Odir Rocha - Poema


Manoel Odir Rocha nasceu em Araguari - MG. É médico pela Faculdade de Ciências Médicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (Curitiba), onde também cursou (sem se graduar) Sociologia e Administração Pública. Veio para o Tocantins em 1971 (quando ainda era Goiás), mais especificamente para Colinas do Tocantins, onde montou um pequeno hospital. Em Colinas, exerceu a profissão de médico até a criação do novo Estado, quando foi eleito prefeito da cidade, só que agora Colinas do Tocantins. Concluído o mandato mudou-se para Palmas, sendo secretário municipal de Ação Social e Habitação do primeiro prefeito eleito. Foi ainda suplente de Deputado Federal, Secretário Estadual de Administração, Secretário Extraordinário para Assuntos Metropolitanos. Em 1996 foi eleito prefeito de Palmas. Poeta, contista e pesquisador em História, é membro da Academia Palmense de Letras, da Academia Tocantinense de Letras, da União Brasileira de Escritores e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames). Odir Rocha é autor de várias obras literárias, valendo destacar o livro Terracanto, do qual o poema a seguir foi transcrito.



SOLITÁRIA CUNHÃ



Solitárias bacabas no cerrado,
buritis à beira do brejo,
gameleiras frondosas.
Ipês floridos adornando a aldeia,
aglomerados em moldura graciosa.

Fumaça grafite em espiral
brotando da cumeeira da oca
num aspecto sereno
e na ausência de vento.

Sol a pino, faiscante,
com um facho muito claro
alumiando o cume das árvores,
produzindo bizarras sombras.

Folhas novas de bananeira brava
esparramadas no chão
abrigando o corpo nu,
desejoso e gracioso
da solitária cunhã.


In. Terracanto. Odir Rocha. Palmas: Kelps, 2007, p.17

Eugênio de Castro - Poema






Eugênio de Castro









SOMBRA E CLARÃO


De mãos dadas, lá vão avó e neta,
- A Saudade e a Esperança de mãos dadas! -
A neta é loira, a avó tem cãs prateadas,
Uma leva a boneca, outra a muleta.

Uma arrasta-se e a outra salta inquieta;
Aos suspiros vai uma, outra às risadas;
A avó desfia contas desgastadas,
E a neta colhe iriada borboleta.

Uma vai confiada, outra bisonha;
Uma lembra-se, triste, e outra sonha;
Leves asas tem uma, outra coxeia...

E eu, que as vejo passar, com mágoa infinda
Penso que a avó talvez já fosse linda,
E que a neta, que é linda, há de ser feia!




In.Descendo a Encosta. Obras Poéticas. Lumen, Vol. X
Imagem retirada da Internet - Lágrima.

Gabriel Nascente - Poema




Gabriel Nascente



Gabriel Nascente é o nome literário de Gabriel José Nascente. É de Goiânia (GO), onde nasceu a 23 de janeiro de 1950. Jornalista. Morou em São Paulo, apadrinhado pelo poeta Menotti Del Picchia. Autor de quase três dezenas de livros publicados, em sua maioria, poesia. Ex-presidente do Conselho Municipal de Cultura. Em setembro de 1978, a Academia Paraibana de Poesia lhe outorgou o título de “O Embaixador da Poesia Brasileira”. Conquistou, em 1996, um dos prêmios mais cobiçados de todo país, o "Cruz e Sousa de Literatura", de Santa Catarina, com o livro inédito de poemas A lira da lida. E obteve também outras premiações de âmbito nacional. Seu nome figura hoje em diversas antologias da poesia brasileira, inclusive em edição bilíngue. (Fonte: Jornal de Poesia)





75



Calem a boca,
máquinas do mundo!

Os gatos da cidade
são metais em desespero.


87


Os relógios estão comendo
a minha face.



93


Eu vi a alma da poesia
num sorriso da lama.




100


Senhor,
por que não me partes
Em fatias de pão?

