MEMÓRIA - ENTREVISTA



Francisco Perna Filho









Entrevista originalmente publicada no Jornal Opção: www.jornalopcao.com.br





“O mundo é um grande texto”


"O escritor deve ter consciência do seu ofício, da sua importância no mundo, já que é um cronista do seu tempo.” Quem faz essa afirmação é o poeta e ensaísta Francisco Perna, autor do livro Refeição, publicado em 2001. Natural de Miracema do Norte (hoje, Tocantins), onde nasceu em 24 de novembro de 1963, Francisco Perna é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, com uma dissertação sobre o poeta Manoel de Barros, intitulada Criação & Vanguarda: Bopp e Barros. Filho de Francisco Noleto Perna e Adalgisa Noleto Perna, é casado e pai de dois filhos. Professor de língua portuguesa dos cursos de comunicação social da Faculdade Cambury, Francisco Perna tem artigos publicados em revistas científicas da área de letras e é colaborador da revista eletrônica Bula (www.revistabula.com) Nesta entrevista aos escritores Valdivino Braz e Carlos Willian, ele fala do poder da palavra para decifrar o mundo e não poupa críticas aos escritores goianos que fazem da literatura um mero passatempo social. Mas garante: “Goiás tem grandes escritores”.


Valdivino Braz — Volta e meia, como no recente Encontro Nacional de Escritores, em Goiânia, fala-se em montar escola para escritores, no sentido de ensinar a fazer literatura ou formar escritor. Você acredita nesse tipo de coisa? Acha que o processo é esse para se ter escritor que preste?

Pode-se falar de estilo, forma, imagens, ensinar alguém a escrever (coisa muito difícil nos dias de hoje). Até aí, tudo bem. O que é inconcebível é alguém querer formar escritor. Esta história de escola para escritores é uma idéia rasa, demagógica e oportunista. Acredito que deva ser para tirar dinheiro público; viver à custa do estado, com promessas mirabolantes e alquímicas. Escola para escritor é como escolinha de futebol: o menino se matricula, tem contato com a bola, com outros atletas, aprende as regras do jogo; mas, se não tem talento, jamais será um craque. Para dizer a verdade, eu vejo tudo isso com um pé atrás. Talvez o Mário Prata tenha sido o último a propagar tal besteira por não ter preparado a sua fala no VI Encontro Nacional de Escritores. “É inconcebível alguém querer formar escritor. Esta história de escola para escritores não passa de uma idéia rasa, demagógica e oportunista”

Valdivino Braz — Ainda no terreno de formar-se escritor, como você vê o produto das chamadas oficinas literárias, parindo pseudopoetas, equivocados em relação ao texto poético e publicando excrescências que não vão a lugar nenhum? Nesse caso, o que fazer em relação a tais oficinas e suas abomináveis crias?

As oficinas literárias são válidas, desde que fique bem claro a que elas se destinam, que não é formar quem quer que seja, mas auxiliar as pessoas, pelo exercício da leitura e da escrita, a se expressar melhor, adquirir uma performance lingüística e textual. Eu posso falar muito bem sobre essa experiência, porquanto, desde 2001, mantenho uma oficina de criação textual, na disciplina de língua portuguesa para o curso de publicidade e propaganda da Faculdade Cambury. Os resultados são muito gratificantes. O progresso dos alunos na área da expressão é muito grande. Agora, é bem verdade que algumas oficinas tentam passar uma fórmula maravilhosa de como se tornar um escritor, um poeta, mexendo com a vaidade de pessoas incautas, sem o mínimo de senso crítico, levando-as aos livros, não como leitoras, mas como escritoras. Mas isso não acontece somente na literatura. Na música o processo é mais ou menos parecido, só que os investimentos são bem mais altos e o lastro de destruição é bem maior: as gravadoras, visando somente o lucro, incutem em alguns indivíduos que eles são artistas, e eles acreditam, vivem como tais, ganham muito dinheiro e morrem na ilusão artística. Algo parecido acontece no jornalismo: é o caso do indivíduo que escreve cartas para a coluna do leitor de grandes jornais e se autodenomina jornalista, às vezes, sob a tutela dos próprios sindicatos. Tudo isso é muito grave, e o mais grave de tudo, no que se refere à literatura, é que essa gente ainda encontra guarida nos prefaciadores de plantão, amigos do peito que, sem nenhum critério estético, alimentam o ego desses indivíduos, chegando ao absurdo de colocá-los no panteão dos grandes escritores.


