Ensaio - Por Francisco Perna Filho

A partir de hoje, publicarei um ensaio sobre a espetacularização do humano. Este ensaio foi apresentado ao professor Doutor Marcos Palacios, da UFBA, como parte da avaliação da disciplina Cibercultura, ministrada na Universidade do Tocantins - Unitins, em outubro de 2008. Como já é praxe aqui neste espaço, o ensaio será publicado em algumas edições, em virtude do seu tamanho. Boa Leitura!

http://rafaelaemcaldas.files.wordpress.com/2007/08/tv.jpg




E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado. (Feuerbach, prefácio à segunda edição de A essência do cristianismo.)



Real e virtual: a espetacularização do humano



Por Francisco Perna Filho




INTRODUÇÃO

A cultura fragmentada, possibilitada pela variedade de caminhos da internet, embora contenha ética e valor próprios de grupos e nichos diversos coloca em xeque um dos elementos fundamentais para a autonomia dos indivíduos: a responsabilização pelas próprias escolhas.

Se verdadeira ou não esta constatação, o certo é que ela nos inquieta e nos conduz a uma discussão mais aprofundada sobre o assunto e a alguns questionamentos: de que forma isso vem afetando o homem deste século? Como as tecnologias midiáticas estão influenciando na configuração desse novo homem? Que respostas podemos esperar desses novos tempos em que todos são produtores e consumidores ao mesmo tempo? Quais recursos serão utilizados para atrair esse novo consumidor/leitor?

Tais indagações nos surgem como norteadoras para as reflexões apresentadas neste estudo, cujo objetivo é discutir o espaço virtual como palco de audiência, do espetáculo, em que cada um tenta disputar o seu quinhão de importância e fama, utilizando-se de expedientes e recursos diversos, muitas vezes sem o menor compromisso com a preservação da ética,

Para esta discussão, tomaremos como base alguns teóricos (Adorno, 1995; Anderson, 2004; Debord, 2003; Dines,2009; Hall, 2005; Negroponte, 2003; Palácios, 2008) e analisaremos algumas passagens do filme Sem Vestígios (Untraceable - direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008), que traz à tona uma discussão se não nova, muito interessante: a guerra pela audiência a qualquer preço.

Apesar de se tratar de um filme, portanto ficção, a análise da obra possibilita reflexões sobre as transformações tecnológicas e a construção de novas formas de relação e interação social. O filme apresenta uma trama em que uma divisão do FBI, dedicada à investigação e condenação de criminosos que atuam através da Internet, depara-se com um assassino perito em Internet que exibe seus assassinatos em seu website, bem como a agonia das suas vítimas, cujo destino fica nas mãos dos internautas: quanto mais visitas o site recebe, mais rápido as vítimas morrem. E por incrível que pareça, as vítimas morrem muito rápido.

A trama apresentada no filme, juntamente com algumas reflexões teóricas, nos traz questionamentos e nos incita a refletir sobre as relações que perpassam o ambiente virtual e sobre a interatividade que é construída entre os sujeitos leitores/navegantes, ativos e passivos de um processo ou história construída em um ambiente virtual/real a partir da globalização e do advento da Rede Mundial de Computadores, o que provocou uma revolução só comparada à Revolução Industrial, no século XVIII.


MUNDO, MUNDO, VASTO MUNDO*

Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnologia e referenda o seu desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto “mundo”. Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e interagir – na ilusão de sua virtualidade – com outros mundos tão “reais” quanto o seu.

Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar-lhe os códigos, as várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, prontos para atacar o incauto navegador aventureiro.

Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limites, qualquer desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber aonde pisar, para não ser tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e ciberilusão.

Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o embate da jornada; é preciso ter pleno conhecimento das vias a serem percorridas, para isso o viajante deve munir-se de bússola e mapas, é preciso não confundir as sinalizações, pois como disse o poeta Fernando Pessoa, citando Pompeu, general romano: “Navegar é preciso, viver não é preciso”, mas essa precisão pode ser relativa, caso o navegante desconheça os códigos.

Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o percurso a ser seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer internauta/cidadão, colocamo-nos nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até então inimaginados, à procura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples curiosidades.

Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos hipertextualmente nessa vastidão digital de convivências nem sempre amistosas, mas necessárias, como podemos presenciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a outra: pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida.

O que antes era espaço privilegiado da mídia, de quem detinha o poder econômico, passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer como o são as revistas eletrônicas, os blogs, que vêm crescendo no grau de importância e passam a ter status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes jornais do país, atraindo cada vez mais leitores, quando não, webespectadores, que, se conscientes ou não, passam a interagir com esta nova realidade.

Esta gama de produtos e opções culturais, de informações e lazer, de produtos e oportunidades, surgidos com a Internet, de certa forma mudaria a nossa forma de olhar o mundo, quando os espaços são vários, e cada um “sabe” que caminho trilhar, já que a ele todas as vias são facultadas, momento em que os receptores de uma comunicação massiva dão um salto de “liberdade” e passam a caminhar com os próprios pés e a ter vez e voz, aquilo de que fala Cris Anderson no seu livro A Cauda Longa (The Long Tail):

Cauda Longa é nada mais que escolha infinita. Distribuição abundante e barata significa variedade farta, acessível e ilimitada – o que por sua vez, quer dizer que o público tende a distribuir-se de maneira tão dispersa quanto as escolhas. Sob a perspectiva da mídia e da indústria do entretenimento dominantes, essa situação se assemelha a uma batalha entre os meios de comunicação tradicionais e a Internet. Mas o problema é que, quando as pessoas deslocam sua atenção para os veículos on-line, elas não só migram de um meio para outro, mas também simplesmente se dispersam entre inúmeras ofertas. Escolha infinita é o mesmo que fragmentação máxima (Anderson, 2006, p.179, grifo meu).

