Francisco Perna Filho - Poema



















INSTINTO


Ao meio dia,
no centro do mundo,
o homem cava palavras.
Respira.
As mãos atentas
imitam o instinto.
Reprisa.
No primeiro momento,
A palavra Terra reina soberana,
por mais doente que esteja.
Seguem a ela graveto, promessa,
Prometeu,
esperança,
desejo,
retalhos.
Ao meio dia,
no centro do mundo,
um vazio semântico.



In.Refeição. Francisco Perna Filho. Goiânia: Kelps, 2001, p.57.
Imagem retirada da Internet: Prometeu.

Dante Milano - Poema















A cidade




Ao ver os altos castelos
Do Alhambra, dos Alijares
Lavrados à maravilha,
El-rei Don Juan dizia:
"Se tu quisesses, Granada,
Contigo me casaria
E te daria como arras
Córdova e Sevilha!"

"Não sou solteira nem viúva,
Sou casada, rei Don Juan,
Com Abenámar o Mouro,
Senhor que muito me quer."

Maior felicidade
Que amar uma mulher,
Amor de longo olhar
E presente saudade,
Amor muito maior
É amar uma cidade!



In: MILANO, Dante. Poesia e prosa. Org. e apres. Virgílio Costa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Núcleo Ed. da UERJ, 1979. p.175. (Coleção vária). Poema integrante da série Últimos Poemas.

Fonte: Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: Cidade

Cruz e Sousa - Poema














VELHAS TRISTEZAS



Diluências de luz, velhas tristezas
das almas que morreram para a luta!
Sois as sombras amadas de belezas
hoje mais frias do que a pedra bruta.
Murmúrios ncógnitos de gruta
onde o Mar canta os salmos e as rudezas
de obscuras religiões — voz impoluta
de todas as titânicas grandezas.

Passai, lembrando as sensações antigas,
paixões que foram já dóceis amigas,
na luz de eternos sóis glorificadas.

Alegrias de há tempos! E hoje e agora,
velhas tristezas que se vão embora
no poente da Saudade amortalhadas! ...


Imagem retirada da Internet: Velho em Lisboa

Mário de Andrade - Poema


















Poemas da amiga


A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

Foto by Renato Paes

Rubem Fonseca - Conto


Passeio Noturno




Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.



In. Feliz Ano Velho.Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p.49-50.
Imagem retirada da Internet: Farol

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


A água viva da poesia



Brasigóis Felício *



“A poesia tem muita serventia. Se ao menos eu soubesse para que...”. Assim auto-ironizou seu ofício o poeta francês Jean Cocteau. Talvez os místicos e os poetas tenham conservado esta abertura para a vivência de sermos criaturas cósmicas e divinas, mesmo vivendo em meio ao caos e ao sofrimento. Sendo a poesia um estado de vida, ou um momento de êxtase, pois segundo uma lenda judaica o homem conheceu o universo no seio materno mas, ao nascer, esqueceu tudo: através da imaginação, que é o seu instinto de relação cósmica, o homem torna a mergulhar na comunhão primordial: “Suaves e inarticulados gritos ressoam, ainda, sem sentido no vazio; mas um belo dia, de repente, eles se transformarão em diálogo. Com o que? Talvez com a chaleira que está fervendo”.

“Para escrever um único verso é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas. É preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voam os pássaros e saber que movimentos fazem as florzinhas quando se abrem de manhã”. Assim escreveu o poeta Rainer Maria Rilke, um que viveu e exprimiu a poesia da vida. De Moçambique, recebo uma coletânea de versos de Clara Soeiro, esposa do jornalista brasileiro Etevaldo Hipólito, que em virtude de seu idealismo, por ensinar, a leitura da língua e da vida, junto ao grande pedagogo e pensador Paulo Freire, teve que sair de seu país natal, indo dar com os costados em Moçambique, onde serve ao povo com sua inteligência e o seu idealismo, que estão bem vivos.

Antes, pensando ser oportuno e necessário que escritores brasileiros e moçambicanos se leiam e se conheçam, Etevaldo Hipólito repassou-me vários livros de autores moçambicanos, a fim de que tenha início este conhecimento, para um possível e já iniciado intercâmbio cultural entre intelectuais, escritores e artistas dos dois países. Chamou-me a atenção a qualidade literária das obras a mim enviadas pela Associação dos Escritores Moçambicanos, com destaque para o Sangue negro, criado pela chama ardente dos versos de Noêmia de Sousa, que lembra, pela força de sua poética, o poeta Castro Alves, em seu vigoroso e clássico Navio negreiro.

O motivo de estar um autor brasileiro a prefaciar obra de uma poetisa moçambicana é, para mim, dos mais lisonjeiros: o pedido de apresentação deu-se, segundo Etevaldo Hipólito, pelo fato de Clara Soeiro (que ainda não conheço pessoalmente) haver lido e relido, várias vezes, meu livro de crônicas Viver é devagar. Ora, isto não é novidade em literatura e arte: o coincidir o gosto artístico, as afinidades, visões de mundo, faz surgirem amizades e estreitarem distâncias, sabendo-se ser a criação artística e literária uma nave que nos possibilita viajar universos, sem sair do lugar. Lendo os textos de Clara Soeiro, chamou-me a atenção sua ligação telúrica com a terra, a sensibilidade com que evoca Ibo, sua ilha mãe, mesmo estando suas ruínas “como os cacos de um espelho partido”.