Senhor,
por que não me perenizas
no caule dos trigais?


101

Já estão mortas as borboletas.
E ninguém sabe onde anda a eternidade.

O céu era o quintal
dos querubins.



In. O Pão Selvagem. Gabriel Nascente.Goiânia: Agência Goiana do Livro, 2001.

Augusto dos Anjos - Poema


Augusto dos Anjos



Augusto dos Anjos nasceu no Engenho Pau d'Arco, no município de Sapé, estado da Paraíba. Foi educado nas primeiras letras pelo pai e estudou no Liceu Paraibano, onde viria a ser professor em 1908. Precoce poeta brasileiro, compôs os primeiros versos aos sete anos de idade. Em 1903, ingressou no curso de Direito na Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 1907. Em 1910 casa-se com Ester Fialho. Seu contato com a leitura, influenciaria muito na construção de sua dialética poética e visão de mundo. Com a obra de Herbert Spencer, teria aprendido a incapacidade de se conhecer a essência das coisas e compreendido a evolução da natureza e da humanidade. De Ernst Haeckel, teria absorvido o conceito da monera como princípio da vida, e de que a morte e a vida são um puro fato químico. Arthur Schopenhauer o teria inspirado a perceber que o aniquilamento da vontade própria seria a única saída para o ser humano. E da Bíblia Sagrada ao qual, também, não contestava sua essência espiritualística, usando-a para contrapor, de forma poeticamente agressiva, os pensamentos remanescentes, em principal os ideais iluministas/materialistas que, endeusando-se, se emergiam na sua época. Essa filosofia, fora do contexto europeu em que nascera, para Augusto dos Anjos seria a demonstração da realidade que via ao seu redor, com a crise de um modo de produção pré-materialista, proprietários falindo e ex-escravos na miséria. O mundo seria representado por ele, então, como repleto dessa tragédia, cada ser vivenciando-a no nascimento e na morte. Dedicou-se ao magistério, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde foi professor em vários estabelecimentos de ensino. Faleceu em 12 de novembro de 1914, às 4 horas da madrugada, aos 30 anos, em Leopoldina, Minas Gerais, onde era diretor de um grupo escolar. A causa de sua morte foi a pneumonia. Durante sua vida, publicou vários poemas em periódicos, o primeiro, Saudade, em 1900. Em 1912, publicou seu livro único de poemas, Eu. Após sua morte, seu amigo Órris Soares organizaria uma edição chamada Eu e Outras Poesias, incluindo poemas até então não publicados pelo autor. (Fonte: Wikipédia)




VERSOS DE AMOR



Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a...ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
a toda a boca que não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne misrável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Mársias - o inventor da flauta -
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambicioso, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d'alma!




In. Eu e outras poesias. Augusto dos Anjos. Goiânia: Novo Tempo, 1999, p.73-74.
Imagem retirada da Internet: Michelangelo Caravaggio.

Francisco Perna Filho - Poema









Destino de pedra


De quem são os meninos
que dormem ao relento,
que sonham grandiosidades,
e sucumbem nos esgotos da cidade grande
consumidos na fumaça da própria miséria
de uma existência precária?
De onde vêm esses meninos
que cumprem um destino de pedra,
pedras de crack que sempre carregam.
Sísifos da modernidade,
armados de inconsciência,
dormitando pelos esgotos
e sucumbindo na ilusão do transitório?
De que são feitos os seus dias,
os seus olhos medonhos,
as suas almas esvaídas
na maldade inocente da química
mortífera de uma breve existência?
Para onde caminham essas criaturas
silenciadas em mentiras,
em promessas e bofetadas,
em fome de existência,
em liberdade forjada?
São filhos da rua,
da lástima do mundo,
da indiferença dos homens.
Vêm dos restos do mundo,
da miséria urbana,
das crateras da incompreensão.
São feitos do lodo da existência,
das sobras de ideologias,
do sexo barato das ruas.
Caminham em círculo,
emperdenidos apóstolos,
com suas gotas,
com suas pedras,
com seus delírios,
sem destino.