Como aponta Anderson (2006), o advento da Internet possibilitou às pessoas que a ela recorreram que também se dispersassem nessa babel de escolhas. Segundo ele, ao mesmo tempo em que se configurou como um manancial de oportunidades, gerou uma fragmentação máxima do mercado, na medida em que cada um passou a buscar aquilo que lhe convinha. Fato que ele comparou como uma batalha entre os meios de comunicação tradicional e a Internet.

A citação de Anderson (2006), ao argumentar sobre a fragmentação do mercado, acaba por abordar também a fragmentação da cultura, característica do que se denominou “pós-modernidade”, uma vez que a segmentação do mercado (ponto de vista dos meios de comunicação de massa e do entretenimento) arrastou consigo o homem nele inserto. Se até pouco tempo só tínhamos o rádio, a televisão e o jornal, agora temos os blogs, o YouTube, o ciberjornalismo, todos convivendo lado a lado. Se antes a comunicação se dava de “um para todos”, agora ela se nos apresenta como de “todos para todos”, um espaço “democrático”, que vem se consolidando a cada dia, causando uma verdadeira revolução na busca pela audiência.

ECOS DIGITAIS

Na corrida sem volta pela audiência, muitos jornais, ao longo dos vinte anos de existência da rede mundial de computadores, puderam sentir a força dessa nova plataforma e as modificações dela advindas, o que os forçou a também buscar o seu quinhão na virtualidade, sob pena de perderem audiência e espaço nesse universo de possibilidades, como testemunha Dines, (2009) no seu artigo “www, 20 anos - Daily Me versus Daily We”, veiculado na página on-line do “Observatório da Imprensa”, quando aponta as diferenças básicas entre o jornalismo impresso e o jornalismo digital:

Não existe conflito entre o periódico impresso e a internet, são rigorosamente complementares. Existe, sim, um conflito entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual. Este conflito não pode ser ignorado e não se resume ao meio (medium) que empregam (papel ou ciberespaço). Trata-se de um confronto conceitual: o jornalismo virtual é uma opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do qu e o jornalismo impresso.

(http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 - Grifo meu)

E acrescenta:

Quando um jornal como o Seattle Post-Inteligence, com 146 anos de existência, anuncia a sua migração para a web não está fazendo uma simples opção de formato e tecnologia, está mudando de finalidade. Deixa de ser o protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado, o Daily Me, o "Eu Diário" (segundo definição de Nicholas Negroponte, do MIT, mencionado por Nicholas Kristof no Estado de S.Paulo (23/3). Um Daily We, esmerado e engajado, tem outras exigências.

(http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001 - Grifo meu)

Como vimos, ao argumentar sobre os possíveis conflitos existentes entre o jornalismo impresso e o jornalismo virtual, mas não entre o periódico impresso e a internet, que, segundo o autor, são rigorosamente complementares, Dines (2009) se refere ao jornalismo virtual como opção mais amena, mais participativa e menos qualificada do que o jornalismo impresso, e, logo em seguida, cita o caso do jornal americano “Seattle Post-Inteligence”, que ao migrar para a modelo virtual (Internet), sai de um “processo social de massas”, ou seja, deixa de ser protagonista de um processo social de massas para transformar-se em coadjuvante de um processo individual multiplicado.

A colocação de Dines (2009) é muito importante, pois corrobora com a nossa discussão, uma vez que trata das mudanças empreendidas pelos jornais, rádios e TVs, que ao migrarem para a plataforma digital, não o fazem somente porque está na moda, pelo contrário, o fazem porque se não procederem desta forma, correm o risco de ficarem para trás na concorrência cada vez mais acirrada e diversa. E aí, cada um buscará a maneira mais adequada para buscar os seus “leitores/webespectadores”.

São inúmeras as possibilidades ao alcance do internauta, vídeos e imagens; atrativos de toda ordem, sem falar na interatividade, já que a perspectiva é de co-autoria, de “todos para todos” e não mais de “um para todos”, como no jornal impresso. Acrescente-se a isso, ferramentas importantíssimas de que se vale o ciberjornalismo ou jornalismo virtual, como a subversão da noção espacial, a desterritorialização, não mais há necessidade de se estar no local onde o jornal é impresso para lê-lo, só basta um clique, uma conexão. O tempo e o espaço são subvertidos, além de tudo isso, há ainda a memória à disposição do leitor, ali, permanentemente, hipertextualmente, como instrumento de reforço da notícia, dando a ela maior credibilidade, como podemos ler em Palacios (2008):

É bastante claro que as crescentes possibilidades abertas para a recuperação de Memória, a partir da sofisticação das bases de dados na produção jornalísticas têm efeitos que podem e devem ser avaliados: a) Nas rotinas produtivas nas Redações, com a crescente facilidade de consultas e apropriação de informações em bases de dados internas e externas ao veículo; b) Nos modelos de negócios, com uma vasta gama de possíveis incorporações de elementos de Memória como parte do negócio estabelecido para os jornais online;c) Na produção de formas narrativas diferenciadas, com distintas formas de incorporação de Memória (background, contexto, contraposição, etc);d) Nas formas de interação com o Usuário, que passa a dispor de recursos para investigar, no próprio site do jornal, aspectos históricos em torno do material de Atualidade que lhe é oferecido, bem como eventualmente personalizar sua Memória em espaços do próprio site jornalístico que utiliza.

