Valdivino Braz - Poema












Chão de ausências

O vento varreu os rastros
e apagou deste lugar os sinais
da nossa presença.
Sou estranho nesta terra, minha mãe,
e piso um chão de ausências.

Arrancaram-me as raízes
e as curicacas, meu pai,
e não sei dos meninos meus irmãos,
soltos no mundo,
feitos filhos de ninguém.

Entre os esteios da casa desmoronada,
vasculho e recolho de tempo vestígios
- quase nada - das origens
e do que fomos outrora,
neste solo sáfaro
de nós.

Só escombros, minha mãe,
e a solidão
das macaúbas.


In. A palavra por desígnio.
Imagem retirada da Internet: Perdida

Valdivino Braz - Poema

Com este poema, encerramos a trilogia Blues, uma experiência simbolista muito interessante de Valdivino Braz, um dos mais criativos poetas brasileiros. Sejam todos bem vindos a participar com sugestões interessantes no campo da literatura: poemas, contos, crônicas e ensaios. Boa leitura!




ÂMBAR E BLUES


PÊNDULAS LÂMPADAS

BÊBADAS BALADAS BADALADAS

MADRUGADAS NO BAR DOS BARDOS


CAMPÂNULAS E CALÊNDULAS

NOCTÂMBULAS PALABRAS

QUE SE DESDOBRAM

DE SUAS DOBRAS


LÂMINAS

PUSILÂMINES

SONÂMBULAS SÍLABAS

SIBILADAS


TRAGOS AMARGOS

VIDAS PERDIDAS

NAS NOITES DE TUDO

COM AS BAGAS DE SEUS NADAS


VÂNDALAS MARIPOSAS

KAMIKAZES DA LUZ

SOBRE AS MESAS

EM COPOS DE ÂMBAR

E BLUES






Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema




O TRISTE FIM DE JOE BLACK



Joe Black se enrabichou com Suzana,

uma leoa lá em Louisiana,

mas não deu certo com aquela dona,

e se embeiçou por uma loura no Missouri.

Conheceu tudo que havia de bom e de ordinário

em suas belas e louras aventuras.


Agora o seu negócio é roer o osso de tudo isso,

feito um velho cão deitado num canto da calçada,

um sujeito caído de mau jeito à beira do meio-fio,

ou ali de pé a contemplar o rio e a balançar o corpo,

como se fosse o balanço de um relógio no tempo frio.


Com o rosto oculto na sombra de seu chapéu preto,

Joe Black sempre gunguna,

que não quer mais se meter com loura nenhuma.

Prometendo um dia se jogar no rio

de águas tão profundas quanto suas mágoas,


prometendo se jogar por tudo isso,

prometendo se jogar no rio e acabar logo com isso.

Não faça isso. Há quem lhe peça,

mas já sabendo que ele fará exatamente isso.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!


Dia virá depois de um tremendo pileque

em que ele fará exatamente isso,

pro fundo do rio com os seus gemidos e resmungos,

pra misturar seu corpo negro com os murmúrios do mundo,

pra correr mundo com a água turva e turbulenta de tudo.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!



Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema


Melancholy Blues


B.B. Pinga Made in Brazil num bar azul do Tennessee,
um desses barzinhos chinfrins, como tantos por aí.
B.B. Pinga no King Creole em New Orleans,
onde o Elvis cantou praquele filme Balada Sangrenta.
Também bebi ali pelos bares da Carolina do Sul,
perdi minha alma numa tarde cor de mostarda e magenta,
my soul que se escondeu do sol,
numa bebedeira por causa de Mary Blues.


B.B. Pinga com os negros meus irmãos
dos campos de algodão
e das terras lamacentas do Mississippi,
onde fui perseguido e espancado por membros da Klan.
Quem me dera ser grego e levar a vida na flauta de Pã!


Andei por outras bandas, bebi no Alabama e era só lama,
lodo negro o coração dos brancos
nos sombrios pântanos do Alabama.
É, brother, me embriaguei feito um gambá, se quer saber,
ouvindo B.B. King cantar Nobody loves me but my mother.


