Antônio Cícero - Ensaio




O que é poesia?

Por Antônio Cícero


"Dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas"



O Poeta Edson Cruz perguntou "O que é poesia?" a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta diferente, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a poesia. O resultado se transformou num livro.

Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura.

Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do discurso escrito, em oposição ao oral. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:

1. Enquanto o discurso oral é efêmero, o discurso escrito tem uma permanência indefinida; 2. enquanto o discurso oral é fluido e aberto, isto é, está sempre em movimento, como a vida, e sujeito a mudar a todo instante, o discurso escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança; 3. enquanto o discurso oral se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o discurso escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.

Pois bem, embora todo discurso tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.

Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o destino não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz respeito à primeira característica do discurso escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira característica, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de significar a permanência plena ou concreta do seu texto.

Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada igualmente por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é bem assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu como as transformações pelas quais ele passou antes de ficar pronto.

Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros como numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer como se fosse um desenho animado. Ele pareceria, então, fluido como uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a adicionar fotogramas a essa fita, ele pareceria também aberto como uma fala.

Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.

Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor -atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É assim que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber "dizer muitas mentiras parecidas com a verdade".

Pois bem, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz respeito a um poema, parece-me em geral menos apropriado falar de "tradução" do que, como dizia Haroldo de Campos, de "transcriação".


In.Ilustrada. Folha da São Paulo,São Paulo, sábado, 03 de abril de 2010

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


O decote de Vênus


por Brasigóis Felício*



Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.

Gilson Cavalcanti escreve versos simples mas não simplórios. Ele tem domínio do verso, tem humor, sabedoria, e uma verve meio satírica, o que o faz palatável aos viventes humanos dotados de sensibilidade e recepção para a arte poética. Já pelo título se vê que todo o livro tem como tema único o plural universo feminino. O poeta abre o volume com um texto da poetisa Yêda Schmaltz, a quem homenageia mais uma vez, no corpo do livro: “Esta vontade de morder o mundo/e o mar que me afoga/as mulheres estão continuando/no sofrimento do amor,/que droga/mulher não presta para nada/a não ser para chorar/”. (In Baco e as Anas Brasileiras).

Já na abertura do livro Eva toma a palavra, sendo a voz narradora constante: “Sou Eva/a viva flor primeva/a que desceu do paraíso/a par do que precisa consertar/Sou Eva/doida doida/doidivana, doidivina/a que se dividiu na dor/parindo outras dores/ Fui Eva/ de cama mesa e banho/meu corpo não tem tamanho/e trago na carne hipocondríaca/contorcida entre costelas/a serpente entretelada de estrelas/”. Depois de outras pérolas, uma pitada de ironia: “O meu corpo/arado aos dentes/para o caminho das estrilas/sou Eva e vivo/de semear a semente/no sutiã dos conventos/a mulher de quatro elementos/para o espetáculo da nova era/”.

No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.

Esmera-se em ricas metáforas, em seu poetar sobre o mito e o fascínio do feminino – e mesmo a essencialidade de ser reprodutora e útero da vida, o poeta não endeusa, não mitifica – mas questiona, espicaça, como no poema A mulher e o espelho: “De frente ao espelho/os seios hiperbolizados na mão/como quem semeia fruta-pão;em pleno outono/(...) Por que tudo o que é feminino/cheira a naftalina?/. (...) O vestido de noiva/o hímen complacente/que guardo de presente/ao amado:/o gesto transparente/escorrendo na grinalda do tempo/”. Poesia rica em imagens, inventiva, cheia de verve.

Mais adiante, o poeta questiona o sulco dos hábitos de sua musa, real ou imaginada pela licença poética: “O que guardas/debaixo desse hábito de cambraia, mulher?/A castidade da fé, ou o ferrolho do prazer?”. Gilson Cavalcanti permite-se a licença poética de brincar com os versos popularizados na canção de Ataulfo Alves, sobre Amélia, a mulher sem vaidade: “De verdade, Amélia era a melhor/porque despida de menor vaidade/de Amélia a Maria Bonita,/ a boca maldita da contrariedade/”. No poema Cabra da peste, uma mostra de sua verve bem humorada:”Maria da Guarda/é neta da noite/bebe até ficar rica/compra briga por açoite/”.

Há uma hora marcada para o encontro do tempo dos relógios, e com os perigos vertiginosos do sexo? O poeta reflete: “Sem horas/atrás do amor/rumo adiantado/A ausência/adia a cor do pecado./Há dias, os ponteiros do meu sexo/apontam para o seu sexo/Qual dia acerto? São pitadas de brincanagem, adicionadas, como ervas finas, à geléia geral da linguagem – que vem a ser a alquimia da transfiguração do verbo, na criação poética.

Eu digo: elas por elas tivemos Elis/que só não foi feliz/por que não quis?/Mais leve de fardo foi Leila Diniz: o montão de areia para o caminhãozinho dos homens. G.C diz: “Leila Diniz encheu a pança/e foi desfilar no Leblon/em Copacabana/virou a cabeça dos homens/e desfez as mulheres/de suas saias de nuvens e areia/(...) o seu vôo foi tão leve/que a levou/para o umbigo do cosmos/de forma tão breve/”. Elis por Elis, tivemos uma, inquieta e vibrante: uma Regina sem medo de querer ser feliz.