(http://cencib.org/simposioabciber/conferencias.htm)

Assim como o jornalismo, que se vale dos mais variados recursos, como a memória, para chamar a atenção dos seus leitores, como foi citado acima, os blogs, as páginas especializadas em diversos assuntos, estão ali, prontos para lançarem os seus apelos, suas armadilhas, disputando em pé de igualdade os seus “eleitos”, e aí, basta um clique para ser transportado para uma nova dimensão, para uma nova realidade.


Raul Bopp - Cobra Norato - pequena parte


Apresento aqui, para o deleite de todos, a primeira parte do poema Cobra Norato, de Raul Bopp. Com isso, convido a todos a conhecerem a obra no seu todo. Boa Leitura!





Cobra Norato









I




Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim

Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes

Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato

- Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar

A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brico então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a Cobra.

Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo

Vou visitar a rainha Luzia
Quero me casar com sua filha
- Então você tem que apagar os olhos primeiro
O sono escorregou nas pálpebras pesadas
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.



In. Cobra Norato. Raul Bopp. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.07-08, 1984.

Cobra Norato - Raul Bopp - I

Cobra Norato










I



Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim

Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raízes

Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato

- Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar

A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brico então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a Cobra.

Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo

Vou visitar a rainha Luzia
Quero me casar com sua filha
- Então você tem que apagar os olhos primeiro
O sono escorregou nas pálpebras pesadas
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.



In. Cobra Norato. Raul Bopp. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.07-08, 1984.

Uma Temporada no Inferno*


Por Francisco Perna Filho




Todas as guerras são abomináveis, traços de bestialidade e incerteza; transgressoras da liberdade e da razão, retalhos de humanidade. Todas as guerras são martírios, segregadoras da alma humana; violento atentado ao espírito; disseminadoras de um ódio gratuito.

Por mais lógica que se possa imaginar ao se declarar uma guerra, ela nos soará sempre paradoxal: não há violência que nos conserte; não há martírio que nos redima.

Toda guerra é imposta, autoritária, ditatorial. Toda ditadura é deprimente, olhar deturpado da realidade, sentimento ameaçador e covarde. Discurso ideológico e sectário; monólogo opressor.

Toda guerra é violenta, e a violência não é local, municipal, estadual ou globalizada. Não é assunto jurisdicional, é ontológica. Alguns a manifestam mais branda, perseguindo, retaliando, alijando; outros, dela são membros, como um braço, uma perna. A ela pertencem e, para esses, a vida é um risco feito a lápis na mão de um deus pagão. Ninguém se salva.

De todas as formas de violência, a infantil é inaceitável, é irremediável, deixa marcas na alma, é ferida que não se cura, transtorna o ser e, quase sempre, dele não se desprega. É na infância que apuramos o olhar para as coisas do mundo. Que definimos as cores do nosso por vir: muitas vezes quente, muitas vezes frias, outras tantas matizadas, quantas sem luz. A violência que pare a violência, como um espelhamento. Lembremos de Mohammed, o prematuro, nascido sob os “auspícios” da Guerra do Iraque; de Intizar, criança que perdeu os braços, também no Iraque, após ser atingido por uma bomba americana, fruto da bestialidade de Bush. Lembremos de Hiroshima, seis de agosto de 1945, às 08:15 da manhã, o piloto de um avião B-29, Paul Tibbets lança a primeira bomba atômica, deixando um lastro de destruição; a cena é repetida em Nagasaki, nove de agosto, com a bomba “Fatman”. Lembremos a cena daquela criança nua, desesperada. Lembremos do Kosovo, uma outra criança chorando, sobre os escombros, a morte dos pais; e agora, numa foto comovente de Segei Dalzhenko, vimos uma criança ensangüentada, desesperada, fugindo dos seqüestradores da Escola de Beslan, na Ossélia do Norte, Rússia.

Não há como se calar, fechar os olhos, diante de tanta barbárie, de tanto medo que nos oprime, da insegurança que invadiu os nossos lares, já que as ruas há muito foram tomadas, brutalizadas, esquecidas.

Há muita dor nos nossos corações, transtornados que estão pela impotência ante o espetáculo a que assistimos: nas ruas de São Paulo, quando mendigos são brutalmente assassinados; no Rio de Janeiro, as balas que se encontram com os seus alvos, porquanto os homens é que estão perdidos. Em Brasília, a violência pública em muitos setores, e a privada? quem não se lembra do índio Galdino “ludicamente” queimado? Uma repetição bárbara e inquisitorial, como em Joana D’Arc. Em Goiânia, quanto crimes insolúveis. Não há mais distinção de classes; não se respeita mais autoridade constituída, todos sentem a mesma dor. Todos pela morte tornam-se iguais.

É uma imensa tristeza que nos massacra, a impotência que nos dói no fundo da alma, um grito desesperado de socorro, sem ter para onde correr, fugir. Quanto mais nos afastamos, mais nos vemos refletidos nessas cenas de barbárie, mais temerosos ficamos, ao protagonizar espetáculos tão brutais.