Bebi uns tempos com uma prostituta decadente,
que gostava de mim, minimizava-me a dor latente
e consolava minha pobre alma doente.


Let’s go, Baby, eu dizia praquela vadia minha amiga,
que adorava John Lee Hooker e entrou na minha vida.
Tire a blusa, tire o jeans, tire a calcinha, maninha.
Abra seu livro, your pocket bock, com as pétalas do poema.
Mostra, meu amor, a borboleta na flor de suas pernas.


B.B. Pinga até dançar um rock num barzinho de New York,
e lá pelas tantas cantei Tamborim Man com Bob Dylan,
que me presenteou com o seu livro Tarântula.
Lá em Atlanta me jogaram na cara que isso era mentira.


Ainda em New York declamei poemas de Dylan Thomas
e de Eliot, o poeta da terra devastada.
Tive a língua travada pelo nome de J. Alfred Prufrock
e me senti assim um dos homens ocos de Thomas Stearns,
onde se acrescenta o que falta ao próprio Eliot.


É, brother, enchi mesmo a cara em New York,
ouvindo Liza Minelli cantar New York, New York.
Era fim de noite e de repente me lembrei da morte do pássaro,
The Bird, como era chamado o nosso Charlie Parker.


B.B. Pinga até cair morto e virem bater à minha porta
os frios ventos do Norte a me chamar
com a voz negra e gutural do corvo Edgar.


Eram noites geladas
naquele inverno da nossa desesperança.
Eu lia o romance de Steinbeck
e ouvia na rua os gritos de Florence:
Fuck you, Joe Black! No maior pileque,
a velha e doida Florence com o seu chapéu de flores
e os mendigos lá fora,
se esquentando ao fogo dos tambores.


B.B. Pinga feito mosca de bar e me danei.
Me dei mal com o melô da minha melancolia no Barfly,
e me mandei com Robert Johnson praquela encruzilhada.
Topei um solo de viola em duelo com o Diabo,
perdi a parada, bebi uma caixa-d´água de pinga
e te digo, irmão, que a vida é mesmo uma íngua.


Minha vida ao desalento é um velho sax em surdina,
lamento perdido na madrugada,
tocado de uma sacada para os telhados do Brooklin
e do Bronx e do Harlem.


Ó my mother, estou indo, estou voltando pra casa.
Sofro de delírios, ando vendo coisas,
estranhas coisas como um bebê de regresso às tuas entranhas,
o bastardo que sou de um pai negro que se afogou
no lago profundo de teus olhos azulegos, ó mãe.


Estou a caminho,
sozinho com a minha gaitinha de blues a tocar.
De volta ao lar, de volta ao lar,
pois todo caminho é circular.


Andarilho pelos trilhos do destino,
vou indo nesse trem de viajantes clandestinos,
e esse trem a me levar vai me deixar no fim da linha,
de parelha com o riozinho onde tudo começa
e só regressa com o fim do dia a se acabar.
Já não demora mais a hora de chegar, mãezinha.


Mamãe, mamãe, estou aqui.
Estou bem aqui, mamãe.
Cansado de tudo,
não quero mais perambular pelo mundo.
Nunca mais.
Never more.
Nem que eu olhe pra trás.
Nem que eu chore
e me desespere pra voltar.
Nem por amor.
Não quero.
Não quero mais.


O corvo me espanta e me persegue feito alma penada,
querendo que eu pague a conta de tudo com a minha vida.
Tenho pavor do corvo Edgar,
que se acabou de tanto beber,
e no entanto era o grande Edgar Allan Poe,
o grande Allan Poe,
o grande Edgar.


B.B. Pinga num barzinho do meu bairro no Brasil,
ouvindo B.B. King e viajando pelas bandas do Blues,
voltando no tempo sem sair do lugar em pleno ano 2000.
Daí compus o blues da longa história que se ouviu,
um pouco também ao som de John Lee Hooker,
e talvez seja este o mais longo dos blues,
indo de trem até chegar ao Guinness Book.