Tanto agitou, em sua mente vertiginosa, e em seu corpo pequeno, que implodiu, numa overdose dantesca: foi nitroglicerina pura. Sendo de voz tão afinada, como explicar que não levou sorte, nem teve engenho e arte na afinação da arte de viver em paz, apesar da angústia inerente a todo Ser? Também, pudera: se desde criancinha, lá em Porto Alegre, já desafinava no coro dos contentes, é de se espantar que não tenha atravessado o samba muito antes. O poeta Gilson Cavalcanti confirma: “Sua voz/cascata de cristal/convocando a canção amiga/agora, um outro Tom/a faz equilibrar-se/na bossa etérea/entre Vinicius e Jobim/”. Esta Elis que foi a melhor intérprete de O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.

Ao final, recordando tantas partidas sem aviso e sem despedida, antes de lamentar que Elis tenha partido, é melhor re-cordar (tornar ao coração) que apareceu não a Margarida, e sim a sua Maria Rita, para animar a festa, segundo G.C. No poema Terezuda, mais um instante de alegre erotismo: “A beleza de Tereza/não se põe na mesa/Tetê se abunda/em bicicleta/é tesão de sobra/na padaria de meus olhos/Vem, Tetê, testar/a massa que nos promete o pão!’. E vai G.C. na carruagem da mesma malícia: “Kátia, de onde trouxestes/essas pernas tão lindas?/Drummond não teve acesso a elas/teria morrido de tanta poesia/”. O poeta Gilson Cavalcanti fecha o seu livro O decote de Vênus revelando-se pronto a encenar o último ato no drama de existir: “Completamente nu/nu de tudo, de todos/ (...) Fecham-se as cortinas,/porque a vida vai começar/do outro lado do espelho/”.


* Brasigóis Felício é poeta, cronista, e Membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem: Zacarias Martins

Valdivino Braz - Poema












Chão de ausências

O vento varreu os rastros
e apagou deste lugar os sinais
da nossa presença.
Sou estranho nesta terra, minha mãe,
e piso um chão de ausências.

Arrancaram-me as raízes
e as curicacas, meu pai,
e não sei dos meninos meus irmãos,
soltos no mundo,
feitos filhos de ninguém.

Entre os esteios da casa desmoronada,
vasculho e recolho de tempo vestígios
- quase nada - das origens
e do que fomos outrora,
neste solo sáfaro
de nós.

Só escombros, minha mãe,
e a solidão
das macaúbas.


In. A palavra por desígnio.
Imagem retirada da Internet: Perdida

Valdivino Braz - Poema

Com este poema, encerramos a trilogia Blues, uma experiência simbolista muito interessante de Valdivino Braz, um dos mais criativos poetas brasileiros. Sejam todos bem vindos a participar com sugestões interessantes no campo da literatura: poemas, contos, crônicas e ensaios. Boa leitura!




ÂMBAR E BLUES


PÊNDULAS LÂMPADAS

BÊBADAS BALADAS BADALADAS

MADRUGADAS NO BAR DOS BARDOS


CAMPÂNULAS E CALÊNDULAS

NOCTÂMBULAS PALABRAS

QUE SE DESDOBRAM

DE SUAS DOBRAS


LÂMINAS

PUSILÂMINES

SONÂMBULAS SÍLABAS

SIBILADAS


TRAGOS AMARGOS

VIDAS PERDIDAS

NAS NOITES DE TUDO

COM AS BAGAS DE SEUS NADAS


VÂNDALAS MARIPOSAS

KAMIKAZES DA LUZ

SOBRE AS MESAS

EM COPOS DE ÂMBAR

E BLUES






Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema




O TRISTE FIM DE JOE BLACK



Joe Black se enrabichou com Suzana,

uma leoa lá em Louisiana,

mas não deu certo com aquela dona,

e se embeiçou por uma loura no Missouri.

Conheceu tudo que havia de bom e de ordinário

em suas belas e louras aventuras.


Agora o seu negócio é roer o osso de tudo isso,

feito um velho cão deitado num canto da calçada,

um sujeito caído de mau jeito à beira do meio-fio,

ou ali de pé a contemplar o rio e a balançar o corpo,

como se fosse o balanço de um relógio no tempo frio.


Com o rosto oculto na sombra de seu chapéu preto,

Joe Black sempre gunguna,

que não quer mais se meter com loura nenhuma.

Prometendo um dia se jogar no rio

de águas tão profundas quanto suas mágoas,


prometendo se jogar por tudo isso,

prometendo se jogar no rio e acabar logo com isso.

Não faça isso. Há quem lhe peça,

mas já sabendo que ele fará exatamente isso.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!


Dia virá depois de um tremendo pileque

em que ele fará exatamente isso,

pro fundo do rio com os seus gemidos e resmungos,

pra misturar seu corpo negro com os murmúrios do mundo,

pra correr mundo com a água turva e turbulenta de tudo.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!



Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema


Melancholy Blues


B.B. Pinga Made in Brazil num bar azul do Tennessee,
um desses barzinhos chinfrins, como tantos por aí.
B.B. Pinga no King Creole em New Orleans,
onde o Elvis cantou praquele filme Balada Sangrenta.
Também bebi ali pelos bares da Carolina do Sul,
perdi minha alma numa tarde cor de mostarda e magenta,
my soul que se escondeu do sol,
numa bebedeira por causa de Mary Blues.


B.B. Pinga com os negros meus irmãos
dos campos de algodão
e das terras lamacentas do Mississippi,
onde fui perseguido e espancado por membros da Klan.
Quem me dera ser grego e levar a vida na flauta de Pã!


Andei por outras bandas, bebi no Alabama e era só lama,
lodo negro o coração dos brancos
nos sombrios pântanos do Alabama.
É, brother, me embriaguei feito um gambá, se quer saber,
ouvindo B.B. King cantar Nobody loves me but my mother.


Bebi uns tempos com uma prostituta decadente,
que gostava de mim, minimizava-me a dor latente
e consolava minha pobre alma doente.


Let’s go, Baby, eu dizia praquela vadia minha amiga,
que adorava John Lee Hooker e entrou na minha vida.
Tire a blusa, tire o jeans, tire a calcinha, maninha.
Abra seu livro, your pocket bock, com as pétalas do poema.
Mostra, meu amor, a borboleta na flor de suas pernas.


B.B. Pinga até dançar um rock num barzinho de New York,
e lá pelas tantas cantei Tamborim Man com Bob Dylan,
que me presenteou com o seu livro Tarântula.
Lá em Atlanta me jogaram na cara que isso era mentira.


Ainda em New York declamei poemas de Dylan Thomas
e de Eliot, o poeta da terra devastada.
Tive a língua travada pelo nome de J. Alfred Prufrock
e me senti assim um dos homens ocos de Thomas Stearns,
onde se acrescenta o que falta ao próprio Eliot.


É, brother, enchi mesmo a cara em New York,
ouvindo Liza Minelli cantar New York, New York.
Era fim de noite e de repente me lembrei da morte do pássaro,
The Bird, como era chamado o nosso Charlie Parker.


B.B. Pinga até cair morto e virem bater à minha porta
os frios ventos do Norte a me chamar
com a voz negra e gutural do corvo Edgar.


Eram noites geladas
naquele inverno da nossa desesperança.
Eu lia o romance de Steinbeck
e ouvia na rua os gritos de Florence:
Fuck you, Joe Black! No maior pileque,
a velha e doida Florence com o seu chapéu de flores
e os mendigos lá fora,
se esquentando ao fogo dos tambores.


B.B. Pinga feito mosca de bar e me danei.
Me dei mal com o melô da minha melancolia no Barfly,
e me mandei com Robert Johnson praquela encruzilhada.
Topei um solo de viola em duelo com o Diabo,
perdi a parada, bebi uma caixa-d´água de pinga
e te digo, irmão, que a vida é mesmo uma íngua.


Minha vida ao desalento é um velho sax em surdina,
lamento perdido na madrugada,
tocado de uma sacada para os telhados do Brooklin
e do Bronx e do Harlem.


Ó my mother, estou indo, estou voltando pra casa.
Sofro de delírios, ando vendo coisas,
estranhas coisas como um bebê de regresso às tuas entranhas,
o bastardo que sou de um pai negro que se afogou
no lago profundo de teus olhos azulegos, ó mãe.


Estou a caminho,
sozinho com a minha gaitinha de blues a tocar.
De volta ao lar, de volta ao lar,
pois todo caminho é circular.


Andarilho pelos trilhos do destino,
vou indo nesse trem de viajantes clandestinos,
e esse trem a me levar vai me deixar no fim da linha,
de parelha com o riozinho onde tudo começa
e só regressa com o fim do dia a se acabar.
Já não demora mais a hora de chegar, mãezinha.


Mamãe, mamãe, estou aqui.
Estou bem aqui, mamãe.
Cansado de tudo,
não quero mais perambular pelo mundo.
Nunca mais.
Never more.
Nem que eu olhe pra trás.
Nem que eu chore
e me desespere pra voltar.
Nem por amor.
Não quero.
Não quero mais.


O corvo me espanta e me persegue feito alma penada,
querendo que eu pague a conta de tudo com a minha vida.
Tenho pavor do corvo Edgar,
que se acabou de tanto beber,
e no entanto era o grande Edgar Allan Poe,
o grande Allan Poe,
o grande Edgar.


B.B. Pinga num barzinho do meu bairro no Brasil,
ouvindo B.B. King e viajando pelas bandas do Blues,
voltando no tempo sem sair do lugar em pleno ano 2000.
Daí compus o blues da longa história que se ouviu,
um pouco também ao som de John Lee Hooker,
e talvez seja este o mais longo dos blues,
indo de trem até chegar ao Guinness Book.





Imagens retiradas da Internet

Floriano Martins - Poema


Blacktown hospital, bed 23

6.

Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.


In. Campos queimados (Inédito).Fonte: Grupomultifoco. Fotografia retirada da Internet: Floriano Martins

Vinicius de Moraes - Poema



















Marcha de quarta-feira de cinzas




Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.


Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.


E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...


A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.


Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...


Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.



Imagem retirada da Internet: Drama

Francisco Perna Filho - Ensaio Curto


Qua me stultitia insanire putas?*


Por Francisco Perna Filho



Natural é ser diferente, poder dizer o que se sente, o que se pensa; fugir dos lugares comuns, sondar o próprio abismo existencial e comungar com os seus pares, com a aflição do mundo, com o dilúvio de ausências e não responder ao chamado dos manipuladores. Eis um traço de insanidade que muitos carregam, mas poucos conseguem alimentar o seu desconserto diante do mundo.

Os loucos atendem aos chamados interiores, dizem não à exterioridade. Não refletem o tempo, ousam; não alimentam esperanças, vivem; não se prendem a nada, celebram. São defensores da vida libertária e plena. As suas mentes são as suas sentenças. O medo não existe, a distância é inócua. O vício não tem cabresto. Eles, os loucos, avolumam-se como caixas empilhadas, são muitos, são múltiplos, apesar de tudo isso, ou por serem assim, são ternos, mesmo que não saibam.

A loucura está mais presente no mundo do que se pensa, manifesta-se no mais recôndito dos seres, na hora imprecisa, não tem cerimônia, não se atrela a nada, basta que algo que desconhecemos a motive e, deliberadamente, ela nos chega, toma conta, desconserta, desestabiliza e, por ser assim, muitos não conseguem divisá-la, não compreendem a sua linguagem, o seu discurso.

Somente os loucos, os leves de espírito, os pensadores, os poetas, os artistas e, lógico, os psiquiatras e psicólogos (nem todos, claro!)conseguem conviver com ela. Erasmo de Rotterdã lhe dedicou um belo ensaio: Elogio da Loucura; Michel Foucault escreveu A História da loucura; Cervantes, magistralmente, criou um dos personagens mais maravilhosos e insanos da literatura universal: Don Quixote, O cavaleiro da triste figura; Machado de Assis,em O Alienista, nos brinda com Simão Bacamarte e a sua Casa Verde; Fernando Sabino, seguindo a modalidade picaresca, também aborda o tema, em O Grande mentecapto, Sem falar na genialidade, inexplicável, de Fernando Pessoa, com seus heterônimos, com sua loucura literária e o seu desassossego:“toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.”

Todos eles, pensadores e artistas, especularmente refletem o seu tempo, os seus pares, os seus anseios. Traduzem a natureza humana e o abissal caminho que percorrem. Convivem com a fúria humana, com a aparência das coisas e as suas manifestações.

Se ser louco é rebelar- se, ser são é mover-se socialmente. É buscar o equilíbrio, é apascentar os lobos da discórdia, analisando os possíveis passos que se vai dar. Ser paciente e ser compreensivo, é olhar com profundidade os acontecimentos. É ser paciente e obediente e adaptar-se às mais variadas situações do dia-a-dia, aos absurdos presenciados nas ruas, nas repartições públicas, em todo tipo de descaso para com o cidadão, na relação diária com os seus pares.

Ser são é aceitar ser governado por incompetentes, é dizer que Michael Moore é um pensador, que essa porcaria que é veiculada nas emissoras de rádio é música, que o conceitual, nas instalações absurdas, é arte; que candidatos prestam contas ao tribunal eleitoral, que o Carrefour vende barato e que as universidades públicas são para pobre.

Ser são ou não, eis a questão! A rima é pobre, mas a questão é séria: de que lado estamos? De que lado você está? Nada melhor do que se olhar no espelho, se você for diferente...

* “De que loucura julgas tu que eu sofra?”

Imagem: Stultifera Navi, de Sebastian Brant.


José J. Veiga - Entrevista


Entrevista com José J. Veiga



por Fabio Weintraub, Sergio Cohn e Ruy Proença*



Falecido em outubro de 1999, José. J. Veiga — autor, entre outros títulos, de Cavalinhos de Platiplanto e A máquina extraviada — fala de sua infância, sua amizade com Guimarães Rosa, discorre sobre as imposturas da globalização e comenta aspectos de sua obra com os poetas Fabio Weintraub, Ruy Proença e Sérgio Cohn nesta que foi a última entrevista concedida pelo escritor.


WEBLIVROS!: O senhor costuma dizer que a denominação de fantástico para a sua literatura deve ser usada com cautela. Aquela hesitação entre o natural e o sobrenatural característica do gênero fantástico, segundo Todorov, talvez não funcione aqui no Brasil, onde o fantástico está mais perto da gente...

José J. Veiga: Esse fantástico precisa ser muito pensado, estudado, porque não é tão fantástico assim. É o que acontece mesmo. Por exemplo, os medos que acompanham aquelas pessoas, aquelas crianças todas, existem muito nos lugares pequenos do interior, ao menos para as pessoas do meu tempo, da minha geração. Quando fazia frio, as crianças ouviam, ao pé do fogo na cozinha, as pessoas mais velhas contando estórias de assombração, coisas inexplicáveis que aconteciam. A gente ia dormir preocupado com aquilo. E sonhava, tinha pesadelos incríveis em função daquelas estórias que ouvia. Embora muito alegre durante o dia, com sol e tudo, a vida da gente, de noite, quando nem luz elétrica havia, era uma coisa assustadora mesmo. Além disso, coisas incríveis como a lepra, erradicada de muitos países, acontecem ainda aqui. O desrespeito pela pessoa exercido pelos poderosos..., fantástica mesmo é a existência de sociedades que ainda toleram isso no mundo de hoje, com um pé já no novo milênio. Dizia-se que o ano dois mil seria um marco. Desde criança, ouço falar nisso, no "admirável mundo novo". Mas, para nós, parece que estamos ainda lá atrás. Vai custar a chegar.