O que nos resta? Talvez a imagem desesperada das crianças de Beslan, em pânico, tentando sobreviver de rosas, como relataram após serem libertas dos seus algozes. As flores que brotam do caos, como em de Ferreira Gullar, Poema Sujo: Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?). Talvez nos reste os livros, a educação pela palavra, a poesia como motor de toda transformação.



P.S.: Este texto foi escrito por ocasião da tomada de uma escola em Beslan, na Ossétia do Norte, por terroristas, no dia 03 de setembro de 2004, quando inúmeras crianças foram feitas reféns, e, para sobreviverem, se alimentaram com pétalas de rosas.

* Título tomado de empréstimo a Jean Arthur Nicolas Rimbaud, poeta francês (1859-1891).

Imagem:http://1.bp.blogspot.com/_RJ1gFmh-xQw/SphvslhIm2I/AAAAAAAABWo/-iVqtPNmrjI/s1600-h/Criança+na+guerra.jpg

A Droga da Vagina

Por Francisco Perna Filho



O título acima parece pejorativo e, numa primeira leitura, muitos ficarão indignados, dirão que é falta de respeito, que eu não gosto da coisa, que isso tudo não passa de complexo, de machismo e outras coisitas mais.

Não é nada disso, eu só estou reproduzindo uma notícia veiculada num jornal de Goiânia, a história de uma jovem senhora que, para satisfazer o seu marido, que cumpre pena no CEPAIGO, foi pega com 360 gramas de haxixe, muito bem guardados, sabe aonde? Na vagina! Isso mesmo, ou como diriam os antigos, na bainha.

Até o ano de 1700, o termo “vagina” era empregado para falar de tudo o que era “bainha”, “invólucro”, “casca”, e que os soldados, portanto, a usavam a tiracolo, para guardar (enfiar) suas espadas. Só bem mais tarde, na Renascença, é que o termo vagina passou a denominar o tubo ou bainha na qual se encaixava a espada masculina, o pênis. [1]

Pensemos, se sexo vicia, causa dependência, imagine sexo com droga, em altas doses. Droga comprimida, pronta para causar desatinos, droga sob a saia, paliativo para uma droga de vida, entre grades e desilusões. Dessa forma, sexo torna-se perigoso, além do vício, dá cadeia. Daí o título desta crônica:

A Droga da Vagina, para sintetizar o dilema de uma jovem senhora compenetrada, que, com um simples abrir e fechar de pernas, pariu um rio de angústia.

Angústia que se repete em várias partes desse nosso país, quando mulheres desconsiderando o amor-próprio, submissas, exploradas e maltratadas se veem abandonadas de toda sorte: os filhos sucumbiram ao crime, o marido, há muito encarcerado, rumina os poucos momentos de uma liberdade fugidia, porque esperança não há, como pudemos constatar no Fantástico, há algum tempo, o documentário Falcão, os Meninos do Tráfico, a história da história de uma falta de perspectiva, crianças perdidas no tráfico, natimortos, pois o único sonho que lhes resta é o de vir a ser bandido. Matar ou morrer não importa, outros sempre virão. São autômatos de uma guerra urbana, e as suas histórias são escritas com metralhadoras, fuzis AR-15 e pistolas, não aprenderam, como muitos homens da política, a cultuar belas palavras e encantadoras mentiras, com as quais se escondem e, como mágicos, sobrevivem ilesos aos trovões madrugadores.


[1] PEREIRA J., Luiz Costa. Com a Língua de Fora, São Paulo:Angra, 2002,p.53

Pontos de Fuga*




Por Francisco Perna Filho




Algumas leituras nos são fundamentais, por nos situarem no tempo e no espaço e contribuírem para a nossa formação, não permitindo que se faça na realidade o imaginário perverso, e nem o bestial na sensatez. Quantas já nos aliviaram a dor alma e nos livraram do sono letal da ignorância, quando em imensas noites alimentaram as manhãs vindouras e os seguros passos de novas caminhadas.

Sobre elas, como bem o fez Hélio Pólvora no seu livro de ensaio ‘O Espaço Interior‘ (Editora da Universidade do Mar e da Mata, 1999), depois de ensaiar sobre a literatura universal, dedicou um capítulo às suas leituras e as de sua geração: ‘O que a minha geração leu’ – permitindo-nos um passeio saboroso pelo que há de mais diverso e importante na literatura universal: “A minha geração leu muito. Claro, a tevê só chegou quando éramos adultos. Para matar o tempo, que sempre resiste e acaba nos matando, segundo a lição de Machado de Assis, tínhamos apenas a Rádio Nacional, com os seus programas de auditório e dramatização de romances e contos, à base de uma parafernália de efeitos especiais. Sobrava tempo para leituras, devaneios. O livro foi companheiro diário, amigo sem rosto e sobretudo amigo fiel”.

Tal exposição, ao mesmo tempo em que nos fala de um espaço não muito longínquo, também nos dá a dimensão da formação de um dos nossos maiores contistas do Brasil, quando revela as “Leituras ao acaso, sem a ordem cronológica das escolas e dos movimentos literários”, nos mostrando a capacidade que cada indivíduo, pelas suas eleições, tem de autoformar-se, bastando apenas um despertar, para que o mundo se faça inteiro e, irrepreensivelmente, nos dê as respostas que tanto buscamos nesses dias tão atribulados.

