José Nêumanne Pinto - Crônica


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Do alto do pódio da paz ao baixo calão na guerra




Dunga abre luta contra pronomes e críticos de métodos que adota para treinar seleção nacional


Por José Nêumanne Pinto



É difícil encontrar expressão mais calhorda que a tal da “pátria em chuteiras”. Mesmo nas primícias do profissionalismo do futebol (até os últimos anos do reinado de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, nos anos 1970), os Campeonatos Mundiais nunca refletiram mais que habilidades específicas para uma prática esportiva em cujo resultado a sorte tem influência similar ou até superior ao desempenho. E este em nada depende da qualidade média de vida dos países cujos selecionados vencem amiúde.

No século 18, o escritor Samuel Johnson escreveu que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Na aparência, a afirmação refletia o despojamento de um povo que nunca se levou a sério, apesar de seu país, ou seja, a “pérfida Albion” (denominação da Inglaterra quando era colônia romana), ter conquistado o mundo e a glória na guerra e na literatura . Mas uma leitura fria dos fatos mostra que – em guerra, gestão pública, política e diplomacia – há mais cinismo na exploração cínica do amor do homem comum por sua terra que na crítica do amigo do historiador da decadência do Império Romano, Edward Gibbon. No esporte em geral e, em particular, no futebol, que, em seus moldes atuais, começou a ser jogado pelos ingleses um século depois de Johnson ter cunhado suas frases, ela é até mais válida que nas outras atividades humanas acima citadas.

Não passa de hipocrisia a adoção da lição do barão de Coubertin tentando dar às competições esportivas um falso condão de nobreza, que não condiz com a acirrada disputa em arenas, campos e tatames. O triunfo do velocista negro americano Jesse Owens, presenciado pelo ditador nazista Adolf Hitler na Olimpíada de Berlim em 1936, mesmo tendo negado na prática a teoria absurda da superioridade da raça ariana sobre as outras, em nada aliviou as agruras dos descendentes de escravos nos Estados Unidos. As disputas pela liderança nos quadros de medalhas dos Jogos Olímpicos na segunda metade do século 20 não refletiram a igualdade de condições entre o imperialismo ianque, de um lado, e o império soviético, do outro. O ouro distribuído nos pódios a ginastas e atletas russos ou das Repúblicas ocupadas pelos comunistas não bastou para impedir a derrocada do regime de Lenin, Stalin e seguidores. As vitórias de pugilistas, atletas e atacantes de ponta de rede de vôlei de Cuba não refletiam as condições de vida da população da ilha caribenha sob a tirania dos irmãos Castro.

No mundo contemporâneo, modalidades olímpicas são mais um comércio que mobiliza fortunas do que nobres manifestações de saúde do corpo e da mente. No caso do futebol, a exploração da paixão popular por negociantes inescrupulosos é ainda mais gritante. Numa competição cujo apreço pela ética negocial pode ser medido pela proibição de acesso ao estádio de torcedoras holandesas porque a organizadora da Copa, a Fifa, suspeitou que faziam propaganda de uma empresa que não participou de seu rateio milionário de marketing, cobrar da excessiva cobertura dos meios de comunicação cumplicidade patriótica é de uma desfaçatez de assustar o próprio Johnson.

Mas já que o jogo é esse, meus amigos, vamos jogá-lo dentro da regra que nos foi imposta pelos donos do espetáculo, a Fifa e sua afiliada brasileira, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Tendo a Pátria vestido uma camiseta amarela para sair por aí, é de todo conveniente exigir de quem cobra patriotismo dos críticos um mínimo de compostura. O futebol, hoje menos uma atividade profissional que uma fonte de renda ainda mais fabulosa que os gols marcados pelo artilheiro da seleção Luis Fabiano, paga fortunas mirabolantes aos astros do espetáculo exibido a um público de bilhões de pagantes. Chegou, então, o momento de lembrar que privilégios pressupõem obrigações. Por exemplo: na Pátria que eles imaginam representar se fala uma língua, no caso do Brasil, a portuguesa, enobrecida pelo estro fundador do poeta e soldado caolho luso Luís de Camões e por cultores como o amanuense mulato epiléptico carioca Joaquim Maria Machado de Assis. Vencer o jogo, como fez a equipe brasileira domingo em Johannesburgo, principal sede da Copa africana, anima a torcida brasileira. Mas honrar a Pátria é mais que isso: é, por exemplo, não esmurrar o vernáculo como se este fosse um inimigo figadal.

