele. Quem recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém de seu tempo.

4.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma espessa penumbra. Tendo-se em conta que há no universo um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, a sombra que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer uma explicação. Gostaria de falar agora da explicação que a astrofísica contemporânea dá para essa sombra. No universo em expansão, as galáxias mais remotas de afastam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não pode chegar a nós. O que percebemos como a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma velocidade superior à velocidade da luz. Perceber essa luz que tenta nos alcançar, e não pode, na escuridão do presente: isso significa ser contemporâneo. Daí vem que ser contemporâneos é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capazes não apenas de manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta infinitamente de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro ao qual só é possível faltar.

Por isso, o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. Nosso tempo, o presente, não é só o mais distante: não pode nos alcançar de maneira nenhuma. Ele tem a coluna quebrada, e nos encontramos exatamente no ponto da fratura. Por isso, somos, apesar de tudo, seus contemporâneos. O encontro que está em questão na contemporaneidade não ocorre simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge em seu interior e o transforma. Essa urgência é o intempestivo, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um "muito cedo" que é, também, um "muito tarde", de um "já" que é também um "ainda não". E reconhecer, nas trevas do presente, a luz que, mesmo sem nunca poder nos alcançar, está permanentemente em viagem até nós.

5.

Um bom exemplo dessa experiência especial do tempo que chamamos de contemporaneidade é a moda. O que define a moda é que ela introduz uma descontinuidade no tempo, que o divide segundo sua atualidade ou falta de atualidade, seu estar e seu não estar mais na moda (na moda, e não simplesmente de moda, que alude só às coisas). Apesar de ser sutil, essa divisão é clara: os que devem percebê-la infalivelmente a percebem e, dessa forma, certificam seu estar na moda. Mas se tratar-*mos de objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. Sobretudo o "agora" da moda, o instante em que começa a ser, não é identificável por nenhum cronômetro. Esse "agora" é o momento em que o estilista concebe o traço, o matiz que definirá a nova forma das peças? Ou no qual ele a confia ao desenhista e depois à costureira que confecciona o protótipo? Ou, melhor, o momento do desfile, onde a peça é levada pelas únicas pessoas que estão sempre e somente na moda, as manequins, que, no entanto, justamente por isso, nunca o estão realmente? Porque, em última instância, o estar na moda da "forma" ou da "maneira" dependerá do fato de que as pessoas de carne e osso, diferentes das manequins – vítimas sacrificiais de um deus sem rosto – a reconheçam como tal e a convertam em sua vestimenta.

O tempo da moda está, portanto, constitutivamente adiantado a si mesmo e, por isso, também sempre atrasado; sempre tem a forma de um limiar inapreensível entre um "ainda não" e um "já não". É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que a moda, pelo menos em nossa cultura, é uma signatura teológica do vestido que deriva da circunstância de que a primeira peça de vestuário foi confeccionada por Adão e Eva depois do pecado original, na forma de um pano entrelaçado com folhas de figueira. (As peças que vestimos derivam não desse pano vegetal, mas das "tunicae pelliceae", dos vestidos feitos com peles de animais que Deus, segundo Gênesis 3, 21, faz com que nossos progenitores vistam, como símbolo tangível do pecado e da morte, no momento em que os expulsa do paraíso). Em todo caso, além da razão, o "agora", o "kairos" da moda é inapreensível: a frase "estou na moda neste instante" é contraditória, porque, no segundo em que o sujeito a pronuncia, ele já está fora de moda.

Por isso, o estar na moda, como a contemporaneidade, comporta certa "soltura", certa defasagem, em que sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte de sua parte de fora, um sabor de démodé. Nesse sentido, dizia-se de uma senhora elegante na Paris do século XIX: "Elle est contemporaine de tout le monde". Mas a temporalidade da moda tem outro caráter, que a assemelha à contemporaneidade. No próprio gesto em que seu presente divide o tempo segundo um "já não" e um "ainda não", ela cria com esses "outros tempos" – certamente com o passado e talvez também com o futuro – uma relação particular. Ela pode, vale dizer, "encontrar" e, dessa maneira, reatualizar qualquer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda império ou neoclássica). Pode, portanto, colocar em relação o que dividiu inexoravelmente, voltar a chamar, reevocar e revitalizar o que havia declarado como morto.