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas “experiências iniciáticas” como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lembranças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista Inglês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magistralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.

Todos nós temos os nossos pontos de fuga, como no título de Greene, quando incisivamente fixamos os nossos olhos para além do horizonte empobrecido que nos maltrata. Talvez aí esteja a saída para os nossos dramas, sem que precisemos de mártires, como as crianças libanesas, os chorosos massacres da violência urbana, e tantos outros que se perderam pelos Parques do mundo.

Por tudo isso é que eu me pergunto: o que a minha geração leu ou está lendo, nesse exato momento? E os outros? De que motivação precisamos para começar a ler, para ensaiar o primeiro capítulos das nossa experiências? Pode ser que, como muitos dizem, livro no Brasil seja coisa para elite, para ricos. Mas eu me pergunto, e as bibliotecas públicas? E o esforço individual? E a experiência dos nossos grandes escritores que, muitas vezes, por situações várias, tiveram de criar alternativas, lendo o que lhes chegava às mãos, tomando emprestado, fazendo cooperativas, criando salas de leitura.

Para quem quer começar, existem inúmeras maneiras e, talvez, este texto seja um começo. Que tal conhecer Hélio Pólvora, Graham Greene, Sartre, Hugo de Carvalho. Que tal fazer um passeio pela Grande Goiânia e conhecer as suas bibliotecas. Que tal escrever a sua própria história.




* Título tomado de empréstimo a Graham Greene.
Foto by Rosana Carneiro Tavares. Buenos Aires, junho de 2009.

Manuel Cofiño - Conto


Manuel Cofiño - (1936 - 1987) - Escritor cubano, nascido em Havana, situado entre os maiores expoentes do realismo socialista de Cuba, é autor de contos e romances, valendo destacar: 1979 - Um trecho de mar e uma janela (histórias).1975 - Quando o sangue parece fogo (romance). 1971 - A última mulher e a próxima batalha (romance), com este romance recebeu o Prêmio Casa de las Américas. 1969 - Hora de Mudança (romance).



Um Trecho de Mar e uma Janela


Porque sempre há um livro, um sorriso, uma folha levada pelo vento, um trecho de mar e uma janela – sempre haverá uma recompensa. Conheci-a no acampamento Maravilha Vermelha. Comandante de uma brigada. Entusiasta, incansável, e além do mais, o que causava também admiração, era o fato de não ter medo das rãs que abundavam naquele terreno tão barrento.

Diariamente, eu a via subir agilmente na carreta, e aos domingos lavar sua roupa, sob o flamboyant. Durante o temp

o em que ficamos ali, conversamos umas dez ou doze vezes. Eu gostava da sua maneira de dizer as coisas. Pois o amor e as palavras ardem e se apagam, saltam e se procuram como sementes e cinzas. Era isso o que ela queria dizer. E era como se limpasse as palavras, esfregando-as contra a vida.

Os homens foram transferidos e ela ficou ali com suas companheiras. Lembro-me que ao despedir-me, disse: Bem. Fico alegre em saber que você existe.

Poucos meses depois, encontrei-a em frente ao Copelia, imprudentemente parada numa esquina, com o cabelo um tanto sujo e despenteado. Por um momento,

acreditei-me diante de uma visão. É que eu a via como não a vira antes (e não era apenas a maneira de se vestir, mas todo o conjunto de sua pessoa). Ficou nervosa, começou a fazer movimentos cômicos, canhestros.. Levavam ambas as mãos um monte de livros, vestia um pulôver verde e calças de mescla. Seus olhos ressaltavam de uma maneira estranha. Depois, voltamos a nos encontrar por diversas vezes.

Um dia chamei-a, e ela veio. Empurrou a porta deste quarto tristíssimo e nele entrou como uma canção. Não vou contar nossa história. Nem falar de sua voz, do seu olhar, da surpreendente luminosidade de sua presença. Não era bonita mas vibrava como um instrumento vivo, e esmagava a tristeza com carícias: Afugentar, arrancar a tristeza porque ela é uma árvore estéril e frondosa, dizia e me beijava. E dizia também: O amor é uma flor rara, delicada, demora a desabrochar, dura pouco para logo despetalar-se. As outras flores são resistentes, nascem em qualquer lugar, onde bem querem, crescem sozinhas, não necessitam de cuidados. E colocava seus beijos em meus lábios. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade logo se punham a mover-se ao mesmo tempo.

Quando chegava, este pequeno quarto se povoava de sons (ela dizia que eram pássaros e flores), mas a verdade é que o ar se punha em seu lugar, entre murmúrios. Tirava a roupa como estivesse dando suas vestes de presente ao vento. Como esquecer a alegria do seu corpo, a flexibilidade de sua cintura, seus seios, seus sumos e sabores!

Era uma criadora de sonhos e de verdades. Descalça, beijava o chão, os azulejos partidos do pátio. Amava as latas enferrujadas onde cresciam gerânios, as paredes descascadas, o ruído da chuva sobre o zinco, o trecho do mar na janela. Falava de pardais e de disparos, de incendiar a tristeza. Ia de um lado para outro, ajeitando e arrumando vasilhas e cascos, seu corpo cantava e suas canções subiam pelas paredes. Gostava do cheiro do alho e da couve-flor; fazia brilhar, quando os lavava, os pratos e os copos. Conseguia fazer tudo sem esforço, como se suas mãos dominassem as necessidades cotidianas. Não fazia perguntas. Tinha respostas sem perguntas e, à vezes, fazia do silêncio sua voz.