WEBLIVROS!: Um tema bastante recorrente nos seus livros é o da perplexidade diante do estrangeiro. Fale um pouco disso.

José J. Veiga: Aí entram também coisas da infância. No lugar pequeno em que a gente morava, meio fora de mão, só se viam as pessoas dali mesmo, que eram poucas e alcançáveis pela visão. Então, quando chegavam pessoas de fora, a gente ficava recuando, assim, olhando, não é?, se defendendo. Aquilo fica impregnado na cabeça da gente e nos acompanha por muito tempo. O estranho, o ainda não visto, é o invasor.

WEBLIVROS!: O senhor mencionou que o que diferencia o escritor do cidadão normal é o olhar indagativo, a depuração do olhar, atento para as coisas. Em seu último livro, Objetos turbulentos, o senhor descreve uma série de objetos minuciosamente dentro desse universo fantástico. Um deles é o cachimbo, que já aparecera no Relógio Belisário e reaparece agora em um conto. A descrição é pormenorizada, minuciosa. Além do fato de ter sido, talvez, um usuário do cachimbo, queria saber se o senhor costuma fazer pesquisa prévia dos detalhes, como fazia o Guimarães Rosa, de quem o senhor foi amigo...

José J. Veiga: Gosto de que todos os objetos e situações sejam visualizados por quem lê. Procuro dar o máximo de informações para que o leitor possa ver o objeto. E também olho muito para fixar a imagem dele e para tentar reproduzi-lo depois com palavras, de modo que o leitor o veja. Aliás, por falar em Guimarães Rosa, que eu li muito, no Grande Sertão, na página 284 da edição da José Olympio, há uma coisa curiosa. É logo após um combate no qual o bando de Riobaldo foi dizimado. Ele escapa, se mete num lugar que ele conhecia, fica lá, só pescando... Ele fala dos peixes, dos passarinhos com todos aqueles nomes, tudo explicadinho, as plantas que havia, as florzinhas silvestres... É um longo parágrafo que ele termina, vejam a sonoridade, dizendo: "Esse lugar chamava-se Guararavacã do Guaicuí. Hoje se chama Caixerópolis". (risos) Ele derruba, não é? (risos)

WEBLIVROS!: Ainda com relação ao cachimbo, queria que o senhor nos falasse novamente do absurdo que é acendê-lo com isqueiro.

José J. Veiga: Ah, mas é mesmo. O cachimbo é uma coisa para você curtir. Eu, por exemplo, fumo cachimbo, mas não carrego pra rua. Não se fuma em qualquer lugar. Só em casa, no seu ambiente, com o fumo que você escolheu, uma preferência definida: se não tiver daquele tipo, você não fuma. Cada fumo tem um gosto. Então você tem que acender com muita cautela. Uma vez um cara me recebeu na Biblioteca Nacional, fumante de cachimbo, me convidou. Daí todo aquele ritual, não pode apertar muito o fumo e tal. Quando eu fui ver, ele pegou o isqueiro e... Nossa! Onde já se viu? O cheiro do fluido à base de petróleo contamina o gosto, estraga tudo, não presta a cachimbada. A maneira correta de se acender é com o fósforo, depois que queimou a cabeça química e ficou só a madeira. Por isso, para acender bem o cachimbo, você pode gastar até três, quatro fósforos. Não é frescura não.

WEBLIVROS!: O senhor falou que o cachimbo deve ser fumado em casa. Justamente nesse conto sobre o cachimbo, o protagonista vai fumar fora de casa e aí acontecem as piores coisas... (risos)

José J. Veiga: Punição. (risos)

WEBLIVROS!: Por que existe esse mito de que o cachimbo deve ser fumado em casa?

José J. Veiga: Mas não é mito! É fato mesmo. (risos) Em casa ou no trabalho. Em um ambiente onde ninguém proteste, você pode fumar como se estivesse em casa. O cachimbo dura, não é? Uma cachimbada satisfaz por muito tempo. Cigarro você fuma um, dali a pouco tempo já está com vontade de fumar outro. Como eu trago a cada baforada que dou, o cigarro é triste. Já o cachimbo não. Fico com ele na boca, chupo, sopro, chupo, sopro..., de vez em quando eu tiro e dou uma tragada boa, assim, gostosa. Então a gente aspira menos a parte tóxica do fumo. É uma coisa boa.

WEBLIVROS!: E qual o seu fumo preferido?