Com o salário que recebe da “pátria em chuteiras” e tendo a obrigação de falar em público pelo menos duas vezes por semana, o gaúcho de Ijuí Carlos Caetano Bledorn Verri devia ter recebido de seus empregadores a missão de não agredir os pronomes oblíquos, substituindo-os por retos em suas frases anômalas. Da mesma forma, além de selecionar seus pupilos e dirigi-los nos treinos, o treinador deveria ter aprendido na infância o hábito de não insultar adversários e críticos com palavras de calão rasteiro, incompatível com seu sucesso profissional.

Ao disputar uma luta livre particular contra a língua e profissionais encarregados de transmitir e avaliar o desempenho de sua seleção, o técnico brasileiro tem um comportamento à altura do anão da Branca de Neve do qual seu tio Cláudio tirou o apelido que passou a usar como nome de guerra. E não do capitão que do alto do pódio da paz nos EUA ergueu a Copa Fifa, hoje disputada na África, e reafirmou a superioridade técnica do jogador de futebol brasileiro nos gramados. Ao deixar de puni-lo, a Fifa tornou-se cúmplice dele. Esse caso execrável deveria ter alertado os maiorais do futebol para a necessidade de adotarem um código de conduta em respeito aos bilhões de torcedores que enchem sua bolsa de ouro e sua alma de glória. A truculência impune de Dunga, como a brusca retirada do eslovaco Vladimir Weiss da entrevista coletiva e a recusa do francês Raymond Domenech de cumprimentar o colega Carlos Alberto Parreira após derrotas, expõe quão hipócrita é o tal “fairplay” alardeado pela Fifa.

In. © O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2010, p. A2.

Casimiro de Abreu (1837 - 1860) - Poema


Minh'alma é triste



I

Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endecha
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh'alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
- Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque - mas a minh'alma é triste!

II

Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh'alma o segue n'amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh'alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh'alma em notas de chorosa endecha
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
- Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos - a minh'alma é triste!

III

Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh'alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
- Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri - mas a minh'alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
- Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s'reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! Loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp'ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
- Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
- No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores - a minh'alma é triste!

Março 12. - 1858.



Imagem retirada da Internet: mulher

Casimiro de Abreu (1837 - 1860) - Poema



















MEUS OITO ANOS



Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar - é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!



In. Antologia de Antologias,Magaly Trindade/Zélia Thomaz de Aquino/Zina Bellodi Silva. São Paulo: Musa Editora, 1995, p.222-223.
Imagem retirada da Internet: Meus oito anos

Manoel de Barros - Poema






Mundo Pequeno



I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. "Sonora voz de uma concha",
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: "Aromas de tomilhos dementam
cigarras." Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos." Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.



In. O Livro das Ignorãças - ed. Civilização Brasileira.
Imagem retirada da Internet: Mundo infantil

Flávio Carneiro - Conto

Flávio Carneiro nasceu em Goiânia, em 1962, e mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 80. Desde 2003, mora em Teresópolis, região serrana do estado. Escritor, crítico literário, roteirista e professor de literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicou doze livros e escreveu dois roteiros para cinema. Como ficcionista, é autor de um livro de contos, três romances e cinco novelas para crianças e jovens. Participou também de algumas antologias, como Os cem menores contos brasileiros do século(São Paulo: Ateliê, 2004, org.: Marcelino Freire), com o mini-conto "Na sala de espelhos", e 22 contistas em campo (Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, org. Flávio Moreira da Costa), com o conto "Penalidade Máxima". Como ensaísta, é autor de dois livros e diversos artigos em revistas especializadas. De 2000 a 2007, foi colaborador regular dos suplementos literários do jornal O Globo (caderno Prosa & Verso) e Jornal do Brasil (caderno Idéias), com os quais ainda colabora esporadicamente. É co-roteirista, em parceria com Adriana Lisboa e André Sturm, do filme Bodas de Papel, vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Pernambuco, em 2008 (mais informações sobre o filme na sessão OBRAS). Escreveu também, com Adolfo Lachtermacher, o roteiro do curta-metragem A noite do capitão, com lançamento previsto para 2010.



