Geneton Moraes Neto entrevista o poeta Lêdo Ivo




Gostaria de agradecer ao jornalista Geneton Moraes Neto pela gentileza de ceder esta maravilhosa entrevista com o poeta Lêdo Ivo (abril de 2004), um dos maiores da nossa Língua, para que ela fosse reproduzida aqui no Banzeiro. Aproveito, também, para convidá-los a assistir, dia 27 de fevereiro, às 19h, na GloboNews, no programa Dossiê GloboNews, uma nova entrevista com o poeta Lêdo Ivo, concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto.










Geneton Moraes Neto entrevista Lêdo Ivo






O poeta dá o conselho :


"Seja como os lobos : more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.Viva e morra fechado como um caracol.Diga sempre não à escória eletrônica".


Caçadores de belos versos, tremei de arrependimento: quem nunca leu um poema de Ledo Ivo, por preguiça, desinformação ou enfado, deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais rapidamente possível. Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios tão bela quanto "A Queimada" :


"Queime tudo o que puder :

as cartas de amor

as contas telefônicas

o rol de roupas sujas

as escrituras e certidões

as inconfidências dos confrades ressentidos

a confissão interrompida

o poema erótico que ratifica a impotência

e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.

Não deixe aos herdeiros esfaimados

nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil

e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.

Viva e morra fechado como um caracol.

Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,

as variantes e os fragmentos

que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.

Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.

Não confie a ninguém o seu segredo.

A verdade não pode ser dita".


O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear as rotas da poesia brasileira neste início de século,diga-se que o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua Fernando Ferrari,no bairro de Botafogo,Rio de Janeiro. Ao contrário do que os versos podem fazer supor, o homem não é uma fera de garras afiadas.

Ei-lo : sentado numa poltrona da sala,o lobo Ledo vai fazer,a pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas do mundo,o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a distância entre a sala e a extremidade da varanda deste apartamento.Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens pinta de azul a vista da praia de Botafogo. A localização do apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara.Não é para qualquer um.

O poeta posa para as fotos na varanda. Parece ligeiramente incomodado pela lente da máquina. O sorriso aberto transmuta-se numa expressão repentinamente carrancuda um décimo de segundo antes do clique da máquina.

As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível,o pequenino Ledo Ivo reconstitui,com frases precisas,momentos marcantes da convivência com Carlos Drummond de Andrade,Graciliano Ramos,Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto,gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.

Justiça se faça : aos setenta e oito anos de idade,Ledo Ivo já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de "o Brasil oficial" : a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe,por unanimidade,a cadeira número 10,no não tão distante ano de 1986. Mas o "Brasil real",aquele que passa ao largo dos salões acadêmicos,não conhece Ledo Ivo tanto quanto o poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não é lido tanto quanto deveria ser. Aos caçadores de pérolas,recomenda-se a leitura da última pepita da mina do lobo Ledo : "O Rumor da Noite",publicado recentemente pela Nova Fronteira.

O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário,um ermitão que prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão - que ele já escrevera nos versos definitivos do poema "A Queimada" - repete-se no não menos belo "A Passagem" :


"Que me deixem passar - eis o que peço

diante da porta ou diante do caminho.

E que ninguém me siga na passagem.

Não tenho companheiros de viagem

nem quero que ninguém fique ao meu lado.

Para passar,exijo estar sozinho,

somente de mim mesmo acompanhado.

Mas caso me proíbam de passar

por seu eu diferente ou indesejado

mesmo assim eu passarei.

Inventarei a porta e o caminho

e passarei sozinho".


O Lobo é um apóstolo confesso da beleza. Reage com compreensível enfado à faina dos que preferem criar teses sobre a poesia :


- Sou um esteta porque nunca li tratados de estética - disse, num volume autobiográfico há anos esgotado ("Confissões de um Poeta").


Quando começa a falar do assunto que lhe consome todas as energias - a criação literária -,o alagoano Ledo Ivo vai alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo cuidado que devota à linguagem escrita.O Português agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades pronunciarem impropriedades como "de maneiras que....". Se alguém cometer o sacrilégio de misturar "tu" com "você" diante do lobo, certamente escapará de uma admoestação, porque o homem é afável,mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.

O Recife ocupa um extenso capítulo na memória afetiva do lobo - que deu de presente à cidade um poema escrito na juventude (“Amar mulheres,várias/Amar cidade,só uma – Recife”). Um detalhe : temeroso de despertar ciúmes bairristas em seus conterrâneos alagoanos, Ledo Ivo jamais incluiu o poema em homenagem ao Recife em seus livros. O cântico de amor à cidade estaria inédito até hoje,se não tivesse sido divulgado por amigos do poeta.

Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski, o lobo Ledo carrega, pelas décadas afora, as marcas da infância em Maceió :


"Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió

onde os meus mortos jamais terminam de morrer

de suas mortes tuberculosas e cancerosas

que atravessam as maresias e as constelações

com as suas tosses e gemidos e imprecações

e escarros escuros

e em silêncio os intimo a voltar a esta vida

em que desde a infância eles viviam lentamente

com a amargura dos dias longos colada às suas existências

monótonas.