Como esquecer sua cabeça inclinada, a queda dos seus cabelos sobre os ombros? Esse algo que tinha e que não se pode explicar, que jamais poderá ser descrito ou ser dito, porque seria como tentar mostrar o coração da chuva. Em seu olhar, a manhã surgia espontaneamente, como água. Água de companhia ao despertar. Em seu corpo, o tempo era diminuto, miúdo, frágil. Dizia: o amor são dois corpos amarrados com corda louca, um martírio-prazer fugaz, intenso, fulminante. Mexer com o amor é como mexer com o fogo, dizer-lhe que não arda. O amor é um problema, ou lhe dão em excesso ou não lhe dão nenhum, e nasce e morre e não somos nem eternos, nem puros. E sufocava meus prostestos com seus lábios. Então, falava sobre a opressão familiar, a incompreensão dos pais, a aurora de uma nova época, a luta para construí-la. E havia nela alguma coisa que sempre estivera comigo.

É preciso esquecer as coisas fracas, os pensamentos melancólicos. A vida é uma música severa, grave. E eu a contemplava falando, vendo-a nua, sentada na cama, com a cabeça apoiada sobre os joelhos e as mãos cruzadas sobre as pernas encolhidas.

Eu nunca estava certo de que ela voltaria no dia seguinte, ou dentro de um mês ou de uma semana. Não gostava que as coisas estancassem. Às vezes passava semanas sem aparecer, ia ao amor total e não ao nosso cantinho, ia para o campo fazer a vida com as mãos, acariciar a terra, os frutos e as folhas..

Voltava ágil e inquietante. As faces ardendo, os cabelos queimados pelo sol e a alegria chispando nos olhos. Cansada de bom cansaço, trazia beijos silvestres e um sorriso amplo e trêmulo. Dizia que o trabalho é a mais bela alegria da vida. E a luz, a manhã, o sonho e a verdade punham-se a se mover ao mesmo tempo.

Mas um dia não amanheci mais em seu olhar. Perdi a gravidade de sua carne entusiasta, a sábia saliva dos seus lábios, as unhas de suas mãos diligentes, o perfumado esplendor dos seus cabelos. Deixou um vazio repleto de lembranças, lições e silêncios. Com qual vestido ela se foi? Não sei, alguma coisa se quebrou, evaporou-se, fez-se sombra e luz ao mesmo tempo.

Aqui sobrevive sua presença, no que ela elegeu para ser lembrada. Neste quarto ficou dela um ligeiro perfume, uma voz no vento, uma canção cantando nas paredes, um ar, o ruído da chuva sobre o zinco, uma folha esquecida, a luz entrando pela janela e o chilrear de um copo limpando a tristeza.

Ensinou-me a ver diferente? Não sei. Mas se algum de vocês a vir, transmita-lhe meus agradecimentos. Porque ela me deixou a recompensa: um livro, um sorriso, quatro paredes repletas de canções, um trecho de mar e uma janela.




In.Contos de Amor Cubanos. Organização Imeldo Ávarez (org.). Trad.: Joel Silveira. Rio de Janeiro: Record.

Imagem: http://aredenarede.com/pt/images/stories/eu-queria-ser-amor-geisa.jpg

Hugo de Carvalho Ramos - Ninho de Periquitos


Hugo de Carvalho Ramos nasceu na Cidade de Goiás, no Largo do Chafariz, a 21 de maio de 1895, e morreu na mesma cidade, no dia 12 de maio de 1921. Considerado um dos grandes nomes do conto brasileiro, escreveu seu único livro Tropas e Boiadas (1917), do qual o conto Ninho de Periquitos faz parte.




Ninho de Periquitos


ABRANDANDO A CANÍCULA PELO VIRAR DA TARDE, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.

Era pelo Domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dia antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.

Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.

-Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de “malícia”, num cupim velho do pé da maria-preta. Não esquecesse...

O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha d’arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.

- Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.

Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.

O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando de outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão-nesses dias sem pinga d’água-galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, tôda atostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.

Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.

O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.

E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...

O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos, possuíam salvação.

Perdido...completamente perdido...

O reptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo “jacaré” inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.

Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.

E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...


(RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e Boiadas. Goiânia: Cultura Goiana, 1984,p. 69-70).

Fonte da imagem: http://hmalicia.sites.uol.com.br/viola.jpg

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary - Última Parte


Com esta parte do texto,chegamos ao final do estudo de Otto Maria Carpeaux sobre Madame Bovary, de Flaubert. Boa Leitura!




(...)




Daí em diante, o declínio é rápido. A cena na catedral de Ruão, entre Emma e Léon, é a peripécia para a catástrofe. Enfim, Emma, no leito de morte, entre as rotineiras frases untuosas do padre e as imbecilidades do livre-pensador Homais - é a paródia da catástrofe de uma tragédia grega.



Seria possível aprofundar a análise durante páginas e páginas, lembrando inúmeras relações escondidas e significações mais ofensivas. Madame Bovaryu é uma obra de arte quase sem par. E poderia ser um incomparável manual de arte de escrever romances. Mas não o tem sido. O modelo é difícil demais. Qualquer um não tem o temperamento de poder enclausurar-se em Croisset, como um monge no deserto, para elaborar obra daquelas. Flaubert tem tido poucos discípulos, entre os quais convém ressaltar os nomes de Henry James e James Joyce. Madame Bovary continua o mais alto exemplo de um romance como obra de arte.