Foto by Vitor Silva - foto retirada da Internet

Antônio Rezende - Poema


Antonio Rezende




Antonio Rezende nasceu em Araguaína, Tocantins, em 10 de abril de 1964. Edita o tablóide "devezenquandário" Opinião Popular e o blog Lorota Boa. É fotógrafo amador. Está documentando em textos e imagens peculiaridades do povo e dos lugares do Brasil para publicação em livro. Faz e declama versos por pura necessidade e teimosia.




PÁRIA



com força e gana faço
o poema que fede
ou cheira
- isso depende do nariz
é claro!

pária
simplesmente
tiro pela culatra do sistema

é por hábito
não nego:
nesta podridão me cego

fecho o poema
com alma entre dentes

coração sangrando
vinho e sangue



In. Acerto de contas. Antonio Rezende. Palmas: Kelps,2007, p.33.
Imagem retirada da Internet - Vinho.

Maria Hilda de Jesus Alão - Poema







Maria Hilda de Jesus Alão



Maria Hilda de Jesus Alão nasceu em Itabaiana (SE). Estudou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos, formando-se em Letras. Ministrou aulas de Língua Portuguesa para alunos dos Ensinos Fundamental e Médio. Estudou francês na Aliança Francesa de Santos e espanhol no CNA. Participou de muitos concursos de Poesias e Antologias, tendo conquistado vários prêmios.



REMEXENDO OS GUARDADOS


Entre as páginas amareladas
Dum velho romance de amor
Guardei a carta perfumada
Vinda de além-mar.

Não tive coragem de abri-la
Por medo de encontrar
O monstro de cinco braços,
Assombração dos amantes,

A dançar na folha branca,
E com mefistofélica gargalhada
Tirar a máscara e expor a verdade.
“Não tem volta: eu sou o ADEUS”.



13/10/07.


Foto by Sinésio Dioliveira - Rosa - todos os Direitos reservados.

José Gomes Sobrinho - Poema


JOSÉ GOMES SOBRINHO
(1935-2004)





Remexendo os guardados, deparei-me com este poema do amigo/poeta José Gomes Sobrinho, dedicado a mim, escrito num pedaço de envelope (amarelo), no primeiro dia de 1998, em Miracema do Tocantins, minha terra natal. José Gomes (Seo Gomes, como eu o chamava) nasceu em 1935, em Garanhuns (PE), filho de Luis Melchides Gomes, chegou ao Tocantins em 1989. Presidente do Conselho Estadual de Cultura, José Gomes Sobrinho era acadêmico da ATL- Academia Tocantinense de Letras, ocupante da cadeira nº 28, e da Academia Palmense de Letras, cadeira nº 09. Autor de 13 livros publicados, presidia também o Fórum Nacional de Conselheiros Estaduais de Cultura.





Reconhecimento segundo Chico Perna*



Descomeço noites
de um tempo que não há

Talvez porque já não estejam
a portos todos os guardas
de há muito esperados

Se descomeço ou não
importa-me pouco
a existência dos pássaros.



Miracema do Tocantins, 01/01/ 1998.




*O Chico do manuscrito fora grafado com "X", como eu assinava antigamente.
Foto by Victoria Shelton - Crow - Todos os Direitos reservados.

Francisco Perna Filho - Poema








Francisco Perna Filho





Errabundo


Eis meu corpo,
não vos ofereço.
Santificado não fora,
tornara-se errabundo e fértil.
Feito de todos os metais,

fora navegante sempre,
conquistador.
Buscou n’alma o outro;
na alegria, a estrada;

na gruta, o vício.
A vós, nada pode ofertar.
Livre de toda vestimenta,
sempre foi sombra
e com as sobras do mundo
fez sua última ceia.
De vós nada quer.
Em mim, somente em mim,
celebra o ócio.
Desconhece qualquer outra sorte
que não o vício.
Com ele celebro o mundo e sou.
De vós nada quero.