Sendo a poesia, assim como a crônica, filhas de Cronos, o Senhor do Tempo, hão de ser antenas, a captar a verdade da hora vivida por quem escreve ou faz arte. Seus textos apontam momentos inundados de humanidade, denunciando não só o olhar amoroso da autora sobre a realidade sócio-econômica vivida pelo seu povo, mas também a compaixão, e a indignação dirigida às estruturas que mantêm em funcionamento a máquina infernal, produtora de uma pobreza reprodutiva, para cujo fim não acena com nenhuma esperança. Em Cabritismo a autora incursiona pelo minimalismo, tão ao gosto dos modernistas brasileiros, fazendo uma crítica ferina e contundente à prática da corrupção (denúncia que se aplica a muitos países sub-desenvolvidos, ditos “emergentes”, aí não se excluindo o Brasil).

O cabrito vai comendo muito bem, obrigado, no lugar onde está amarrado, enquanto os outros são apenas “bodes expiatórios”. Bode expiatório é todo aquele que não faz parte de nossa tribo, o que não é companheiro, sendo menos igual do que os outros, por não compartilhar conosco o pão gordo e gostoso de quem está no poder. Um verso de poesia popular, vindo do nordeste brasileiro, explica bem isto : “A vantagem de quem tá no poder/ é judiar de quem tá por baixo”.

No poema Desminagem Clara Soeiro evoca a herança trágica das minas, fruto fatal das guerras e da insanidade humana. Se “minar” um terreno implica em semear a semente da morte e da mutilação, a um dólar por unidade, desminar o mesmo terreno é tarefa entregue aos próprios fabricantes de armas que o minaram, só que eles cobram um mil dólares por cada mina retirada, o que confirma que para certas pessoas ou empresas (mais iguais do que as outras) tanto a guerra quanto a paz representa um excelente negócio de oportunidade. No poema Buracos a autora revela fina ironia poética, finalizando-o com versos de alta voltagem, em forma de nitroglicerina pura. No poema Sétima idade há lamento e litania, enfocando o drama da velhice pobre e desamparada, a viver uma fase da vida nem um pouco feliz, destituída de glamour, longe de ser a “melhor idade”, como se diz da velhice aos que têm condições reais de aproveitar sua paz e serenidade.

Em Um dia de Moluene (Criança de rua desamparada) – uma peça literária de pungente dramaticidade – coloca a autora o foco de seu olhar poético sobre o que no Brasil chamamos de flanelinhas, os vigiadores de carros, pequenos pivetkongs, desafortunados malfeitores mirins (muitos são bem taludos, e até ameaçadores), filhos da exclusão social e do abandono humano, que povoam as ruas das cidades. Isto prova que a exclusão social é endêmica e reprodutiva, na América Latina como na África, dela não estando libertas os países social e economicamente ricos, estes sim, em sua maioria, produtores de exclusão social, de que se livram através de mecanismos imperialistas, de protecionismo econômico, e de jugo financeiro internacional, a que chamam de “ajuda humanitária”, “proteção do FMI”.

Na África como no Brasil (bem como em outros países da América Latina, mais pobres do que o somos) multiplicam-se as hordas de novos pobres, na maré do empobrecimento programado, instituído pelo FMI – e estes novos pobres vêm se juntar aos antigos, gerando uma ciranda infernal, um déficit crescente de dignidade e desenvolvimento humano.

Apesar disto, continuam os poetas e artistas a sonhar, como visionários que são – e Clara Soeiro permite-se manter vivos seus sonhos de criança, preservando a riqueza da imaginação infantil, o bem essencial ao cristalino e legítimo desenvolvimento da mente e da criatividade humanas, que a televisão nos rouba, ao nos tirar o poder da imaginação. A poesia quer continuar sonhar, recusa ser morta pelas frias engrenagens produtoras de injustiças, não quer trair o sonho da alma. Pois sabem os poetas que Deus perdoa os assassinos, mas não os indiferentes!



*Brasigóis Felício é Escritor, Poeta e Jornalista, Membro da Academia de Letras de Goiás, autor de vários livros.


Imagem retirada da Internet: Ilha de Moçambique

Gilberto Mendonça Teles - Poema

Eu e o Poeta Gilberto Mendonça Teles - Goiânia - GO



RECEITA




Tome a palavra suja,

"cabeluda" e com c'aspas,

essa que tem açúcar

no sangue, e sobretaxa.


Tome a que, sendo escrava

da tribo e do tributo,

mostra no corpo as marcas

de lacre, logro e lucro.


Pode ser a de baixo

calão, a manteúda,

como opção, como cágado,

essa que se disputa


nas feiras, que é falada,

que é falida e que gruda,

tome a palavra chata,

tome a palavra chula


e bote tudo às claras

e gema e até misture

coisas de corpo e alma,

de vida e de cultura


e leve ao forno e passe

a forma na gordura,

depois coma e disfarce

os bigodes da gula.



In. Arte de Amar. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977

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