Valdivino Braz — Como você interpreta a questão do escritor consciente do seu ofício e coerente com o seu tempo? E o que é, para você, a função social da literatura?

O escritor deve ter consciência do seu ofício, da sua importância no mundo, já que é “um cronista do seu tempo”. Precisa se inteirar dos acontecimentos e se rebelar contra tudo aquilo que atente contra a sagrada liberdade de expressão. Se a literatura é gerada num tempo e num espaço, num determinado contexto social e político, ela também pode refletir esse contexto social, denunciando as mazelas e opressões por que passam os indivíduos. Neste ponto, ela tem uma função social. De outro modo, como arte, tem um fim em si mesma: causar deleite e despertar para o estético.


Carlos Willian — O poeta e crítico Alexei Bueno disse que a poesia é um problema na vida da pessoa, um desastre na vida de qualquer um, da paz de espírito ao orçamento doméstico. Concorda com ele?

Você me fez lembrar um livro de ensaios do José Paulo Paes, Os Perigos da Poesia, título que faz alusão à república Platônica, já que Platão sugeriu a expulsão dos poetas de sua república, porque, segundo ele, a poesia despertava o inconsciente dos homens, o lado irracional. Para Paes, esse título alude ao paradoxo: sendo a poesia inofensiva, como ela pode ser perigosa num mundo extremamente consumista, já que seus consumidores são escassos? O Alexei tem toda razão: não existe meio poeta, como não existe mulher meio grávida. A poesia transcende qualquer compreensão, o poeta dela não se desvencilha: é um ser transtornado pela percepção perquiridora do ínfimo, numa concepção barreana, e isso afeta tudo. A poesia é para poucos, tanto os que a produzem, quanto os que a consomem, e sendo assim, é pouco valorizada. Portanto, sobreviver de poesia, só liricamente.


Valdivino Braz — Tem-se por empatia a tendência de alguém para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstância experimentada por outra pessoa. No caso do leitor em relação ao poeta, você diria que há pelo menos 50 por cento de empatia, ou que necessariamente não há que existir empatia, mas sim predisposição à leitura, para que o leitor se sinta preso pelo texto?

Por ser a boa poesia o texto por excelência, os seus leitores têm uma consciência e uma percepção do estético, e assim, movidos pelo desejo da fruição, vão ao encontro dela, pela linguagem, pelo estilo, pelas imagens, e não pela empatia com quem quer que seja. Quando se procura um texto poético, a “predisposição” é importantíssima, pois não se consegue distinguir um bom livro de um ruim, pela cara do poeta. Não estamos comprando carne, estamos falando de arte. O resto é compadrio.


Carlos Willian — Falando em “compadrio”, você prepara o seu doutorado sobre a obra do poeta Valdivino Braz. Não fica parecendo uma ação entre amigos?

Muito boa e oportuna a sua pergunta e, para respondê-la, vou ser bastante breve. Tenho um projeto para um doutorado e espero concretizá-lo em breve. Valdivino Braz é um grande poeta, dono de uma obra riquíssima, digna de reconhecimento. O meu conhecimento de sua obra é anterior aos nossos laços de amizade. Antes de nos tornamos amigos, escrevi o ensaio “Os Búzios do Braz no Mar da Linguagem” sobre o premiadíssimo A Trompa de Falópio, ganhador do Prêmio Cidade de Belo Horizonte. No doutorado, espero fazer um trabalho digno do homem e da obra.


Carlos Willian — A critica é necessária?

A crítica é fundamental para a formação de bons leitores, já que a sua função é a de interpretar e avaliar a obra literária, destacando os aspectos estéticos e lingüísticos que contribuirão para o julgamento de determinada obra. É pena que essa crítica, hoje, esteja restrita à academia, aos centros universitários, não chegando ao universo jornalístico, como, outrora, a tínhamos de sobejo. Basta mencionar Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior, para sentirmos o tamanho da perda. O que é uma pena, pois se tivéssemos uma crítica efetiva nos jornais, evitaríamos muito dos equívocos, como os que ocorrem em relação às oficinas literárias. Espaços como este, do Jornal Opção, são raros. Iniciativas como estas, que resistem ao tempo, a governos, devem ser elogiadas, pois sabemos o quanto e difícil manter um caderno cultural, que não tem pretensões econômicas, a exemplo dos suplementos de outros veículos, que só abrem os seus espaços, quando o lucro é líquido e certo. É o caso clássico dos malfadados resumos de obras literárias, propagados por “livros” e jornais do Estado, causando um mal danado ao indivíduo que não lê e passa a banalizar a literatura e a sua própria língua.