In.Refeição.Francisco Perna Filho. Goiânia:Kelps, 2001.
Imagem retirada da Internet: Lobo.

Francisco Perna Filho - Poema





Francisco Perna Filho











Para lá do sem-sentido


Mar,

simplesmente o Mar,

envolto de homens

tão prenhes de si mesmos,

confortáveis nos seus assentos,

nas suas calamidades imperceptíveis,

no olhar por cima que singra o sem-sentido,

o invisível ocaso dos objetos.

Somos todos náufragos,

pálidos senhores do Agora.

Só a Arte nos tira da calamidade

de sermos tão humanos e brutos,

brocados como as velhas tabocas,

abandonados nas barrocas da nossa imaginação.

Navegar será sempre possível,

mesmo que nos tirem as rédeas,

porquanto o nosso norte está para

lá dos oceanos,

dos angicos,

dos pau d'arcos,

das sarãs.

O nosso Norte será sempre a palavra.



Foto by Sinésio Dioliveira - Todos os Direitos reservados

FEDERICO GARCÍA LORCA - POEMA


Federico García Lorca
(1898-1936)


Federico García Lorca (Fuente Vaqueros, 5 de junho de 1898 — Granada, 19 de agosto de 1936) foi um poeta e dramaturgo espanhol, e uma das primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola devido ao seus a linhamento político com a República Espanhola e por ser abertamente homossexual. Nascido numa pequena localidade da Andaluzia, García Lorca ingressou na faculdade de Direito de Granada em 1914, e cinco anos depois transfere-se para Madri, onde ficou amigo de artistas como Luis Buñuel e Salvador Dali e publicou seus primeiros poemas. Grande parte dos seus primeiros trabalhos se baseiam em temas relativos à Andaluzia (Impressões e Paisagens, 1918), à música e ao folclore regionais (Poemas do Canto Fundo, 1921-1922) e aos ciganos (Romancero Gitano, 1928) Concluído o curso, foi para os Estados Unidos da América e para Cuba, período de seus poemas surrealistas, manifestando seu desprezo pelo modus vivendi estadunidense. Expressou seu horror com a brutalidade da civilização mecanizada nas chocantes imagens de Poeta em Nova Iorque, publicado em 1940. Voltando à Espanha, criou um grupo de teatro chamado La Barraca. Não ocultava suas idéias socialistas e, com fortes tendências homossexuais, foi certamente um dos alvos mais visados pelo conservadorismo espanhol que, sob forte influência católica, ensaiava a tomada do poder, dando início a uma das mais sangrentas guerras fratricidas do século XX. Intimidado, Lorca retornou para Granada, na Andaluzia, na esperança de encontrar um refúgio. Ali, porém, teve sua prisão determinada por um deputado católico, sob o argumento (que tornou-se célebre) de que ele seria "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver". Assim, num dia de agosto de 1936, sem julgamento, o grande poeta foi executado com um tiro na nuca pelos nacionalistas, e seu corpo foi jogado num ponto da Serra Nevada. Segundo algumas versões, ele teria sido fuzilado de costas, em alusão a sua homossexualidade. A caneta se calava, mas a Poesia nascia para a eternidade - e o crime teve repercussão em todo o mundo, despertando por todas as partes um sentimento de que o que ocorria na Espanha dizia respeito a todo o planeta... foi um prenúncio da Segunda Guerra Mundial. (Fonte: Wikipédia.)



TRES RETRATOS CON SOMBRAS




VERLAINE


LA canción,
que nunca diré,
se há dormido en mis labios.
a canción,
que nunca diré.

Sobre las madreselvas
había una luciérnaga,
y la luna picaba
con un rayo en el agua.

