Lygia Fagundes Telles - Conto


As cerejas


Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, vocês não viram onde deixei meus óculos? A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, esta receita é nova... Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, fico exausta no calor... Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. Você levou as velas à tia Olívia? , perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.

- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!
Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.

- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...

O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.

- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?
- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...

Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.

- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?
Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos . Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.

- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!
Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.

- Tem charme...

Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.

- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.

Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.

- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?
- Só na folhinha.

Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.

- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.

Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.

- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...

Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?
Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.

Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.

- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?
Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.

- Diz que ele se suicida, Marcelo...

- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.

Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.

- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.

Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.

Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.

- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.

Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.

- Ela é bonita, não?
Ele bocejou.

- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.

- Vulgar?
Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.

- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.

- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!
Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.

- Tem dois buracos em lugar dos olhos.

- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.

Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.

Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.

Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.

- Sofro tanto com o calor...

Madrinha tentava animá-la.

- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.

Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.

- Você acha que vai chover?
- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.

- É da idade, querida. É da idade.

- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.

- Ele monta tão bem. Tão elegante.

Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco . Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.

Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.

- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.

Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.

- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!
Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.

Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.

- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.

Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.

- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.

- E Marcelo?
- Não sei, deve estar dormindo também.

Madrinha aproximou-se com o castiçal.

- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!
Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.

- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.

Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:
- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.

Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.

Sentou-se na beirada da minha cama.

- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?
Prendi a respiração para não sentir seu perfume.

- Estou.

- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?
Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.

- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.

- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!
- Comprarei outras.

Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.

- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.

Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.

- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?
Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.


In. Oito Contos de Amor.São Paulo: Ática, 2001, p.15-23.
Imagem retirada da Internet: cerejas

Lançamento do meu livro - Poemas

Darcy França Denófrio - Poema












ALGA MARINHA


Alga marinha lançada ao mar aberto,

navego à deriva — não estou presa a nada.

Quero achar o meu caminho — o do começo —
mas me instalaram nesse arremesso
e não conheço a maré do princípio
que me jogou nesse permanente risco.

Alga marinha nesse amaro mar,
sem pontos cardeais, mapa-múndi
ou estrela-guia, vivo à deriva.

Não conheço meu porto (asseguro)
e um dia só serei verdes cabelos
envolvendo corpos destroçados

que viajaram na maré montante
e chegaram afogados de aurora
à praia maior - de todos os oceanos.


(In.Amaro mar, pág. 37, 1988

Imagem retirada da Internet: Alga marinha

Miguel Jorge - Poema


Coração



Há que se entender o homem
e seu devoto coração
sobre as poeiras das emoções
alquimia de peles ardentes
película de ouro soprando cinzas: jogo do fogo
ou um pobre diamante
que se corta e se fere
um espinho entreaberto
incerto.
Há que se entender o homem
e seu coração acrobata
no silêncio de suas mágicas
e que ninguém perceba suas taras
suas tiaras seus truques
seus gorjeios e perigos
seus sussurros seu exasperado
esforço de polvo.
Há que se entender esse devoto coração
de cada noite de cada dia
colhendo em seus roubos e arroubos
(em sua oficina torta)
uma reflexão quase morta:
Ah, esse chacal enjaulado
camuflado com armadura
de muitas armadilhas
em sua tessitura
tem um toque de ouro na rede de couro
esse senhor dos reclames comerciais
da Coca-Cola ou dos chicletes
das bananas espaciais
move-se em liberdade pequena.
Ah, esse coração
flor universal
é nervo aveludado
em todos os tempos enlaçado.
Ah, esse coração plantado com rosas mecanizadas
é talvez um sonho
ou uma fábula mal contada
com figuras quebradas
mais tarde reencontradas
ASSASSINADAS.