Valdivino Braz — A experiência propiciada pela publicação do primeiro livro sempre deixa no autor alguma impressão significativa, como, por exemplo, perceber o que vem a ser realmente a coisa literária e o quanto o autor ainda tem que aprender. Impressão, aliás, gratificante. Alguma coisa nesse sentido ocorreu após a publicação de Refeição, seu primeiro livro?

Expressar-se por escrito ou de qualquer outra forma é sempre prazeroso, um ato carregado de significados e responsabilidades. Vejo que amadureci muito desde o meu livro Refeição, publicado em 2001. Tenho percebido o quanto ainda preciso melhorar o meu texto, mas essa é uma questão interessante para ser discutida, já que o primeiro passo eu dei: submeti o meu texto ao público. As críticas são boas, mas sei que tenho muito aprender, o que só a leitura de bons autores e o permanente exercício da escrita poderão proporcionar-me. É por isso que eu estudo bastante. Leio muito e escrevo sempre. Neste campo, autocrítica é a lei.


Carlos Willian — Quais os poetas, de Goiás, do Brasil e do mundo, que mais o influenciaram?

Para dizer a verdade, somos frutos das nossas leituras. Por intermédio delas é que passamos a ter consciência do mundo e nos tornamos críticos com relação às coisas. Com a literatura não é diferente. Muitos livros nos marcam e a gente termina por absorver muita coisa. Conscientemente, não sei se a minha poesia carrega uma marca em especial de algum poeta goiano. Isso os críticos poderão dizer mais tarde, já que a minha obra é ainda incipiente Mas temos grandes poetas, maravilhosos; expressões valiosas das nossas letras. Com relação ao restante do Brasil e ao mundo, as leituras são várias, mas alguns autores me marcaram mais, como Luiz de Miranda, um grande poeta de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul; o grandioso Gerardo Mello Mourão e o mato-grossense Manoel de Barros, sobre quem escrevi minha dissertação de mestrado Criação e Vanguarda: Bopp & Barros. Também me marcaram muito Moacyr Felix, genial, um ser comprometido com o seu tempo, de um lirismo estarrecedor; Fernando Pessoa, Tahar Ben Jelloun, o Herman Hesse de Andares, Rimbaud, Baudelaire.


“Poesia e filosofia sempre caminharam juntas. É natural para o escritor recorrer a temas filosóficos, amadurecer idéias, refletir o mundo”


Valdivino Braz — Poesia e filosofia costumam aliar-se na criação do poema, mas há quem condene essa parceria, pautando-se mais por um lirismo meloso ou por um coloquialismo equivocado, em nome de uma simplicidade que se quer mais ao alcance do leitor, como dizem. Como poeta e professor, como você vê essa questão?

A poesia e a filosofia sempre caminharam juntas. É natural para o poeta (escritor) recorrer a temas filosóficos, amadurecer idéias, refletir o mundo, buscar pela linguagem uma recifração desse mundo, daí a sua complexidade, e nem todos estão preparados para isso. A poesia pode optar por uma linha lírica sem ser melosa. Exemplos nós temos inúmeros na literatura universal: Camões, Baudelaire, Novalis, Goethe, Cesário Verde, Fernando Pessoa. O que não dá é para achar que qualquer coisa deve ser considerada; quanto ao coloquialismo, o poeta, dependendo do seu objetivo, pode se valer desse recurso. Lógico, que tudo muito consciente, e é justamente nisso que alguns escritores se tornam superiores. Lembremo-nos de Guimarães Rosa com o Grande Sertão: Veredas.


Carlos Willian — O poeta brasileiro, cada vez mais, é um erudito. Ele traduz, tem mestrado, escreve ensaios e resenhas; mas, mesmo assim não consegue viver de poesia. Então, qual o caminho?