(...) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,

voltai a este dia inacabado

que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados

e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.

Retornai aos sonhos insípidos

e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre os mausoléus

que parecem suspensos pelo vento

no mar azul

o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.

Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno

Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar".


A nostalgia do tempo irremediavelmente sepultado nos velhos calendários marca não apenas os melhores poemas de Ledo Ivo, mas também suas confissões autobiográficas :


"- Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite.Onde estão as figuras de antigamente - em que estrelas,em que túmulos se esconderam? Gari implacável, a vida varre os sonhos dos homens e, na praça vazia, vagam os fantasmas dos fracassos dissimulados e dos gordos perjúrios. Sozinho na grande cidade que engole as promessas dos homens, vejo-me passar de repente no jovem poeta desconhecido que atravessa o meu caminho. Deixo de ser eu mesmo para ser, por um instante, o jovem poeta sem nome. Que ele seja fiel à sua promessa de agora, eis o que peço. Que ele seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido, segundo a lição de Henry James. Mas a quem dirigir esse pedido? Os deuses inexistentes não me ouvem. À vida cega e surda? Ao mar longínquo e mudo? O jovem poeta Ledo Ivo dilui-se na sombra da tarde. E anoitece”.


Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.


Gravando !


PRIMEIRA ESTAÇÃO:

O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE DESPEDIR DA VIDA


GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e intratável,corresponde à verdade ?

Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos no mesmo estado. Quando menino,como primeiro da turma no grupo escolar,fui apresentado a Graciliano,na época secretário de Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou. Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me disse “vá visitar Heloísa” - a mulher do Graciliano Ramos,àquela altura,aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na literatura brasileira. Durante nossa conversa,ele abriu uma gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos.....”.

A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e ódio,porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada,jogado no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar. Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.

Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica.Em toda a literatura brasileira,ele só tinha três, quatro admirações,além de Machado de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia,admirava Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do Partido Comunista (risos).

Notei, na casa de Graciliano Ramos,um livro de poesia autografado,fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! ”. E ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro, mas essa mulher…” (risos) .

Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de Augusto Frederico Schmidt”.

GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor herança foi a obsessão com a correção gramatical ?

Ledo Ivo: “A herança - pungente - é ver que a glória de Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas ainda não plenamente reconhecido - essa é que é a verdade. Os livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não reeditava. Em conversas íntimas,Graciliano chamava José Olympio de “esse filho da puta - que vive editando Lourival Fontes e Getúlio Vargas.....” (N: Lourival Fontes era o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas) . O que eu via ali,em Graciliano, era a amargura de um homem que foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo” e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ? Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como revisor.

Qual foi,então, a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ? A fidelidade ao ofício,algo que se viu também em Machado de Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa, porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota sobre eles.

GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que o senhor herdou de Graciliano Ramos ?

Ledo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus. Vivia-se num Brasil diferente.Naquele tempo, só Carlos Drummond de Andrade tinha um carro - oficial. Os outros eram Augusto Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo diferente,o da vida literária, marcada pela existência de suplementos literários. Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava : o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira - muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust,por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia : “Não leio veados ! ” (risos).

Quando o visitei pela última vez,no hospital,ele chorou,porque sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a mãe.O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício (Ledo aponta para fora do apartamento). Aquele foi nosso último encontro,porque eu estava de partida para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso. O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante,porque já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele dissesse que odiava a vida,ele,na verdade,amava viver. O que matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de cigarros Selma.Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou. Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.


SEGUNDA ESTAÇÃO:

O POETA ESPERA HÁ SESSENTA ANOS PELO LEITOR


GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo, mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que freqüência,então,o senhor tem a sensação de estar substituindo a vida pela escrita?

Ledo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este sentimento de que estamos vivendo,sim,mas essa vida se destina somente a acumular experiências para a obra literária. Já a quase totalidade das pessoas se limita a viver,porque não dispõe de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por que logo eu,numa família de onze,revelou a vocação e o destino para a escrita,numa família que não tinha pendores literários ? Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra literária. O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver,mas a escrever. Fausto Cunha - grande crítico,que notou,em minha procedência literária,a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você não morreu aos vinte anos.Se tivesse morrido moço,teria deixado “Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”. Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu !.Vida longa atrapalha a biografia !”.João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos !”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.

GMN : Ariano Suassuna - que foi homenageado no carnaval aqui no Rio - disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira de Letras - sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,,já que não é tão conhecido como poeta como deveria ?

Ledo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.

Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou esperando por esse leitor. Um dia ele haverá de aparecer”.

GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil - é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim das contas,um solitário ?

Ledo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário.A verdade,como digo no poema,não pode ser dita”.

GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em congressos....

Ledo Ivo: “Oswald de Andrade – de quem fui muito amigo até brigarmos – me procurou,magoado,porque tinha sido expulso do Partido Comunista.Os comunistas,então, não o deixaram participar do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de escritores” (risos)…

GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram a criação poética “um suplício” ? .