6.

Essa relação especial com o passado tem outro aspecto. A contemporaneidade se inscreve no presente marcando-o sobretudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e recente os indícios e as signaturas do arcaico pode ser seu contemporâneo. Arcaico significa: próximo do "arché", ou seja, da origem. Mas a origem não está situada só em um passado cronológico: é contemporâneo ao devir histórico e não cessa de funcionar nele, como o embrião continua atuando nos tecidos do organismo maduro, e o bebê, na vida psíquica do adulto. A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade que definem a contemporaneidade têm seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto bate com tanta força como no presente. (...)

Os historiadores da literatura e da arte sabem que, entre o arcaico e o moderno, há um encontro secreto, e não tanto por causa do fato de que as formas mais arcaicas parecem exercer no presente um fascínio particular, mas sim porque a chave do moderno está oculta no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo, em seu final, se volta, para se reencontar, para as origens: a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. Nesse sentido, justamente, pode-se dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia. Que não retrocede, porém, a um passado remoto, mas sim ao que, no presente, não podemos viver de nenhuma forma e, ao permanecer no vivido, é incessantemente reabsorvido para a origem, sem nunca poder alcançá-lo. Porque o presente não é outra coisa que a parte de não-vivido em cada vivido, e o que impede o acesso ao presente é justamente a massa do que, por alguma razão (seu caráter traumático, sua proximidade excessiva) não conseguimos viver nele (...).

7.

Os que tentaram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo só à custa de dividi-la em mais tempos, em introduzir no tempo uma des-homogeneidade essencial. Quem pode dizer "meu tempo" divide o tempo, inscreve nele uma divisão e uma descontinudiade: e, no entanto, justamente por meio dessa divisão, essa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo instala uma relação especial entre os tempos.

Mesmo que, como vimos, o contemporâneo é que abriu as vértebras de seu tempo (ou percebeu a falha ou o ponto de ruptura), ele faz dessa fratura o lugar de encontro entre os tempos e as gerações. Nada mais exemplar, nesse sentido, do que o gesto de Paulo de Tarso, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos essa contemporaneidade por excelência que é o tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama de "tempo de agora" ("ho nyn kairos"). Não só esse tempo é cronologicamente indeterminado (...), mas também tem a capacidade singular de relacionar consigo mesmo cada instante do passado, de fazer de cada momento ou episódio do relato bíblico uma profecia ou uma prefiguração ("typos", figura, é o termo preferido de Paulo) do presente (assim Adão, por meio de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado, é o "tipo" ou figura do messias, que traz aos homens a redenção e a vida).

Isso significa que o contemporâneo não é só quem, percebendo a sombra do presente, apreende sua luz invendável. É também quem, dividindo e interpolando o tempo, está em condições de transformá-lo e colocá-lo em relação com os outros tempos, ler nele a história de maneira inédita, "encontrar-se" com ela segundo uma necessidade que não provém absolutamente de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode deixar de responder. É como se essa luz invisível que é a escuridão do presente projetasse sua sombra sobre o passado, e este, tocado por seu feixe de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.

Michel Foucault devia ter algo semelhante em mente quando escrevia que suas indagações históricas sobre o passado são só a sombra projetada por sua interrogação teórica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia que o signo histórico contido nas imagens do passado mostra que estas alcançarão a legibilidade só em um determinado momento de sua história. De nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência e a essa sombra, de ser contemporâneos não só do nosso século e do "agora", mas também de suas figuras no texto e dos documentos do passado, dependerão o êxito ou o fracasso de nosso seminário.