O Caminho de Santiago de Compostela [Risos]. Educação, meu caro, educação. Enquanto não tivermos uma educação cultural, que nos desperte para a nobreza da palavra, não conseguiremos fazer nenhuma mudança. A poesia deve ser incutida na criança desde cedo, aliás, desde o ventre materno, já que a leitura sensorial é comprovada nos primeiros meses de vida. Se uma criança é gerada num ambiente de tranqüilidade e paz, tende a ser um adulto equilibrado e tranqüilo; se, durante a gestação, o pai canta para criança, acaricia a barriga materna, declama poemas, enfatizando, claro, a sonoridade, ao nascer, essa criança já estará sintonizada com o artístico, com a palavra poética. A educação pela palavra deve ser uma tônica nos lares. Não estou aqui querendo ditar regras de comportamento, mas, tão somente, tecer alguns comentários sobre a experiência de ensinar, de trabalhar como professor e, claro, por ser pai de duas belas crianças, que lêem.


Valdivino Braz — Como professor na Faculdade Cambury, você adota livros de autores goianos, fato não muito comum nas instituições de ensino superior em Goiás. O que o leva fazer esse trabalho?

O mundo é um grande texto e nós somos leitores desse grande mundo. Uns lêem como maior profundidade; outros, superficialmente. Os escritores, sejam goianos, baianos, cariocas ou paulistas buscam uma tradução daquilo que está acontecendo, ou do que poderia acontecer nesse grande mundo, seja pelo surreal, pelo insólito, pelo lirismo, pelo realismo, ou por qualquer outra forma de expressão, eles estão a serviço da literatura, conseqüentemente, da palavra. É na literatura que vamos encontrar a chave para decifração desse grande texto. É por isso que eu trabalho com os autores goianos, porque, além da universalidade dos temas, muitos traduzem o nosso povo, as nossas tradições, fatores imprescindíveis para a construção da cidadania, que só pode ser efetivada quando o indivíduo se descobre como leitor crítico do espaço que habita. De uma coisa tenho certeza: os meus alunos são diferentes, porque são críticos. Porque lêem literatura feita em Goiás. Agora, o que me deixa abismado, é o fato de outros professores não fazerem o mesmo, apenas mencionam o nome dos nossos escritores, quando são obrigados, já que a UFG adota, nos seus vestibulares, a leitura de alguns autores goianos. Então, o professor de segundo grau, cursinho, e os oportunistas dos resumos de obras literárias fazem a festa. No dia em que tivermos representantes mais cultos na Assembléia Legislativa, e isso só se dará se formarmos leitores críticos, leitores do seu Estado, da sua cidade, do seu bairro, sem dúvida, a literatura goiana terá a sua vez em todas as escolas deste Estado. Aí, sim, eu serei apenas mais um a atravessar o Paranaíba.


Carlos Willian — Qual sua avaliação sobre a literatura goiana desde os livros de receitas culinárias até os de auto-ajuda à lá Paulo Coelho?

Falando em literatura goiana, temos obras muito boas. Fazer uma avaliação detida demandaria muito trabalho e empenho. O momento não é adequado, até porque não estou à altura de traçar um cânone do que quer que seja. Mas não podemos deixar de dizer que há muita coisa ruim sendo publicada.


Carlos Willian — Na revista eletrônica Bula, você publicou o ensaio “O Pó da Pós-Modernidade”, criticando o Prêmio Flamboyant de artes plásticas. Por quê? O que há de errado com a arte conceitual?

Na verdade, fiquei indignado com tanta besteira exposta. Jamais imaginei que fossem privilegiar tamanha estultice. Salões como o Prêmio Flamboyant precisam buscar uma identidade, sair da mesmice; parar com essa coisa de desconstrução, que não leva a nada. Dizem que o que vale é o conceito, que tudo é arte, e, em nome disso, levantam paredes absurdas, enfiam pregos em escova de dente, lâminas em sabonete, fotografam parentes e amigos em poses patéticas, colam tecidos em tela, amontoam redes e espelhos, e ainda têm coragem de chamar isso de arte. Pelo amor de Deus! Estes e outros motivos foram explicitados no meu ensaio.


Carlos Willian — Para você o que é poesia? O que é poema?

Toda definição é sempre muito complicada. Corremos o risco de ser simplistas. No caso da poesia, mais ainda. O importante é sentir a sua essência: imagens, musicalidade e linguagem. Erza Pound, ao definir a grande literatura, disse que grande literatura é linguagem carregada de significado até o último grau possível. Talvez esteja aí uma boa resposta.