Poemas do livro Profugus, Goiânia - 1990.
Imagem retirada da Internet: balões

Fausto Rodrigues Valle - Poema


O Banzeiro Textual presta uma homenagem ao amigo e confrade Fausto Rodrigues Valle, falecido ontem, 12/05/2010, em Goiânia. Nascido em Araxá, MG, no dia 22 de agosto de 1930. Filho de Delvo e Artemira, 1o. filho de 13, veio com a família para Goiás em 1931. É médico formado pela UFMG. Ex-professor da UFG, no Departamento de Pediatria, exercendo funções administrativas, como Vice-Diretor da Faculdade de Medicina, Pró-Reitor de Graduação e outras. Seu nome literário passou a ser Fausto Valle, estampado na capa dos últimos livros.Durante quase 10 anos, foi diretor do jornal Voz do Oriente, órgão oficial do Grande Oriente de Goiás, no qual publicava meus artigos maçônicos. Ao mesmo tempo, coordenei durante 6 ou 7 anos, pela Maçonaria, o Concurso de Contos: Professor Venerando de Freitas Borges, em homenagem ao maçom e primeiro prefeito de Goiânia. Escreveu uma peça mística para a Ordem Rosacruz, encenada em Brasilia, Escreveu vários textos para teatro de bonecos (mamulengos) e algumas monografias para a Ordem Juvenil. A AMORC tem os direitos autorais de todos esses trabalhos. Participação em Antologias: A Fonte do Sal (1988). Livros de Poesia: Cravos Sobre a Mesa (1992), livro este que recebeu menção honrosa no extinto Concurso José Décio Filho. Relógio de Areia (1998),prêmio Bolsa de Publicações Wilson Cavalcanti Nogueira, da Fundação Cultural de Pires do Rio - 1997. Aldeia Absurda (1999) e Poemas Dispersos (2005). Livros de Contos:Confraria dos Marimbondos (2001); Um Boi no Telhado (2005); Além do Vão da Janela (2009). Prêmios Literários:Troféu Goyazes, concedido pela Academia Goiana de Letras, 2004; Troféu Tiokô, Literatura, concedido pela UBE 2009; dois prêmios de Melhor Texto, em duas oportunidades, no Concurso de Poesia falada, da Fundação Cultural de Pires do Rio - GO. Diploma honorífico de Cidadão Goianiense, conferido pela Câmara Municipal de Goiânia.


Flagrante


Pela rua vazia
o homem curvado
Ao próprio peso,

para de súbito,
olha atentamente
o céu de chumbo,

abre o guarda-chuva,
à pressa, some
de meus olhos

sem que eu saiba
seu pensamento,

que eu saiba dele
alguma coisa.


Imagem retirada da Internet: Fausto Rodrigues Valle

Milton Nascimento e Lô Borges - Show

Valdivino Braz - Poema

OS DESAMORADOS



Penso na mulher que amei

com o meu amor distanciado.

O tempo e a distância fizeram-nos frios,

mesmo quando juntos,

com os abraços do constrangimento.


Ah, foram difíceis nossos abraços,

carentes, mas desamorados!

Incômoda a compaixão por uma estranha

que me deixava, em seus braços, deslocado.


E assim minha mãe se foi embora deste mundo,

sem que eu aprendesse a amá-la como devia,

nem nunca me sentir por ela amado.

Ó mãe, amamo-nos ao nosso modo,

um do outro que fomos sempre separados?


Muito me bateram na vida,

menos minha mãe com suas mãos ausentes.

Minha mãe completamente

analfabeta e falta de filhos;

pariu quatro — eu vazio dela,

falto me fiz.


Foi ao morrer que ela me bateu pela única vez.

Foi.

E quem disse que palmada de mãe não dói?

——

Poema extraído do livro Arabescos num chão de giz — Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos (Goiânia, 1988); Menção Honrosa, sob o título Cantos do Carbono, na 1ª Bienal Ímpar de Poesia Estância Itanhangá (Goiânia, 1987/1988).


Imagem retirada da Internet: mãe

Carlos Drummond de Andrade - Poema



Maternidade



Seu desejo não era desejo
corporal.
Era desejo de ter filho,
um só filho que fosse, mas um filho.


Procurou, procurou pai para seu filho.
Ninguém se interessava por ser pai.
O filho desejado, concebido
longo tempo na mente, e era tão lindo,
nasceu do acaso, o pai era acaso.


O acaso nem é pai, isso que importa?
O filho, obra materna,
é sua criação, de mais ninguém.
Mas lhe falta um detalhe,
o detalhe do pai.


Então ela é mãe e pai de seu garoto,
a quem, por acaso,
falta um lobo de orelha, a orelha esquerda.