José J. Veiga: Tem dois. Um é muito difícil de encontrar. Quando algum amigo viaja à Inglaterra, peço para me trazer. Chama-se Saint Julian. Tem um cheiro assim, lembra uma coisa brasileira: umburana. É suave. Gosto de fumo suave. E tem o Players Navy cut, suave também, mas esse você tem que desfiar. O outro já vem desfiado, fofinho. Esse vem numas plaquetinhas dentro da lata. Você tem que cortar na mão, separar. São esses dois que eu estou fumando. Recentemente ganhei um bom estoque do meu editor, que viajou e me trouxe.

WEBLIVROS!: Mas, voltando a seu último livro, Objetos turbulentos, os contos deixam a impressão de um certo "fetichismo", como se a relação com o objeto se impusesse...

José J. Veiga: Mas há mesmo fetichismo. Os objetos que você usa em casa, que fazem parte da sua vida como se fossem da família, suscitam um apego enorme. Quando acabam, quebram ou ficam inutilizados, me dá uma certa tristeza... Poxa, aquele aparelho de barba, tão bom, que eu tinha, caiu, entortou, não entra mais a lâmina..., que pena. Posso comprar outro, mas não é o mesmo. Tenho apego às coisas que me servem, das quais eu me sirvo.

WEBLIVROS!: Refiro-me ao fetichismo no sentido mais especificamente psicanalítico e aproveito para perguntar se há leituras psicanalíticas da sua obra, se o senhor acha que procedem...

José J. Veiga: Muitas. Já desde Os cavalinhos de Platiplanto. Um psicanalista, que tenha tempo e pachorra para pesquisar aquilo, vai encontrar muita coisa que explique o comportamento daqueles personagens forjados com a intenção de espelhar o comportamento do ser humano em formação. Aí está a questão da observação. Eu observo o comportamento da juventude, comparo com o que era no meu tempo... É sempre a mesma coisa passando-se em outra época, com outros ingredientes, mas, no fundo, é sempre o ser humano querendo amansar um pedaço do mundo para nele se instalar e ser o mais feliz possível.

WEBLIVROS!: O senhor já declarou que, se tivesse que indicar apenas um de seus livros para um leitor que quisesse conhecer a sua obra, indicaria Os cavalinhos de Platiplanto, porque todas as suas inquietações já estavam lá. Todo autor acaba se prendendo a algumas questões?

José J. Veiga: O autor é orientado por preocupações que ele carrega desde a infância, quando se dá a tomada de consciência, e o conduzem pela vida afora. Aqueles são os problemas em volta dos quais ele trabalha para fazer isso que acabei de falar: domesticar um território, um pedaço do mundo, para nele se instalar e procurar viver com o menor sofrimento possível. Isso é permanente na alma humana e comanda a vida das pessoas, embora o autor talvez nem tenha consciência disso. Mas, no final das contas, é o que ele está fazendo. Eu evito muito, por exemplo, noticiários de imprensa, de televisão, as cenas desses massacres, desse esmagamento do ser humano indefeso. Isso me causa tanto mal que, hoje em dia, estou me preservando. Já absorvi muito disso, já tenho bastante coisa dentro de mim para trabalhar. Chega, já estou lotado.

WEBLIVROS!: O senhor disse que já foi criticado por escrever uma literatura otimista demais...

José J. Veiga: Ah, foi. Disseram isso a propósito do final do livro A hora dos ruminantes. Eu não acreditava que aquela ditadura tivesse condições de durar muito. Achei que ela ia se dissolver. Demorou muito mais do que eu esperava. Em A hora dos ruminantes, eu pensava que ela ia ser curta. Por isso aquele final otimista. Os ruminantes foram embora, deixaram a sujeira aí, mas a gente limpa. O relógio da igreja, que estava parado há muito tempo, enguiçado, foi consertado, bateu horas, todo mundo se animou. Fui muito criticado por alguns, que me acharam muito otimista. Daí eu fiz uma espécie de continuação em Sombras de reis barbudos, livro no qual a repressão e o esmagamento chegam ao auge. Mas no fim, pensando bem, a ditadura acabou como está em A hora dos ruminantes: saiu pela porta dos fundos, não foi? O Figueiredo nem entregou a faixa ao Sarney, saiu pelos fundos, desmilingüiu como os ruminantes. Até hoje ninguém sabe direito como foi. Simplesmente foram embora. Viram que não estavam agradando. (risos)

WEBLIVROS!: E hoje? O senhor segue sendo otimista?

José J. Veiga: Não. Acho que depois que acabou esse negócio todo, veio aquela grande esperança, falou-se na Nova República e tal... Mas o esmagamento continua. Disfarçado. Não tem ditador, mas tem entreguismo, loteamento do país... Fala-se muito hoje em globalização, abertura de mercados. Abertura dos nossos mercados. Continua como sempre foi: os países periféricos vendendo matéria-prima a baixo preço e importando de volta produtos caríssimos, já com o trabalho deles lá, com o salário bom deles. Aqui, todo mundo desempregado e importando coisas. Pelas leis internacionais acabou a proteção aduaneira; mas existem as sobretaxas. O que é isso? É proteção aduaneira com outro nome.

WEBLIVROS!: E essa desvalorização, também se estende à literatura? Uma vez o Mário Faustino, comentando um poema do Jorge de Lima, disse que se o poema fosse escrito em inglês ou francês estaria entre os dez mais belos do século.