A obra também continua muito lida. É uma pena, certamente, que muitos leitores não dediquem a necessária atenção à leitura. A história de Emma Bovary interessa e interessará sempre o mais perfeito, o mais inexorável "romance de adultério", com atenção especial àquelas poucas páginas que o Tribunal do Sena, em 1857, achou censuráveis. Mas a popularidade da obra também tem provocado oposição. Já houve quem achasse "inútil" o desperdício de tanta estilística para uma história tão vulgar. É que tewmos nós, hoje, com acontecimento quase rotineiros numa aldeia francesa em 1840? Quando do centenário do romance, em 1957, um crítico inglês deu à sua conferência comemorativa na BBC o título desdenhoso: "No Orchids for Mrs. Bovary". Esse equívoco, de considerar como morta a obra, parece-me sobremaneira incompreensivo.


Dos três grandes romancistas franceses do século passado - Balzac, Flaubert, Zola (Stendhal ocupa posição à parte) - nenhum está "antiquado". Os ambiente sociais, políticos, culturais daquela época já desapareceram; a esse respeito, suas obras têm valor de grandes, exaustivos e exatos romances históricos. Mas as consequências continuam e com elas tipos humanos criados por aqueles ambientes. Os homens e as mulheres aida são assim; e assim continuarão por muito tempo. Aqueles romances ainda são obras contemporâneas nossas. Essa dualidade de "histórico" e "contemporâneo" é a mesma que define as maiores obras de arte de todos os tempos, a Divina Comédia, as tragédia de Shakespeare, o romance de Cervantes. Não existem mais Florença medieval nem a Inglaterra elisabetiana nem a Espanha dos Filipes, mas os condenados do Inferno, Hamlet, Macbeth e Lear, Dom Quixote e Sancho Pança são nossos contemporâneos; encontramos seus iguais na rua. A mesma qualidade dual é a de Cousine Bette e Germinal, romances históricos e contemporâneos ao mesmo tempo, mas Madame Bovary é o maior entre eles.




FIM



In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.15-16.
http://www.doctormacro1.info/Images/Jones,%20Jennifer/Annex/NRFPT/Annex%20-%20Jones,%20Jennifer%20(Madame%20Bovary)_NRFPT_01.jpg


Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Carpeaux prossegue revelando o estilo de Flaubert, desvelando toda simbologia de Madame Bovary. Amanhã, postarei a última parte deste belo estudo. Boa leitura!





(...)



Exato e colorido, sóbrio e musical, poético e prosaico: os termos são contraditórios. Nessas qualidades contraditórias do estilo de Flaubert refletem-se suas contradições íntimas de anti- romântico de burguês provinciano inimigo mortal da burguesia provinciana. Contradições dessas produzem uma tensão que pode ser, num artista altamente dotado, a fonte das mais altas qualidades artísticas. E Flaubert é, realmente, o maior artista em toda história da ficção em prosa.

Suas maiores vitórias estilísticas (e aquelas que custaram o mais árduo trabalho) são as nuanças. Dizer duas vezes a mesma coisa, com uma única ligeira diferença, que revela ao leitor atento que algo mudou ou vai mudar. Mas essas informações diferenciais não aparecem em seguida. As vezes estão separadas por páginas, por capítulos inteiros. Quem, ao ler a segunda frase, ligeiramente modificada, se lembra da primeira vez em que apareceu quase (mas só quase) idêntica, esse tem leitor tem estabelecido uma relação que escapa à leitura superficial. Dessa maneira constrói Flaubert a articulação da sua história. Para tornar esgura, ou digamos, ferrenha essa articulação, o romancista usa palavras-chave que voltam em determinados momentos, como os "leitmotivs" num drama musical de Wagner, Enfim, esses símbolos linguísticos formam feixes, cenas inteiras que têm valor de símbolos: são as cenas principais do romance.

A primeira página do livro descreve minunciosamente o chapéu ridículo de Charles Bovary, quando aluno do colégio. A página foi, pelos críticos contemporâneos, muito censurada, como "enfadonha" e "inútil". Ela pode ser enfadonha - como o próprio Charles Bovary - mas inútil não é. O ridículo desse chapéu é o símbolo da estupidez de quem o usa e tornar-se-á símbolo da estupidez do ambiente inteiro em que ainda aparecerão muitos outros chapéus ridículos: o boné "grego" que usa o farmacêutico Homais e o chapéu de castor do padre Bournisien e o chapéu"elegante" (mas já démodé) do don-juanesco Rodolphe, quando Emma o encontra no baile do castelo.

Esse baile em La Vaubyessard, oportunidade para Emma sair dos eixos do casamento, está rodeado de acidentes simbólicos. O buquê de casamento, última recordação material dos sonhos pré-maritais de Emma, é queimado: esse está prestes a acabar. No caminho para o castelo, o cãozinho de estimação pula do carro, corre para longe e não é mis visto nunca: Emma perderá o caminho. A ridícula estátua de gesso de um padre, no jardim dos Bovarys, é mutilada pela chuva e cai em pedaços: a perda do pé da estátua relaciona-se com a incompetência profissional de Charles Bovary e sua operação desastrosa no pé do aleijado de Hippolyte; a destruição gradual da estátua de pedra lembra a eliminação dos últimos resíduos da educação religiosa de Emma, agora pronta para a aventura com Rodolphe.