In. O Corpo.

Vinícius de Moraes - Poema


Minha Mãe



Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo

Tenho medo da vida, minha mãe.

Canta a doce cantiga que cantavas

Quando eu corria doido ao teu regaço

Com medo dos fantasmas do telhado.

Nina o meu sono cheio de inquietude

Batendo de levinho no meu braço

Que estou com muito medo, minha mãe.

Repousa a luz amiga dos teus olhos

Nos meus olhos sem luz e sem repouso

Dize à dor que me espera eternamente

Para ir embora. Expulsa a angústia imensa

Do meu ser que não quer e que não pode

Dá-me um beijo na fonte dolorida

Que ela arde de febre, minha mãe.


Aninha-me em teu colo como outrora

Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas

Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.

Dorme. Os que de há muito te esperavam

Cansados já se foram para longe.

Perto de ti está tua mãezinha

Teu irmão. que o estudo adormeceu

Tuas irmãs pisando de levinho

Para não despertar o sono teu.

Dorme, meu filho, dorme no meu peito

Sonha a felicidade. Velo eu


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo

Me apavora a renúncia. Dize que eu fique

Afugenta este espaço que me prende

Afugenta o infinito que me chama

Que eu estou com muito medo, minha mãe.





In.Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, pág. 186.

Imagem retirada da Internet: Mãe

Affonso Romano de Sant 'Anna - Crítica

Wilson Martins, escritor e crítico literário, falecido em janeiro de 2010




CRÍTICA DO NECROLÓGIO E NECROLÓGIO DA CRÍTICA


Por Affonso Romano de Sant 'Anna



1. CRÍTICA DO NECROLÓGICO


Quando Wilson Martins morreu, várias pessoas escreveram lembrando sua obra. E algumas lamentaram sua morte. Mas Flora Sussekind lamenta que Wilson Martins tivesse vivido. Por isto, no texto publicado nO Globo (23/04/2010) afirma expressamente que talvez seja necessário “matar uma vez mais Wilson Martins”. Ou seja, além da morte física, ela se esforça por extirpar os textos de Wilson da literatura brasileira.

No texto de Flora, em que tantos leitores já acusaram estílística e retoricamente um pensamento tortuoso e mal formulado, é possível, com mais paciência, desentranhar vestígios de questões que poderiam ser mais claramente expostas. Ao que parece, ela pretende fazer uma análise da situação da crítica literária no país. E aí logo surge a questão: será que realiza o seu intento? Dentro deste propósito ela se detém não exatamente sobre a obra de critico Wilson Martins, mas sobre o seu suposto necrológio feito especialmente por três críticos: Alcir Pécora, Miguel Sanches Neto e Sergio Rodrigues.

Vou tratar aqui da "maltratada" questão do "necrológio" e do mito do "herói solitário" deixando para outra oportunidade outros equívocos da autora.

Aos ingênuos poderia parecer uma simples metáfora essa de ”matar uma vez mais Wilson Martins”, pois o objetivo dela seria uma reflexão para se rever a crítica literária no país. Não é bem assim. "Matar" é tirar a vida, eliminar, apagar, limpar os vestígios. E a ensaísta está tão incomodada com o nome ou o fantasma de Wilson Martins rondando seu imaginário que investiu contra aqueles que escreveram sobre ele quando ele faleceu. Não basta ter ocultado, censurado o nome do crítico nos cursos de literatura quando ele era vivo, agora é necessário também censurar (quem sabe "matar"?) os que escrevem sobre ele.

Se algum estudante de lingüística, de literatura ou psicolinguística aplicar a técnica da análise de conteúdo à diatribe que ela escreveu, vai notar que palavras como "ressentimento", "agressividade", "virulência", "truculência", "exacerbado" pavimentam sintomaticamente o seu texto.

Isto consubstancia uma "pulsão de morte" sub specie crítica que no plano político e social aproxima-se de ideologias e regimes que incitam a matar, extirpar nomes e imagens de adversários como forma de apropriar-se da história.