Fonte Unisinos
Imagem retirada da Internet: Giorgio Agamben

Antônio Cícero - Ensaio




O que é poesia?

Por Antônio Cícero


"Dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas"



O Poeta Edson Cruz perguntou "O que é poesia?" a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta diferente, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a poesia. O resultado se transformou num livro.

Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura.

Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do discurso escrito, em oposição ao oral. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:

1. Enquanto o discurso oral é efêmero, o discurso escrito tem uma permanência indefinida; 2. enquanto o discurso oral é fluido e aberto, isto é, está sempre em movimento, como a vida, e sujeito a mudar a todo instante, o discurso escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança; 3. enquanto o discurso oral se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o discurso escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.

Pois bem, embora todo discurso tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.

Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o destino não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz respeito à primeira característica do discurso escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira característica, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de significar a permanência plena ou concreta do seu texto.

Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada igualmente por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é bem assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu como as transformações pelas quais ele passou antes de ficar pronto.

Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros como numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer como se fosse um desenho animado. Ele pareceria, então, fluido como uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a adicionar fotogramas a essa fita, ele pareceria também aberto como uma fala.

Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.

Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor -atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É assim que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber "dizer muitas mentiras parecidas com a verdade".

Pois bem, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz respeito a um poema, parece-me em geral menos apropriado falar de "tradução" do que, como dizia Haroldo de Campos, de "transcriação".


In.Ilustrada. Folha da São Paulo,São Paulo, sábado, 03 de abril de 2010

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


O decote de Vênus


por Brasigóis Felício*



Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.

Gilson Cavalcanti escreve versos simples mas não simplórios. Ele tem domínio do verso, tem humor, sabedoria, e uma verve meio satírica, o que o faz palatável aos viventes humanos dotados de sensibilidade e recepção para a arte poética. Já pelo título se vê que todo o livro tem como tema único o plural universo feminino. O poeta abre o volume com um texto da poetisa Yêda Schmaltz, a quem homenageia mais uma vez, no corpo do livro: “Esta vontade de morder o mundo/e o mar que me afoga/as mulheres estão continuando/no sofrimento do amor,/que droga/mulher não presta para nada/a não ser para chorar/”. (In Baco e as Anas Brasileiras).

Já na abertura do livro Eva toma a palavra, sendo a voz narradora constante: “Sou Eva/a viva flor primeva/a que desceu do paraíso/a par do que precisa consertar/Sou Eva/doida doida/doidivana, doidivina/a que se dividiu na dor/parindo outras dores/ Fui Eva/ de cama mesa e banho/meu corpo não tem tamanho/e trago na carne hipocondríaca/contorcida entre costelas/a serpente entretelada de estrelas/”. Depois de outras pérolas, uma pitada de ironia: “O meu corpo/arado aos dentes/para o caminho das estrilas/sou Eva e vivo/de semear a semente/no sutiã dos conventos/a mulher de quatro elementos/para o espetáculo da nova era/”.

No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.

Esmera-se em ricas metáforas, em seu poetar sobre o mito e o fascínio do feminino – e mesmo a essencialidade de ser reprodutora e útero da vida, o poeta não endeusa, não mitifica – mas questiona, espicaça, como no poema A mulher e o espelho: “De frente ao espelho/os seios hiperbolizados na mão/como quem semeia fruta-pão;em pleno outono/(...) Por que tudo o que é feminino/cheira a naftalina?/. (...) O vestido de noiva/o hímen complacente/que guardo de presente/ao amado:/o gesto transparente/escorrendo na grinalda do tempo/”. Poesia rica em imagens, inventiva, cheia de verve.