Entonces yo soñé,
la canción,
que nunca diré.

Canción llena de labios
y de cauces lejanos.

Canción llena de horas
perdidas en la sombra.

Canción de estrella viva
sobre un perpetuo día.
















BACO


VERDE rumor intacto.
La higuera me tiende sus brazos.

Como uma pantera, su sombra,
acecha mi lírica sombra.

La luna cuenta los perros.
Se equivoca y empieza de nuevo.

Ayer, mañana, negro y verde,
rondas mi cerco de laureles.

Quién te quería como yo,
si me cambiaras el corazón?

...Y la higuera me grita y avanza
terrible y multiplicada.

























JUAN RAMÓN JIMÉNEZ


En el blanco infinito,
nieve, nardo y salina,
perdió su fantasía.

El color blanco, anda,
sobre una muda alfombra
de plumas de paloma.

Sin ojos ni ademán
inmóvil sufre un sueño.
Pero tiembla por dentro.

En el blanco infinito,
qué pura y larga herida
dejó su fantasía!

En el blanco infinito.
Nieve. Nardo. Salina.



In. Canciones (1921-1924). Obra Poética Completa Federico García Lorca . São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.298-301.

Cida Almeida


Cida Almeida




Cida Almeida nasceu em Jandaia, interior de Goiás, em 28 de setembro de 1961. É formada em Comunicação Social - Jornalismo e Direito pela Universidade Federal de Goiás. Jornalista com mais de 20 anos de profissão, Cida Almeida foi repórter dos jornais Diário da Manhã e Correio Brasiliense (Sucursal de Goiânia) e do Gabinete de Imprensa da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás. Atualmente dedica-se à assessoria de imprensa. Ela escreve sobre literatura para sites de cultura. Mantém os blogs Caixinha de Alfazema, Cartas do Paraíso e Diálogos da Esfinge, onde publica fotografias, crônicas, poesias e outras invencionices. Cida Almeida é autora do livro Flor de Pedra (poesia).




A FONTE



Viver é beber da misteriosa fonte
Esgotá-la com gosto
Gota a gota, conta a gota, contra a gota
Viver é irrevogável entrega à fonte
De exauri-la emcada pingo que jorra
A montante e a jusante
Enchentes e vazantes do eu-leito
O que se cava tenro, quase terno por dentro
E vivo as chuvas sabendo-me água
Vibro o fluir, o marulhar, o murmurar
Ribanceiras do tempo
Corredeiras bravias escalavrando
O que faço de mim na pedra dos dias
O que verga naturalmente
O que dobra
O som do sino das águas
Cantiga para ninar meu esquecimento
Passamentos
Horas minguadas de um eterno relógio quebrado
Esse correr do rio da vida que me entorna
Enquanto ainda transbordo, alagadiça e fértil
E torno-me mais que nunca rio
Mesmo que tenha esperanças
E as ofereça às brevidades
De espuma dos meus sonhos rentes ao chão
Vertente, sei bem, e não me iludiria
Sei que vou água mole
Sei que volto pedra bruta
Tambor-lirando
Nas pedras dormentes
Tamborilando
No fundo escuro que toco
E que vibra de humanidade
A música
Ah, a música das águas é velhaca entorpecente!
Erijo, enquanto posso, intento de escultura
Eu mesma a pedra bruta
Eu mesma a lavrada matéria
Esses rabiscos atritados no escorregadio vão
A mensagem decifrada no espelho fugidio das águas
Na superfície sempre lisa
Das pedras que dormem o meu sono de pedra
Presságios das águas
A claridade de um corpo que flui
E que beijará humildemente a terra úmida
Deixando a alma entregue ao rio
Que brota no eterno da misteriosa fonte.


In.Flor da Pedra. Cida Almeida.Goiânia: Kelps, 2008,p.129-130
Imagem: Fortaleza de Sacsayhuaman. Foto by Victoria Shelton - Todos os Direitos reservados.

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