RETRATO

Francisco Perna Filho









Para o amigo M.Cavalcanti



O silenciar dos artistas,

a solidão que carregam,

na vã espera do traço que não vem,

do amor que foi embora.

Há um quê de esperança,

porta adentro,

Janela afora.

Riscos,

rabiscos,

sofrimento de um mundo inoportuno.

Olho-os todos,

todos sou,

apesar do mundo lá fora.

As imagens vêm,

os sinos dobram

e a vida elástica carrega a esperança.

Há sempre barcos à deriva,

galeões,

voadeiras,

canoas.

Tudo processado,

comprimido,

refletido

e refeito

na arte vaga da alma,

manifesto dos que lêem as madrugadas

com a simplicidade de quem espera.

Paisagem reinventada

nos olhos que captam o vivido.


O artista é o espelho do muro do mundo

do riso largo dos vagabundos

do sortilégio de quem cava a palavra

e com ela mata a fome.

Ele pinta o homem possível

E inventa o impossível.

No cordel umbilical

No toque solene

No tango silente

Nas cores do tempo,

tão iguais como as diferentes flores do meu sono.

O artista sonha a madrugada

e com ela tece novas auroras,

quando o homem comum não mais enxerga,

não mais comunga,

O artista é.


Imagem: desenho de João Pedro Tavares Perna (este desenho é de 2001 e faz parte da ilustração do meu livro Refeição. O João Pedro tinha 05 anos)

MEMÓRIA




















O texto, a seguir, é uma crítica da professora Doutora Moema de Castro e Silva Olival sobre o meu primeiro livro de poesia Refeição, Goiânia: Kelps, 2001, e foi originalmente publicado no Jornal Opção de Goiânia.


A REFEIÇÃO DO POETA

Em busca do maná existencial

Em sua estréia na literatura, o poeta Francisco Perna Filho instaura um projeto poético que gira em torno do eixo contrapontístico — o efeito destrutivo da realidade física circundante e a busca de equilíbrio do “eu interior”

MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL - Especial para o Jornal Opção


Com prefácio do escritor Goiamérico Felício Carneiro dos Santos e orelha de Luiz Serenini Prado, o poeta e professor Francisco Perna Filho lançou seu livro de poemas Refeição, editado pela Editora Kelps, em 2001, com ilustrações infantis (de autoria de seu próprio filho de cinco anos, João Tavares Perna) e que, na intenção ao autor, não estão ali aleatoriamente, mas como coadjuvante de sua proposta temática. Vejamos. O projeto poético em questão gira em torno do eixo contrapontístico: realidade física circundante e o efeito destrutivo desta realidade sobre o “eu interior”, em busca do equilíbrio do ser humano, na sua bipolaridade: corpo e espírito. Recorre ao potencial energético da alma, induz à prática da visão lúcida, aguda, que mostra ao homem o tempo que lhe coube, as contas do rosário de sua travessia, os indícios dessa presença reconfortante e, muitas vezes, obscurecida, para o possível encontro do “alimento” que refaz, que se propõe reconstituir a unidade ameaçada.

E frente à perturbadora desordem de um “Cafarnaum” que o avassala, “nada há de novo que não nos mostre o velho”, e que, por isso, lhe instala a angústia, que o oprime e o deprime; resta ao ser humano “espectar”. Reconstituir-se, no tempo, operando memória, único recurso de solda dos fatos circunstanciais, para poder ocupar seu verdadeiro espaço de agente de seu destino. É preciso que não se perca de vista o propósito de recuperação, que o homem se permita sonhar, “voar”, para que encontre, no horizonte, as perspectivas de reabastecer-se e reenergizar-se, para poder enfrentar, lutar. Então, o poeta insiste na fome da liberdade, no contraponto de idéias que dividem o nosso “ego”, que balançam a nossa psique.

O livro se constitui de três partes. Com a primeira, iluminada por epígrafe de Fernando Pessoa, se instala o espaço das dúvidas, a dureza do enfrentamento da realidade. E o significativo poema “Montanha” nos faz descortinar o pétreo espaço:

A palavra pesada persegue a pedra, revela o austero pulsar do silêncio e, com ele, inaugura um olhar de montanha.(Refeição, p.19)

Metalingüisticamente, o poeta aponta, também, para a árdua luta na escolha (“no olhar”), na pesquisa da palavra-cerne, da palavra essencial. A significativa metáfora “olhar da montanha” aponta para a dureza dessa busca, que o preocupa e o instiga, arregimentando experiência, para firmar-se neste terreno tão árduo para os poetas e em que já se revela promissor.