Mais adiante, o poeta questiona o sulco dos hábitos de sua musa, real ou imaginada pela licença poética: “O que guardas/debaixo desse hábito de cambraia, mulher?/A castidade da fé, ou o ferrolho do prazer?”. Gilson Cavalcanti permite-se a licença poética de brincar com os versos popularizados na canção de Ataulfo Alves, sobre Amélia, a mulher sem vaidade: “De verdade, Amélia era a melhor/porque despida de menor vaidade/de Amélia a Maria Bonita,/ a boca maldita da contrariedade/”. No poema Cabra da peste, uma mostra de sua verve bem humorada:”Maria da Guarda/é neta da noite/bebe até ficar rica/compra briga por açoite/”.

Há uma hora marcada para o encontro do tempo dos relógios, e com os perigos vertiginosos do sexo? O poeta reflete: “Sem horas/atrás do amor/rumo adiantado/A ausência/adia a cor do pecado./Há dias, os ponteiros do meu sexo/apontam para o seu sexo/Qual dia acerto? São pitadas de brincanagem, adicionadas, como ervas finas, à geléia geral da linguagem – que vem a ser a alquimia da transfiguração do verbo, na criação poética.

Eu digo: elas por elas tivemos Elis/que só não foi feliz/por que não quis?/Mais leve de fardo foi Leila Diniz: o montão de areia para o caminhãozinho dos homens. G.C diz: “Leila Diniz encheu a pança/e foi desfilar no Leblon/em Copacabana/virou a cabeça dos homens/e desfez as mulheres/de suas saias de nuvens e areia/(...) o seu vôo foi tão leve/que a levou/para o umbigo do cosmos/de forma tão breve/”. Elis por Elis, tivemos uma, inquieta e vibrante: uma Regina sem medo de querer ser feliz.

Tanto agitou, em sua mente vertiginosa, e em seu corpo pequeno, que implodiu, numa overdose dantesca: foi nitroglicerina pura. Sendo de voz tão afinada, como explicar que não levou sorte, nem teve engenho e arte na afinação da arte de viver em paz, apesar da angústia inerente a todo Ser? Também, pudera: se desde criancinha, lá em Porto Alegre, já desafinava no coro dos contentes, é de se espantar que não tenha atravessado o samba muito antes. O poeta Gilson Cavalcanti confirma: “Sua voz/cascata de cristal/convocando a canção amiga/agora, um outro Tom/a faz equilibrar-se/na bossa etérea/entre Vinicius e Jobim/”. Esta Elis que foi a melhor intérprete de O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.

Ao final, recordando tantas partidas sem aviso e sem despedida, antes de lamentar que Elis tenha partido, é melhor re-cordar (tornar ao coração) que apareceu não a Margarida, e sim a sua Maria Rita, para animar a festa, segundo G.C. No poema Terezuda, mais um instante de alegre erotismo: “A beleza de Tereza/não se põe na mesa/Tetê se abunda/em bicicleta/é tesão de sobra/na padaria de meus olhos/Vem, Tetê, testar/a massa que nos promete o pão!’. E vai G.C. na carruagem da mesma malícia: “Kátia, de onde trouxestes/essas pernas tão lindas?/Drummond não teve acesso a elas/teria morrido de tanta poesia/”. O poeta Gilson Cavalcanti fecha o seu livro O decote de Vênus revelando-se pronto a encenar o último ato no drama de existir: “Completamente nu/nu de tudo, de todos/ (...) Fecham-se as cortinas,/porque a vida vai começar/do outro lado do espelho/”.


* Brasigóis Felício é poeta, cronista, e Membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem: Zacarias Martins

Valdivino Braz - Poema












Chão de ausências

O vento varreu os rastros
e apagou deste lugar os sinais
da nossa presença.
Sou estranho nesta terra, minha mãe,
e piso um chão de ausências.

Arrancaram-me as raízes
e as curicacas, meu pai,
e não sei dos meninos meus irmãos,
soltos no mundo,
feitos filhos de ninguém.

Entre os esteios da casa desmoronada,
vasculho e recolho de tempo vestígios
- quase nada - das origens
e do que fomos outrora,
neste solo sáfaro
de nós.

Só escombros, minha mãe,
e a solidão
das macaúbas.