Dito isto, tenho que me demorar ainda mais um pouco sobre a questão do necrológio já que a autora do interessante ensaio "O sapateiro Silva" insiste em sapatear sobre a sepultura de Wilson Martins. Consideremos o sentido do necrológio tanto na sociedade primitiva quanto na civilizada. Diga-se logo, que ao negar aos outros que façam o necrológico afetivo ou intelectual de Wilson Martins, talvez Flora esteja escrevendo um epitáfio para si mesma enquanto crítica, além de promover uma desleitura do que significam os necrológios na antropologia e na sociologia.

A celebração, a evocação dos mortos não é uma aberração nem pode ser abolida pela pretensa racionalidade de alguém, pois são exigência do imaginário humano. As sociedades recorrem a esses rituais para elaborar sentimentos, remorsos, fantasias e até dialogar com a morte. Diz L.V.Thomas que "o homem é um animal que enterra seus mortos". Acrescenta Françoise Charpentier que "nenhum grupo humano se desinteressa de seus cadáveres". E Michel Ragon ("L'espace de la mort") arrola umas 15 maneiras que as diversas culturas elaboraram de lidar com seus mortos: fazendo tumbas, incinerando, praticando o canibalismo, expondo-os às bestas ferozes, jogando ao mar, lançando ao fogo, colocando em urnas, árvores, nichos, etc.

Na tragédia "Antígona", Sófocles narra a patética estória da heroína procurando enterrar seu irmão Polinice, ao qual o rei Creonte negava o direito de sepultura. Antígona enfrenta o poder e enterra o irmão. Negar a sepultura e o ritual necrológio a Polinice foi o principio crítico da decadência de Creonte, como advertiu o sábio Tirésias.

Só nos regimes e mentalidades autoritários destroem-se cemitérios, apaga-se a história, faz-se tabula rasa do passado. Os familiares dos mortos na última ditadura que tivemos (e eu vivi este período) ainda clamam pelo direito de enterrar seus "desaparecidos". De resto, neste caso, é bom lembrar aquele imperador chinês, que mandou não só matar todos os sábios da corte, mas queimar seus livros, e decretou que a história começasse com ele mesmo.

Por sua vez, a cultura barroca, refazendo os costumes arcaicos, elaborou uma oratória, um elogio fúnebre que era um gênero literário dos mais considerados e com uma função social específica. Phillippe Ariès nota que uma das características da sociedade industrial "contemporânea" (e Flora se quer "contemporânea), é perverter, disfarçar e até interditar o sentimento de morte. No entanto, mesmo modernamente, o necrológio, sobre ser um fato sócio-antropológico, é também um gênero jornalístico e literário cultivado com singularidade pelo "The Times" e "The New York Times", que têm redatores especializados no assunto.

Lembro essas coisas, mas me dou conta que o incômodo que a figura de Wilson Martins provoca em Flora é de tal ordem, que ela esta execrando até mesmo os necrológios feitos sobre cadáver recente.

Talvez se devesse lhe dizer: Flora, você não tem que levar flores à tumba de Wilson Martins. Mas também não tem que dar chutes nem tentar destruir sua lápide.


2. O MITO DO HERÓI SOLITÁRIO


No processo de decomposição da imagem de Wilson Martins Flora Sussekind refere-se, por duas vezes, ao fato que alguns o consideram um "herói solitário". Ela ironiza essa expressão ou idéia que estaria expressa ou subentendida nos textos escritos sobre ele.

Aqui a questão torna-se constrangedora e pode-se supor que ela desconhece não só a obra como a própria vida desse anti-herói. É querer ignorar que ele abriu mão de agremiações literárias, abriu mão de grupelhos e de partidos e centrou-se desde sempre no seu fazer critico. É não saber que por ter as opiniões criticas que tinha, foi despedido de vários jornais. E no último jornal em que trabalhou, ou não recebia pagamento ou tinha que se esforçar para tal. É querer negar o que há de solitário e heróico em realizar, sozinho, uma obra complexa como "História da Inteligência Brasileira", em 7 volumes . É querer invalidar além dos 2 vols de "A crítica literária no Brasil" os 17 volumes de críticas jornalísticas. É querer negar que é o único historiador e crítico que fez uma leitura abrangente de nossa cultura de 1500 até 2010. Ninguém fez isto entre nós. E noutras literatura não sei de nada semelhante. Durante sua trajetória alguns críticos evidentemente surgiram, mas trabalharam apenas alguns anos e pararam ou foram desestimulados. Ele persistiu desde 1942 até 2010, portanto, quase 70 anos. E é isto que a autora de "Até segunda ordem não risquem nada", com meia dúzia de argumentos mal alinhavados, quer jogar no lixo.