Na segunda parte, instala-se o primeiro round dessa luta, quando o poeta, com plena demonstração da referida palavra aguda e perseguida, dá vazão ao seu “olhar de montanha”. Vejamos no poema “Todos” (com epígrafe de Manoel de Barros), como ele se expressa no claro propósito de agasalhar, em si, a síntese da humanidade:

Tentei a revisão do ultrapassado, a coesão da arte do absurdo, a adaptação ao pós-moderno (...) Em mim estão todos. Eu sou todos. (Refeição, p.33)

Nesta segunda parte, o “eu lírico” questiona o vazio do mundo, das coisas em si, a força inaugural que o preside, como se pode ver em “Transformações”:

“O rio continua no riso pálido do pescador extático no hiato das culturas, na incontinência dos jovens poetas” (Refeição, p.37)

Sente-se o alento primacial que batiza o universo e, em reforço a essa imagem, é que Francisco Perna parece acrescentar a linha primeva da pintura do menino de cinco anos. Também, a partir desse olhar, é que se justifica, a nosso ver, o pragmático título Refeição, e não um outro, trabalhado pela transfiguração e, por isso, mais carregado de poeticidade, como “Realento”, ou “Renascimento”, ou qualquer outro nesta referida linha. Tem a força crua da realidade, fazendo transparecer o outro pólo de nossa unidade, o espiritual, uma vez que esse alento deve representar o êmulo da necessária reação. Destruí-lo é perdê-la, como tragicamente se constata no poema “Essencial”.

O enfrentamento da realidade deve resultar, pelo potencial de reflexão, na lucidez que permite descortinar o campo de batalha, que permite visualizar o que resta ao ser humano. Reagir, sim, pois cabe ao homem “parir o vôo de destinação”, já que a vida é múltipla e toda “estrada traz o peso dos passos”.

Nota-se, no exemplo a seguir, como o poeta acha a palavra delineadora, caricatural, criando a imagem expressionista, prenhe de carga social:

Assim a leveza do estômago que passivamente soletrava o pão. (Refeição, p.65)

Há, sem dúvida, um sopro revolucionário a sugerir e a comandar a reação necessária.

E aquele pensamento básico — “parir um vôo de destinação” — segue comandando a temática do livro, que discute a consciência da sensação de impotência do ser humano, deslocado de si mesmo, como se comprova em “Palavras de um Morto”:

Há um grito em cada verso meu, grito abafado, mas sereno. Um grito continental de clamor e piedade pela humanidade.

O clímax desse estado de espírito é alcançado pelo sujeito lírico, quando, assumindo, explicitamente, os cinco anos do filho do poeta, idade da esperança, mostra-se, em contrapartida, “totalmente desesperançado numa paisagem de desamor, de guerras, de extermínios, como vemos em “Kosovo”:

Estou com cinco anos, a lua acaba de se apagar. (Refeição, p.94)

Na terceira e última parte do livro, agora iluminada por epígrafe de García Lorca, “Ydespués”, canaliza-se a angústia pela constatação da impotência frente ao tempo que circunscreve os problemas que atingem os homens, “peregrinos das insolúveis sentenças”, bem como se evidenciam os meios de reação.

A metaforização das imagens que suscitam o desfilar das carências vitais do homem, carências indiciadas pelas metáforas que traduzem os elementos primaciais da vida (como os alimentos, por exemplo, daí o título, não só do poema-chave, “A Sagrada Ceia”, quanto do próprio livro), provoca a concretização, a sacralização da proposta do livro: a urgência e coragem de se “olhar” para se “descobrir” e para “sentir” o seu próximo; a urgência e coragem de se buscarem as fontes de desajustes; a tentativa de resgate da angústia deles decorrente; a possibilidade de se tentar uma sondagem reparadora, que “revise a fome de santos e peregrinos”.

E enfrentando o percurso da reação, “o poeta refaz-se do último pesadelo” de sua “fome existencial”. Deixa entrever como atitude redentora “um leque de possibilidades”, apontando para a direção de seu olhar recriador, voltado para o Outro, para o Mundo e para Deus.