In. A palavra por desígnio.
Imagem retirada da Internet: Perdida

Valdivino Braz - Poema

Com este poema, encerramos a trilogia Blues, uma experiência simbolista muito interessante de Valdivino Braz, um dos mais criativos poetas brasileiros. Sejam todos bem vindos a participar com sugestões interessantes no campo da literatura: poemas, contos, crônicas e ensaios. Boa leitura!




ÂMBAR E BLUES


PÊNDULAS LÂMPADAS

BÊBADAS BALADAS BADALADAS

MADRUGADAS NO BAR DOS BARDOS


CAMPÂNULAS E CALÊNDULAS

NOCTÂMBULAS PALABRAS

QUE SE DESDOBRAM

DE SUAS DOBRAS


LÂMINAS

PUSILÂMINES

SONÂMBULAS SÍLABAS

SIBILADAS


TRAGOS AMARGOS

VIDAS PERDIDAS

NAS NOITES DE TUDO

COM AS BAGAS DE SEUS NADAS


VÂNDALAS MARIPOSAS

KAMIKAZES DA LUZ

SOBRE AS MESAS

EM COPOS DE ÂMBAR

E BLUES






Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema




O TRISTE FIM DE JOE BLACK



Joe Black se enrabichou com Suzana,

uma leoa lá em Louisiana,

mas não deu certo com aquela dona,

e se embeiçou por uma loura no Missouri.

Conheceu tudo que havia de bom e de ordinário

em suas belas e louras aventuras.


Agora o seu negócio é roer o osso de tudo isso,

feito um velho cão deitado num canto da calçada,

um sujeito caído de mau jeito à beira do meio-fio,

ou ali de pé a contemplar o rio e a balançar o corpo,

como se fosse o balanço de um relógio no tempo frio.


Com o rosto oculto na sombra de seu chapéu preto,

Joe Black sempre gunguna,

que não quer mais se meter com loura nenhuma.

Prometendo um dia se jogar no rio

de águas tão profundas quanto suas mágoas,


prometendo se jogar por tudo isso,

prometendo se jogar no rio e acabar logo com isso.

Não faça isso. Há quem lhe peça,

mas já sabendo que ele fará exatamente isso.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!


Dia virá depois de um tremendo pileque

em que ele fará exatamente isso,

pro fundo do rio com os seus gemidos e resmungos,

pra misturar seu corpo negro com os murmúrios do mundo,

pra correr mundo com a água turva e turbulenta de tudo.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!



Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema


Melancholy Blues


B.B. Pinga Made in Brazil num bar azul do Tennessee,
um desses barzinhos chinfrins, como tantos por aí.
B.B. Pinga no King Creole em New Orleans,
onde o Elvis cantou praquele filme Balada Sangrenta.
Também bebi ali pelos bares da Carolina do Sul,
perdi minha alma numa tarde cor de mostarda e magenta,
my soul que se escondeu do sol,
numa bebedeira por causa de Mary Blues.


B.B. Pinga com os negros meus irmãos
dos campos de algodão
e das terras lamacentas do Mississippi,
onde fui perseguido e espancado por membros da Klan.
Quem me dera ser grego e levar a vida na flauta de Pã!


Andei por outras bandas, bebi no Alabama e era só lama,
lodo negro o coração dos brancos
nos sombrios pântanos do Alabama.
É, brother, me embriaguei feito um gambá, se quer saber,
ouvindo B.B. King cantar Nobody loves me but my mother.


Bebi uns tempos com uma prostituta decadente,
que gostava de mim, minimizava-me a dor latente
e consolava minha pobre alma doente.


Let’s go, Baby, eu dizia praquela vadia minha amiga,
que adorava John Lee Hooker e entrou na minha vida.
Tire a blusa, tire o jeans, tire a calcinha, maninha.
Abra seu livro, your pocket bock, com as pétalas do poema.
Mostra, meu amor, a borboleta na flor de suas pernas.