Aprendizagem



– Mãe, cabelo demora quanto tempo pra crescer?

– Hã?

– Se eu cortar meu cabelo hoje, quando é que ele vai crescer de novo?

– Cabelo está sempre crescendo, Beatriz. É que nem unha.

A comparação deixa a menina meio confusa. Ela não está preocupada com unhas.

– Todo dia, mãe?

– É, só que a gente não repara.

– Por quê?

– Porque as pessoas têm mais o que fazer, não acha?

A menina não sabe se essa é uma pergunta do tipo que precisa ser respondida ou é daquelas que a gente ouve e pronto. Prefere não responder.

– Você é muito ocupada, não é, mãe?

– Hã?

– Nada, não.

A mãe termina de passar a roupa e vai guardando tudo no armário.

Enquanto isso, Beatriz corre até o quartinho de costura, pega a fita métrica e mede novamente o cabelo da boneca. Ela tinha cortado aquele cabelo com todo o cuidado do mundo, pra ficar parecido com o da mãe, mas a verdade é que ficou meio torto.

"Nada, não cresceu nada", ela conclui, guardando a fita. E já tem uma semana!

Depois volta para onde está a mãe, que agora lustra os móveis.

– Mãe, existe alguma doença que faz o cabelo da gente não crescer?

– Mas de novo essa conversa de cabelo! Não tem outra coisa pra pensar não, criatura?

Sobre essa pergunta não há dúvida: é do tipo que você não deve responder.

A mãe continua trabalhando. Precisa se apressar. Dali a pouco a patroa chega da rua e o almoço nem está pronto ainda.

– Mãe!

– O que foi?

– É que eu estava aqui pensando.

– Pensando o quê?

Beatriz não responde. Espera um pouco, tentando achar as palavras certas.

– Vai, fala logo.

– Quando a gente faz uma coisa, sabe, e não dá mais para voltar atrás, entendeu?

– Não, não entendi.

Ela abaixa a cabeça, dá um tempinho e resolve arriscar:

– Então, se você não entendeu, posso continuar perguntando sobre cabelo?

– Ai, meu Deus!

Beatriz deixa a mãe trabalhando e vai procurar de novo sua boneca.

Pega a boneca no colo e diz no ouvido dela:

– Não liga, não. Cabelo de boneca é assim mesmo, cresce devagar, viu?

E com um carinho:

– Foi minha mãe que me ensinou.



Fonte Revista Nova Escola
Foto by Adriana Lisboa

Célio Pedreira - Poema


ARRANCHO


Dia que a gente precisa ser ipueira
lavar as minúcias
depor as margens
esconjurar estreitos.

Dia que precisa vir sem divulgar
perder tempo em nada
esbarrar nos derradeiros
encontrar nós.

Dia de bestagens
alargar os efeitos
malinar nas gasturas
judiar sem doer
precisa.


Imagem retirada da Internet: sertanejo

Cecília Meireles - Crônica


Se eu fosse pintor


Cecília Meireles



Se eu fosse pintor começaria a delinear este primeiro plano de trepadeiras entrelaçadas, com pequenos jasmins e grandes campânulas roxas, por onde flutua uma borboleta cor de marfim, com um pouco de ouro nas pontas das asas.

Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixá-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.

Mas o quintal da casa abandonada ostenta uma delicada mangueira, ainda com moles folhas cor de bronze sobre a cerrada fronde sombria, uma delicada mangueira, repleta de pequenos frutos, de um verde tenro, que se destacam do verde-escuro como se estivessem ali apenas para tornar a árvore um ornamento vivo, entre os muros brancos, os pisos vermelhos, o jogo das escadas e dos telhados em redor.

E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?

Mas por detrás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?

Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pelas encostas do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?

Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.

Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?



Imagem retirada da Internet By Bill Designer

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