E, no último poema, “Duplo”, o poeta mostra, ao ser humano, a dicotomia responsável por tanta angústia, chamando a atenção para o homem e seu desdobramento visceral:

Caminhos me levam para fora de mim viajo. Não há como entender. (Refeição, p.117)

Busca o seu vôo, mas os pés estão presos em sua realidade. Parece vencido:

Há uma escuridão perpetuada. Manhã pesada. Mas quer readquirir forças para reagir:

Contemplo o meu corpo petrificado no espelho da sala. Reflito um abraço e vou dormir. (Refeição, p.118)

Assim, Francisco Perna Filho sintoniza, neste livro, nas imagens que sacralizam os dois campos de batalha, sua visão de poeta, no “ser passante” que somos; ousa argüi-lo, de maneira criativa, mas, talvez numa mostra de seu lado docente, busca apontar-lhe, ou melhor, sugerir-lhe, as vias de salvação. Seu imaginário está prenhe do universal e, poeta contemporâneo, consegue mostrar, com tenacidade, sua preocupação em torno da “difícil luta com as palavras”. Feliz iniciativa, Francisco Perna. Prossiga na sua árdua missão. Parabéns.


MOEMA DE CASTRO E SILVA OLIVAL, doutora em letras pela USP e professora emérita da Universidade Federal de Goiás, é escritora e crítica literária, autora, entre outros livros, de O Espaço da Crítica (Editora da UFG, 1998).


Foto by Francisco Perna Filho - Cidade de Goiás - GO.

FOTOGRAFIA


Francisco Perna Filho












O Relógio deu nove horas.
Um alarido de tempo aprisionado alertou as manhãs,
apavorou as cidades,
temporizando os visitantes.
O grito das horas determinou o aprendiz,
pasmou o homem céptico
na vigília de sua contemporaneidade.
O dia se fez aprisionar,
o embaraço do trágico ficou preso
ao ecúleo dos bêbedos,
à desilusão das prostitutas
na anacronia da exploração.
O grito emudeceu/umedeceu-se.
Algumas vidas foram preservadas
antes dos disparos.
Falem agora ou calem...
o soco parou no meio do caminho,
o beijo perpetuou-se,
A gafe foi congelada para não haver perdão.
O agora eternizou-se.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.87.
Fonte da imagem: Galeria Photoshop 7.0

LATIFÚNDIO


Francisco Perna Filho

















Na rua,
a esperança rui,
acalentada que fora,
em vão,
pelo guardador-de-carros,
que em acenos vários
contabilizara vagas
no pedaço de asfalto
que lhe coubera.
O vão da vaga,
o aceno em vão,
e o insone latifundiário
coloriu-se de asfalto
e sonhou semáforos,
apitos
e vazios.
Amou a leveza do estômago
que, passivamente,
soletrava
pão.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.65.

REVELAÇÃO


Francisco Perna Filho








Teus olhos infindos

peregrinam versos nas bibliotecas,

traspassando todo o concreto com o qual me visto.

Desnudo, sou pura memória.

Memória primordial.

Vejo as figuras formadas à sombra dos pés-de-lima:

Cavaleiros, viajantes, lavadeiras,

homens simples.

As sombras que imóveis me animam

compõem esta fantasia.

São seres noturnos

que se revelam na luz.

Sombras de engenho,

do todo,

de arte,

de partes,

de quem parte sem sombras de dúvidas,

deixando um vazio de sombras:

de memória perdida,

de palavra não dita

no aturdimento dos amores.

Sombras que pesam,

de pedras,

na mais pesada palavra.

Dos mitos,

do mítico,

que perseguem os meus contemporâneos.

Sombras transformadas,

que assombram teus olhos,

atentos e profundos.

Olhos de sombras

que me iluminam.

In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, P.25-26.

Imagem by Francisco Perna Filho - óleo sobre tela.

OS DIAS

Francisco Perna Filho










Toda lembrança é futuro
que reverbera.
Precisamente,
não sabemos o que nos faz
tão adiante de nós mesmos.
O tempo, não o percebemos,
passa silencioso como as tartarugas.
Nada sabemos dos dias,
como caranguejeiras,
no inverno,
sempre nos surpreendem.
Naturalmente, cumprimos o peso da existência.


Fonte da imagem: http://www.essentialart.com/ta/Salvador_Dali_Explosion.jpg

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