Ledo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas já vêm prontas,organizadas subconscientemente. Pensa que “capino” o meu texto. Mas o mjeu texto vem espontaneamente.Não tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.

João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para ver se me causa inveja, mas não causa não!”.

GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de Andrade,escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar ?

Ledo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele que “enterra uma palavra por dia”. Para mim,o bom escritor é o que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro ressuscita palavras esquecidas”.

GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus livros o tão citado poema sobre o Recife ?

Ledo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam. Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema:


“Amar mulheres, várias

amar cidade,só uma – Recife.

E assim mesmo com as suas pontes

E os seus rios que cantam

E seus jardins leves como sonâmbulos

E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”


O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico Willy Lewin,nos anos quarenta.Recife foi a cidade de minha primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou desaparecido até 1947,quando chegou às mãos de Mauro Mota – que o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um poema; ele ganha vida própria,começa a circular.

Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu: ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande importância para ele”.


TERCEIRA ESTAÇÃO:

DRUMMOND, O GRANDE POETA SECRETO, ENTRA EM CENA


GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência com Carlos Drummond de Andrade ?

Ledo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava. Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo que é “intransmissível”. Tive essa sensação de intransmissibilidade. Eu levei meus primeiros poemas para Drummond,no gabinete em que ele trabalhava,no prédio do Ministério da Educação,no centro do Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros escritores para mim. Em seguida,vieram as rusgas,porque havia divisões políticas naquele tempo. A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro - de quem não quero dizer o nome - proclamou-se herdeiro de Drummond. Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?” . E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo. O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é esta a lição da poesia”. O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade.Os herdeiros são os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o “anti-clone”.

GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor - que viria a se considerar um lobo no poema “A Queimada” - teve a sensação de que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos poemas ?

Ledo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa muito escondida - que depois,infelizmente, foi violada pela imprensa. Eu via,em Drummond,um grande poeta secreto. Naquela época, 1940, Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a descoberta do Brasil,mas depois Drummond veio com a Rosa do Povo e acabou com a festa”.


(...)


Veja, amanhã, a segunda parte da entrevista.


Foto by Geneton Moraes Neto

José de Almada Negreiros - Poema




















ULTIMATUM FUTURISTA

ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉC. XX




Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!
Atirem-se independentes pra sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!
Morram todos os derrotismos! Morram! PIM!


Nota: Este ultimatum deve ser lido pelo menos duas vezes prós muito inteligentes e d'aqui pra baixo é sempre a dobrar. (original)


In. Evora.
Imagem retirada da Internet - pintura de Almada Negreiros.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) - Poema
















Ode Triunfal


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical --
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força --
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés -- oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos da estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos pianos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opera que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-la-hó la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer,
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes --
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraitre amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes --
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamento, políticas, relatores de orçamentos;
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta.)

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o amor antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hó jóquei que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levantado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o! --
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje. . . )

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!


Imagem: A Cabeça de Guilherme de Santa-Rita (1889-1918)

Joaquín Sabina - Poema




















DOBLE O NADA


Doble o nada a la carta más urgente
sin código, ni tribu, ni proyecto,
mi futuro es pretérito imperfecto,
mi pasado nostalgia del presente.

No tengo más verdad que la que arrasa
corrigiendo las lindes de mi venas.
Por diseñas castillos sin almenas
perdí, otra vez, las llaves de mi casa.

Veranos de buen vino y mala sombra,
de confundir enanos con molinos,
de viajar al abismo con alfombra.

Es hora de volver a la autopista
por donde van, burlando sus destinos,
el zángano, el adúltero, el ciclista.


In. Sabina oral, ciento volando catorce: Los Poemas De Sabina.Buenos Aires: Visor Libros, 2006,p.26.
Foto by Francisco Perna Filho: Nostalgia - Caminito de La Boca, Buenos Aires.

Francisco Perna Filho - Poema










Pedra, flor e pó


O que sabe da pedra,

a flor, para ignorá-la?

Desconhece a solidez de sua estrutura,

a sua natureza de rocha,

para brotar destemidamente nas brechas

do asfalto,

nas sacadas de prédios,

desafiando o concreto,

concretizando seu sonho

- o de ser flor, simplesmente flor,

sem compreender a dureza do que lhe é exterior.



O que sabe da flor,

a pedra, para deixá-la brotar no seu corpo,

enraizar-se nas suas fendas,

protegê-la de sua dureza,

de sua empedernida existência?



O que sabe da flor e da pedra,

o homem, para levá-las consigo

no seu momento de espanto,

em pensamentos e encanto?



O que sabe da flor, da pedra, e do homem,

o poeta, para eternizá-los nos seus versos,

a despeito dos outros homens com suas vaidades

e desprezo:

pela flor,

pela pedra,

pelo homem ?.



Foto by Sinésio Dioliveira: Flor no Asfalto.

Rubem Braga - Crônica











Despedida


E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.


In. Releituras - A Traição das Elegantes, Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.
Imagem retirada da Internet.

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