Goiano de Anápolis, H. Martins é autor de vários livros de poesia e prosa. Como Ambientalista, publicou as seguintes obras: Método para Venda de Sequestro de Carbono, MDL - Uma composição Sustentável, Elementos para Concepção do Crédito de Carbono. Na área literária,poesia, publicou: Unha e Carne, Vaso Chinês, Todas as Cores das Flores. No campo da prosa, escreveu os romances: Lábios que Beijei, Mais que Perfeito Simples, Roseiral de Inácio e Viúvas Fogosas da Rua Direita, e agora nos brinda com o livro Alguns botões de Madrepérolas, do qual selecionamos dez poemas para você, caro leitor.
H. Martins |
Os líricos caminhos de Martins
Por Francisco Perna Filho*
Descendente de árabe, traz em si o andarilho, o mascate, as várias culturas, a paixão arraigada pelas cidades, a música entranhada na alma, a culinária, tudo isso se reflete na sua escrita, no seu humor cativante, no fingir poético, em cada passo que dá em direção a si mesmo, como nos poemas a mala do mascate e certas histórias:
é duma vez vendo tudo
traquitanas e embalagens
que desafiam não dar pra quem quer tudo levar.
é seda falsa
loção barata
poesia descalça
mala sem alça.
Fonte da imagem: Caderno do Oriente |
certas histórias
quando as conto, desconto as reticências
e me abrevio.
porque somente entende a mesma coisa
quem coisa igual se revelou.
e é bom que eu veja neste instante
o quanto viajante ainda sou
desmontando a tenda, resumindo a lenda
cantando o estribilho
que volta sempre
ao mesmo lado que nem sei se estou.
é duro arder na onda infiel dos dias
tramar, fazer, interessar as cenas
ratificar, se desculpar, rever-se
nos mesmos fiascos das
razões pequenas.
tiveram todos os mesmos dilemas
sofreram o tanto, ou mais, que as pequenas razões
destas pequenas glórias.
e todos não vivem a repetir memórias
repisar as delusões e o engodo
de reprisar sempre as mesmas histórias.
Apaixonado, como o homem do mediterrâneo, H. Martins também é só ternura, e traz no seu canto a presença serena da sua musa, traço recorrente nos seus livros, seja em prosa ou poesia, reflete a paixão do poeta , que ameaça ir embora, mas olha para trás e sempre volta: aviso
aviso
não deixe a porta aberta quando eu sair.
fosso de irremediável ilusão
é uma porta aberta.
tranque-a
e esconda todas as chaves.
porque sou daqueles
que olham pra trás
sou daqueles
que voltam.
ou, ainda, quando o poeta assesta o seu olhar para as várias formas de amor: amores de tela, sem cubículo, virtual, mas que, no final das contas, é real, quando a força de Eros se estabelece:
contextual
de que amor falas tu?
desses - digamos, comuns amores de tela
amores de telenovela
cujas entranhas não se veem à mostra
e aos abissais sarmentos da dor não conhece nem revela?
ou do amor sem cubículo, lotado no próprio vício
das salas que só existem nesse mundo virtual
chamado de amor virtual
gravado num universo de silício
embora conceitual?
e ao amor não espreitou a demasia, o termo e o tempo gastos
da saliva na pele amada, sob o pincel da língua úmida
penteando os pelos ao ir, eriçando os pelos ao vir
sob essa língua que não tão pesada, sequer muito leve demais
que míngua a consciência ao roçar nos bicos e nos atavios
e trilha na salgada salmoura do sexo, derramando dos
lábios a saliva
nos lábios da porta do meio do labirinto sem curvas.
posso não parecer normal,
pouco contextual
só desse amor entendendo eu
amor nada virtual.
Sua poética soa como advertência para o leitor sobre as possibilidades de decifração, ao mesmo tempo gera uma desconfiança, no que se diz previsível, o elemento mágico, feito coelho sem cartola, gerando uma tensão que, somada à incompreensibilidade, causa certa dissonância. Daquilo que fala T.S. Eliot: A poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida, o que é corroborado por Hugo friedrich: Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade**, como pode-se ler nos poemas advertência, limite íntimo e a fantasia e a demência:
advertência
entenda-me no meu poema
longe dele sou teorema.
impressão errada do que vai por fora
erudição previsível,
feito coelho sem cartola.
limite íntimo
ser rei de si próprio
ninguém resiste
sequer se limita o tempo e a dimensão
sequer importa a luta de poder
entre o domínio real do quase nada
e a submissão igual da mesma coisa.
ruídos, estigmas
há mais por cento
que percentagens em glória e sedição
há mais domínio vivo em quase nada
e o nada vivo em quase tudo ali.
confunde o mando magistral
com a humilde aparência súdita
serviçal.
fronteiras, nem se fala.
a ninguém importa ou exista
que demande por tomar o que não há.
não há nenhum fulgor ou interesse
sequer litigue alguém, algum vizinho
ninguém aporta nesse campo
soberano campo de reinar sozinho.
Memorial 11 de Setembro NYC |
a fantasia e a demência
duas razões que se fazem
formas caludas que jazem
em picadeiro silente
desavisadas em cartazes
pro espetáculo ausente
de fantasia e demência.
uma razão é fogosa
amargo no amor é essência
doce no amor é invento.
outra razão é doente
de velha e espreitada não sente
quando o amor bate à porta
não sente tão velha e espreitada
que dor antiga não importa.
H. Martins não é desses homens que foge à luta, possui vínculos profundos, alimenta-se de uma materialidade que lhe é tão cara para composição poética: a família. Em tempo de poesia, evoca os filhos, a cor dos olhos de cada um, como a uma bênção, uma dádiva, nos olhos que se voltam para o lar, na solidão madrugadora do Poeta:
tempo de poesia
miguel possui a benção da vida
nos profundos olhos negros
que joão enfeita de quase verdes
e pretextas riscas azuladas
é tanta poesia enfeitando o quarto nessas
madrugadas.
branca
não chore, ana
que por ser ana
porcelana
de fino trato
dar-te-ei flores
todas do florista.
nem que para comprá-las
eu precise de avalista
by Francisco Perna Filho |
Na sua imersão, H. Martins se apropria das várias possibilidades de ser ele mesmo, e, ao mesmo tempo, tantos outros. Um homem dado às humanidades, à consciência da linha tênue que percorre, equilibra-se, cai e se levanta, na dança dos hemisférios, quando o homem se completa:
existe uma face
que comigo vive
ostenta, mente
e bebe demais.
por trás
doutra face
apartada
(que é minha face, também hemisfério
do homem sério que sou demais)
voltada às coisas
que a incoerência faz.
o mundo e as guerras, a fome e a sede
eu, numa face que bebe demais.
só que a noite tirou-me o sono
e é no hemisfério do abandono
que minha outra face
desfalece e reflete
este mundo que verdades esconde demais.
temi que esta face
tomasse outra face
e eu passasse a viver
de disfarces demais.
* Mestre e Doutor em Letras-UFG.
**FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. 2ª ed.. São Paulo, 1991.
Poemas retirados do livro Alguns botões de madrepérola. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2019.