José J. Veiga: O problema não se deve à língua. O português hoje é a sétima língua mais falada do mundo. Veja quantas línguas ficam para trás. Se repete muito isso: "Ah, se eu escrevesse em outra língua que não o português..." Isso é uma bobagem imperialista. Eu nunca ouvi falar de um escritor holandês que ficasse chorando pelos cantos, dizendo: "Pobre de mim que escrevo numa língua pouco falada..." (risos) Nem um sueco, nem um alemão. Quem é que fala alemão hoje? Só Alemanha e Áustria. O português é muitíssimo falado. Então, não é por aí. O que falta é o respaldo. Se a gente tivesse uma bandeira, alta, forte, o português seria falado, estudado e todo mundo poderia aprender.

WEBLIVROS!: Há obras de ficção que remetem a universos muito específicos. Quando lhe perguntaram se havia lido o Ulisses do Joyce, o senhor disse que não, pois tal livro exigia um conhecimento enorme do folclore estrangeiro...

José J. Veiga: Mais especificamente do folclore irlandês. A Irlanda é um paisinho pequeno com uma enorme importância literária. São todos descendentes dos celtas, não é? Há até um poema do Yeats, lindo, que fala dos celtas, pais deles todos. Mas sinceramente não vejo motivo para eu me aprofundar num assunto tão específico só pra entender um livro.

WEBLIVROS!: Mas se pode pensar um pouco no reverso da moeda. O Guimarães Rosa seria um autor também difícil aos olhos de um irlandês. Em relação à sua obra, eu pergunto: o senhor acha que ela é mais facilmente traduzível ou ela coloca problemas semelhantes aos que a obra do Rosa oferece aos estrangeiros?

José J. Veiga: Não, o Rosa é muito mais difícil porque, como o Joyce, inventava palavras. Emendava palavras cuja etimologia você precisa conhecer para deduzir o que ele estava falando. Palavras sorrateiras: uma parte vem daqui, outra dali..., caramba! Às vezes invento palavras, quando não acho nenhuma que me sirva. Mas invento de uma maneira tal que, pelo contexto, o lei,tor pode deduzir o significado. Dá pra sacar o que é.

WEBLIVROS!: E a sua amizade com Guimarães Rosa? Como foi mesmo que o conheceu?

José J. Veiga: Nós nos conhecemos por causa de gatos. Eu e minha mulher tínhamos muitos gatos em casa e ele, quando voltou da Europa, após cumprir uma temporada em Paris, trouxe gatos de raça. Nós tínhamos um veterinário que tratava dos nossos gatos, o Dr. Nilo, professor de veterinária. Um dia uma gata do Rosa ficou doente e indicaram o Dr. Nilo. Dona Araci telefonou para ele, que morava num subúrbio, e estava doente, não podia atender. Mas ele disse: "A sra. telefone para Dona Clérida Veiga, ela entende tanto de gatos quanto eu". Decerto ele julgou, pela descrição dos sintomas ao telefone, que não era nada de muito grave e minha mulher podia resolver. Então, ele deu nosso telefone para Araci, ela telefonou. Minha mulher escutou, recomendou as coisas que ela achava cabíveis. A gata ficou boa e a Araci telefonou depois, muito agradecida, nos convidando para ir à casa dela ver os gatos. Fomos e descobrimos que ela era Araci Guimarães Rosa. Perguntei-lhe se era parente do escritor. "Sou mulher dele", ela respondeu. Então eu falei que tinha lido Sagarana em Londres e que tinha gostado muito. Depois da visita, nós a convidamos para vir a nossa casa. Ela então veio. Com o marido. O Rosa foi lá no meu escritorinho, viu os meus livros, pegou um, pegou outro, perguntou, sentou, começamos a conversar..., e daí partiu a amizade que tivemos até a morte dele. A gente estabeleceu um regime: um domingo eu e minha mulher íamos até a casa dele — almoçávamos e ficávamos até a noitinha — e na semana seguinte eles vinham à nossa casa. Foi assim por muitos anos. Eu acompanhei a composição do Corpo de baile inteirinha. Ele lia pra gente. As nossas mulheres choraram muito com a história do menino que teve gangrena no pé e ia morrer. A mãe se lamentando: "Coitadinho, olha o pezinho dele". Quando eu vi, as duas mulheres estavam em pranto. Acho que é no "Miguilim". O Rosa também era muito espírito de porco, provocador, adorava discutir. Um dia ele tomava a defesa do Getúlio Vargas, de quem nunca gostei. Era terrível, eu protestava. Passado algum tempo, ao me ouvir dizer que o Getúlio, apesar de tudo, havia criado leis e dispositivos que, é preciso reconhecer, ajudavam muito o trabalhador, ele retrucava: "Que Getúlio nada, Getúlio é um safado e tal..."; esquecendo o que ele mesmo havia dito anteriormente. (risos)

WEBLIVROS!: O senhor falou que o Guimarães Rosa gostava de ler os textos dele em voz alta para vocês. O senhor lê seus livros em voz alta para pensar o ritmo?