B.B. Pinga até dançar um rock num barzinho de New York,
e lá pelas tantas cantei Tamborim Man com Bob Dylan,
que me presenteou com o seu livro Tarântula.
Lá em Atlanta me jogaram na cara que isso era mentira.


Ainda em New York declamei poemas de Dylan Thomas
e de Eliot, o poeta da terra devastada.
Tive a língua travada pelo nome de J. Alfred Prufrock
e me senti assim um dos homens ocos de Thomas Stearns,
onde se acrescenta o que falta ao próprio Eliot.


É, brother, enchi mesmo a cara em New York,
ouvindo Liza Minelli cantar New York, New York.
Era fim de noite e de repente me lembrei da morte do pássaro,
The Bird, como era chamado o nosso Charlie Parker.


B.B. Pinga até cair morto e virem bater à minha porta
os frios ventos do Norte a me chamar
com a voz negra e gutural do corvo Edgar.


Eram noites geladas
naquele inverno da nossa desesperança.
Eu lia o romance de Steinbeck
e ouvia na rua os gritos de Florence:
Fuck you, Joe Black! No maior pileque,
a velha e doida Florence com o seu chapéu de flores
e os mendigos lá fora,
se esquentando ao fogo dos tambores.


B.B. Pinga feito mosca de bar e me danei.
Me dei mal com o melô da minha melancolia no Barfly,
e me mandei com Robert Johnson praquela encruzilhada.
Topei um solo de viola em duelo com o Diabo,
perdi a parada, bebi uma caixa-d´água de pinga
e te digo, irmão, que a vida é mesmo uma íngua.


Minha vida ao desalento é um velho sax em surdina,
lamento perdido na madrugada,
tocado de uma sacada para os telhados do Brooklin
e do Bronx e do Harlem.


Ó my mother, estou indo, estou voltando pra casa.
Sofro de delírios, ando vendo coisas,
estranhas coisas como um bebê de regresso às tuas entranhas,
o bastardo que sou de um pai negro que se afogou
no lago profundo de teus olhos azulegos, ó mãe.


Estou a caminho,
sozinho com a minha gaitinha de blues a tocar.
De volta ao lar, de volta ao lar,
pois todo caminho é circular.


Andarilho pelos trilhos do destino,
vou indo nesse trem de viajantes clandestinos,
e esse trem a me levar vai me deixar no fim da linha,
de parelha com o riozinho onde tudo começa
e só regressa com o fim do dia a se acabar.
Já não demora mais a hora de chegar, mãezinha.


Mamãe, mamãe, estou aqui.
Estou bem aqui, mamãe.
Cansado de tudo,
não quero mais perambular pelo mundo.
Nunca mais.
Never more.
Nem que eu olhe pra trás.
Nem que eu chore
e me desespere pra voltar.
Nem por amor.
Não quero.
Não quero mais.


O corvo me espanta e me persegue feito alma penada,
querendo que eu pague a conta de tudo com a minha vida.
Tenho pavor do corvo Edgar,
que se acabou de tanto beber,
e no entanto era o grande Edgar Allan Poe,
o grande Allan Poe,
o grande Edgar.


B.B. Pinga num barzinho do meu bairro no Brasil,
ouvindo B.B. King e viajando pelas bandas do Blues,
voltando no tempo sem sair do lugar em pleno ano 2000.
Daí compus o blues da longa história que se ouviu,
um pouco também ao som de John Lee Hooker,
e talvez seja este o mais longo dos blues,
indo de trem até chegar ao Guinness Book.





Imagens retiradas da Internet

Floriano Martins - Poema


Blacktown hospital, bed 23

6.

Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.


In. Campos queimados (Inédito).Fonte: Grupomultifoco. Fotografia retirada da Internet: Floriano Martins

Vinicius de Moraes - Poema



















Marcha de quarta-feira de cinzas




Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.


Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.


E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...


A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.


Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...


Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.



Imagem retirada da Internet: Drama

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