Alguém pode até dizer malevolamente: melhor se Wilson Martins tivesse lido menos e pensado mais. Como tirada tem lá sua graça momentânea, mas não se ajusta a ele. Quem pretende ser crítico e historiador tem mesmo que ler “tudo” e não pode resumir-se a elogiar seus confrades e a operar pela exclusão (coisa que é muito familiar à autora de "Papéis colados"). E Wilson Martins, crítico semanal, estava na "linha de fogo" opinando sobre obras ainda não canonizadas. Como escrevi em outra ocasião ao longo de cinco décadas de atividade critica ele pode ter feito um inimigo por semana, ou seja, uns 2.600 ao longo de 50 anos. E certamente Flora é um deles, pois Wilson Martins mostrou o que ele chama de "falácias" de seu livro - "O Brasil não é longe daqui".

Lembremos, por outro lado, que essa obra extensiva e intensiva que Wilson Martins produziu, ele a elaborou não com uma equipe, mas individualmente, só, solitariamente, num tempo em que não havia Google ou internet. E mais, a executou apesar das suas deficiências físicas, movendo-se com dificuldade para chegar aos locais de trabalho e fazer suas pesquisas. Por isto, embora eu possa discordar dele quanto à leitura ou o julgamento de um autor ou outro, ou de uma idéia ou outra, diria que ele com sua deficiência física é mais imprescindível à cultura brasileira que outros com sua deficiência intelectual.

Uma das coisas mais irônicas, paradoxais, senão patéticas, que se pode constatar no texto de Flora é que ela, em alguns aspectos, está defendendo as mesmas teses de Wilson Martins, sem o saber. Em 1996, numa entrevista dada a José Castelo o crítico já assinalava a "morte da critica literária no Brasil". Dizia, com a autoridade que tinha, que "nos jornais propagou-se com rapidez a ideia de que a critica literária não tem mais importância". Portanto, Flora está atrasadíssima no seu diagnóstico.

Garcia Marquez tem o conhecido romance, "Crônica de uma morte anunciada" e vários autores têm livros onde falam da segunda morte de seus personagens. Isto me ocorre enquanto analiso o que está sucedendo nessa tentativa de novo assassinato de Wilson Martins. Na verdade a "morte" de Wilson Martins já havia sido anunciada há muito. Ele mesmo se encarregou de divulgar isto, quando naquela entrevista em 1996 disse que a morte da critica literária estava em curso com as mudanças ocorridas na imprensa e na vida social. Neste sentido, o texto de Flora está atrasado 14 anos em relação ao de Wilson ao vir falar agora sobre "a perda de lugar social da crítica". E mais: torna-se repetitivo. Quando Wilson assinalava com tristeza e ironia que a crítica literária estava sendo assassinada, havia um toque autobiográfico nisto, porque ele era critico e estava portanto falando de seu próprio extermínio social. E essa que seria simbolicamente a morte de um gênero literário tornou-se algo mais concreto e físico quando o próprio Wilson foi demitido do jornal que agora, sem crítico de literatura, alardeia o artigo de Flora sobre a morte da crítica literária.

Portanto, com a proposta de novo assassinato de Wilson Martins e diante desse desejo de "matar uma vez mais" o critico, estamos diante de uma terceira morte. Mas como nas regras onde o mais é menos e o menos é mais, está ocorrendo um renascimento da obra do crítico, as pessoas estão procurando os seus volumes para entender a razão de tanto desejo de morte em relação a ele. A virulência despejada sobre seu nome está provocando interesse em torno de sua obra, para o tormento dos que querem autoritariamente controlar a vida e o sistema literário.


A republicação deste texto foi gentilmente autorizada pelo Poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

Foto by Aniele Nascimento


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