Imagens retiradas da Internet

Floriano Martins - Poema


Blacktown hospital, bed 23

6.

Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.


In. Campos queimados (Inédito).Fonte: Grupomultifoco. Fotografia retirada da Internet: Floriano Martins

Vinicius de Moraes - Poema



















Marcha de quarta-feira de cinzas




Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.


Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.


E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...


A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.


Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...


Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.



Imagem retirada da Internet: Drama

Francisco Perna Filho - Ensaio Curto


Qua me stultitia insanire putas?*


Por Francisco Perna Filho



Natural é ser diferente, poder dizer o que se sente, o que se pensa; fugir dos lugares comuns, sondar o próprio abismo existencial e comungar com os seus pares, com a aflição do mundo, com o dilúvio de ausências e não responder ao chamado dos manipuladores. Eis um traço de insanidade que muitos carregam, mas poucos conseguem alimentar o seu desconserto diante do mundo.

Os loucos atendem aos chamados interiores, dizem não à exterioridade. Não refletem o tempo, ousam; não alimentam esperanças, vivem; não se prendem a nada, celebram. São defensores da vida libertária e plena. As suas mentes são as suas sentenças. O medo não existe, a distância é inócua. O vício não tem cabresto. Eles, os loucos, avolumam-se como caixas empilhadas, são muitos, são múltiplos, apesar de tudo isso, ou por serem assim, são ternos, mesmo que não saibam.

A loucura está mais presente no mundo do que se pensa, manifesta-se no mais recôndito dos seres, na hora imprecisa, não tem cerimônia, não se atrela a nada, basta que algo que desconhecemos a motive e, deliberadamente, ela nos chega, toma conta, desconserta, desestabiliza e, por ser assim, muitos não conseguem divisá-la, não compreendem a sua linguagem, o seu discurso.

Somente os loucos, os leves de espírito, os pensadores, os poetas, os artistas e, lógico, os psiquiatras e psicólogos (nem todos, claro!)conseguem conviver com ela. Erasmo de Rotterdã lhe dedicou um belo ensaio: Elogio da Loucura; Michel Foucault escreveu A História da loucura; Cervantes, magistralmente, criou um dos personagens mais maravilhosos e insanos da literatura universal: Don Quixote, O cavaleiro da triste figura; Machado de Assis,em O Alienista, nos brinda com Simão Bacamarte e a sua Casa Verde; Fernando Sabino, seguindo a modalidade picaresca, também aborda o tema, em O Grande mentecapto, Sem falar na genialidade, inexplicável, de Fernando Pessoa, com seus heterônimos, com sua loucura literária e o seu desassossego:“toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.”

Todos eles, pensadores e artistas, especularmente refletem o seu tempo, os seus pares, os seus anseios. Traduzem a natureza humana e o abissal caminho que percorrem. Convivem com a fúria humana, com a aparência das coisas e as suas manifestações.

Se ser louco é rebelar- se, ser são é mover-se socialmente. É buscar o equilíbrio, é apascentar os lobos da discórdia, analisando os possíveis passos que se vai dar. Ser paciente e ser compreensivo, é olhar com profundidade os acontecimentos. É ser paciente e obediente e adaptar-se às mais variadas situações do dia-a-dia, aos absurdos presenciados nas ruas, nas repartições públicas, em todo tipo de descaso para com o cidadão, na relação diária com os seus pares.

Ser são é aceitar ser governado por incompetentes, é dizer que Michael Moore é um pensador, que essa porcaria que é veiculada nas emissoras de rádio é música, que o conceitual, nas instalações absurdas, é arte; que candidatos prestam contas ao tribunal eleitoral, que o Carrefour vende barato e que as universidades públicas são para pobre.

Ser são ou não, eis a questão! A rima é pobre, mas a questão é séria: de que lado estamos? De que lado você está? Nada melhor do que se olhar no espelho, se você for diferente...

* “De que loucura julgas tu que eu sofra?”

Imagem: Stultifera Navi, de Sebastian Brant.


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