José J. Veiga: Para mim, leio. Acabo de escrever um trecho, algumas páginas, daí eu paro, dou uma leitura. Uma coisa importante é a pontuação. Os gramáticos convencionaram que todo advérbio deve vir entre vírgulas: "Eu, vírgula, pessoalmente, vírgula... ". Se o aluno escrever e não puser vírgula, tira má nota. "Olha aí o advérbio, cadê as vírgulas?" Eu não faço isso, deixo que a vírgula seja a respiração de quem está lendo ou falando. "Eu pessoalmente não gosto disso." Para que a vírgula? Preocupo-me muito com o ritmo. Em certos trechos, há mesmo certa musicalidade. Tenho muito que ver com música, som, som das palavras. O som delas chacoalhando lá na frase.

WEBLIVROS!: Quando você vai começar um livro novo, você pensa assim: "Vou experimentar agora tal tipo de estrutura, de narrativa, o som das frases e tal..."?

José J. Veiga: Penso, conforme o assunto. Acho que o assunto comanda muito isso. Isso exige um ritmo tal..., e vou tentando fazer aquilo. Mas depois, lá adiante, eu me interesso muito pelo que estou fazendo e esqueço um pouco o planejamento. Quando faço a revisão para passar a limpo, reformular, aí então volta a idéia. Então o planejamento entra e, às vezes, não entra; porque ficou desnecessário, ou relegado a um segundo plano, esquecido. Acho que cada um, sem perceber, tem um ritmo. A cabeça, o modo de pensar, de articular, emendar as idéias, as frases, é dele. Está embutido, ele não precisa perder tempo se preocupando com isso, porque vem naturalmente. Ele tem a batida. É claro que o ritmo muda. Numa narrativa você joga com as diferenças. Tem hora que a coisa se acelera, hora em que você entra numa mansidão, num ritmo mais lento, compassado. Mas isso não deve ser a preocupação primeira. A não ser para um principiante, que ainda não descobriu as coisas. Então ele tem de levar isso em conta se quiser fazer as coisas conscientemente. Depois isso se torna natural. É como o estilo. Antigamente havia manuais de estilo. Você precisava primeiro formar um estilo. Até que se descobriu que não, o estilo se forma por si. Eu li no tempo do ginásio um livro de um francês chamado Antoine Albalat: A arte do estilo, traduzido pelo Cândido de Figueiredo. Era interessante, ensinava coisas. Havia transcrições de autores antigos, inclusive de autores gregos traduzidos para o francês, boas traduções que mantiveram o ritmo etc. Foi bom. No Brasil, algo semelhante foi feito por um professor da Fundação Getúlio Vargas, muito amigo do Antônio Houaiss, Othon Moacyr Garcia. O livro chamava-se Comunicação e prosa moderna. Quando eu fui dirigir a editora, fiquei espantado: como se vendia aquele livro! Edições de dez mil exemplares saíam uma após outra, uma após outra. Muita coisa. O livro do Albalat dizia o que se deve evitar: repetições do "que", repetições do pronome..., é útil.

WEBLIVROS!: E aquela história de as palavras terem aura? Que não se pode comprimir a aura das palavras como se aperta o gado num curral?

José J. Veiga: Sim, as palavras demandam espaço, mais espaço do que o espaço físico que ocupam na linha. Deve haver espaço para que elas possam respirar. Se você bota muita palavra enquanto escreve, se você se empolga e tudo vem fácil, desconfie. Cuidado com o que vem fácil demais, porque em geral não é bom. Depois da empolgação, você vai ler e descobre que tem palavra demais. Tem que arejar o texto. Uma sala grande cheia de coisas não dá gosto de ficar. É preciso tirar algumas coisas para tornar o ambiente acolhedor. Assim é com o texto também. Você tem que tirar a palavra que entrou sem licença, clandestina, sem pagar entrada, sem contribuir para o andamento da história. Tem que desbastar, tirar o bagaço.


* Fabio Weintraub, poeta e editor, autor de Sistema de Erros (SP: Arte Pau-Brasil, 1999).

* Sergio Cohn, poeta e editor da revista azougue, autor de Lábio dos Afogados (SP: Nankin, 1999).

*Ruy Proença, engenheiro e poeta, autor de A lua investirá com seus chifres (SP: Giordano, 1996) e Como um dia come o outro (SP: Nankin, 1999).


Bibliografia de José J. Veiga

Os cavalinhos de Platiplanto (contos). Rio de Janeiro, Nítida, 1959.

A hora dos ruminantes (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.

A máquina extraviada (contos). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.

Sombras de reis barbudos (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.

Os pecados da tribo (novela). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976.

De jogos e festas (novelas). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.

Aquele mundo de Vasabarros (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982.

Torvelinho dia e noite (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985.

A casca da serpente (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.

O risonho cavalo do príncipe (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.

O relógio Belisário (romance). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995.

Objetos turbulentos (contos). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998.

(observação: desde 1997 o autor integra o Catálogo da Bertrand Brasil, tendo toda a sua obra anterior publicada por essa editora).


Esta entrevista foi publicada originalmente pela WEBLIVROS.


Imagem retirada da Internet: José J. Veiga

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