O ponto alto do romance são os "Comices agricoles", a exposição agropecuária com distribuição de prêmios aos criadores de gado. É uma sinfonia de palavras. Nas vozes médias, o murmúrio do diálogo amoroso entre Emma e Rodolphe, na tribuna de espectadores; nas vozes agudas, os estúpidos discursos oficiais do prefeito e de outros dignatários, exaltando o valor da agropecuária para a Pátria; o acompanhamento do baixo é o mugido do gado e osussurro do vento nas árvores - todas essas vozes harmoniosamente combinadas são como um resumo do romance.


(...)

Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro:Ediouro, s/d, p.16.

SELO/PRÊMIO

Agradeço a Ângela do blog Entremeios http://entremeios-angela.blogspot.com/ o selo/premio Blog de Ouro, vou guardá-lo com carinho e indico dois dos muitos blogs que o merecem:

1-Essa Realidade Inatingível

2-JJLeandro


Regras:


1-Exibir a imagem do selo; 2-Postar o link de quem indicou; 3-Indicar alguns blogs de s/preferência; 4-Publicar as regras.

Otto Maria Carpeaux - Madame Bovary


Continuamos com a análise crítica de Otto Maria Carpeaux. Aqui ele escreve sobre a noção de estilo. Desvela um Flaubert anti-romântico, avesso à burguesia provinciana, lutando pela palavra "certa" na composição da sua obra de arte: Madame Bovary. Com esta leitura, compreendemos o quão importante foi e é Otto Maria Carpeaux para as nossas Letras.
Boa leitura!



(...)


Declarando-se anti-romântico, Flaubert tomou fatalmente, e talvez contra sua vontade, o partido de tudo que é anti-romântico. Mas no campo anti-romântico também se encontram os pequenos burgueses estreitos e estúpidos, os "filisteus", os Charles Bovary, os Homais etc. Flaubert os odeia igualmente. Mas sua existência de um esteta, inteiramente dedicado ao trabalho de elaboração artística, só é possível à base de um sólido fundamento econômico, de rendas, tipicamente provinciano. Flaubert, embora mais rico, pertence à mesma classe dos Charles Bovary, Homais e Bournisien, à "elite" que vive do trabalho da gente do campo. Sua existência é de "filisteu".
Flaubert não podia deixar de revoltar-se contra essa sua condição humana. Fez viagens a países exóticos. Trouxe de lá enredos de obras tão fantasticamente românticas como Salammbô. Se não observássemos o pendor para o romantismo vito-hugoano em seu sucessor Zola, poderíamos dizer: o anti-romântico Flaubert é o último romântico. E agora se compreende melhor sua confissão: "Emma Bovary, c'est moi."

Com efeito, embora o romancista desprezasse sua personagem, sofreu com ela. Contou-lhe a história, sofrendo com ela. O enredo, de tanta simplicidade, desbordou. Flaubert, grande artista, teve um trabalho imenso para refreá-lo. Por isso, Madame Bovary é mais que a história de Madame Bovary. A diferença reside no estilo.

Ainda existem muitos equívocos em torno do conceito de estilo. Ainda há quem considere o estilo como espécie de embelezamento.

Escreva-se primeiro, em frase simples e compreensível o que se pretende dizer; depois, substituam-se as palavras normais por expressões mais raras, para exibir "riqueza lexicológica", enfim, estende-se a frase até ela fornecer um período, ao qual se confere, por conveniente modificações e inversões, a sonoridade musical.

É evidente que esse conceito de estilo, herança funesta do parnasianismo, não tem nada que ver com literatura séria e que não vale discuti-lo a respeito de Flaubert.

Mas é preciso confessar que Flaubert tem realmente algo de um parnasianismo em prosa. Lutando contra as dificuldades da língua e esforçando-se deseperadamente para dar às suas frases o caráter de algo definitivo. Flaubert é bem o contemporâneo dos poetas parnasianos Leconte de Lisle, Glatigny, Bouillet, este último seu amigo de infância. Mas quando um Lecont de Lisle reescreve pacientemente seus versos para conferir-lhes a famosa "beleza marmórea" e quando Flaubert sofre em noites de insônia ataques epiléticos porque não encontra determinada expressão, não se trata da mesma luta. Flaubert não pretende escrever "belo" ou "bonito", mas "certo". Proíbe, menos em raros casos de indispensabilidade, os adjetivos. Um substantivo que não representa o sentido desejado se não acompanhado de um adjetivo, não é o substantivo certo. Para dar determinado sentido, só pode haver uma determinada palavra, que é preciso descobrir. Flaubert não acredita na existência de sinônimos. Sempre só existe um único "mote juste". Quando todas as palavras de uma frase são os "mots justes" necessários e unicamente admissíveis, então só é preciso colocá-las na ordem certa - o que també é muito difícil - para conseguir a musicalidade da cadência. Assim nasce um estilo que é, ao mesmo tempo, exato e colorido, sóbrio e musical e - se quiserem - poético, mas, no entanto, nada de poesia e só prosa pura. Compreende-se as dificuldades imensAlinhar ao centroas com que Flaubert lutou para escrever uma frase, um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro.

(...)


Até amanhã!


In.Madame Bovary. Gustave Flaubert. Trad.: Sérgio Duarte. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.14-15.
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