A travessia do sertão de Hugo de Carvalho Ramos
Há leituras que escavam a gente. E escavam desde o brejo do barro mais fundo. Fui procurar o meu avô e a sua saga tropeira no fundo do poço da memória de um Brasil perdido, a sua travessia em definitivo do rio Paranaíba (divisa natural de Minas e Goiás), as águas do grande rio dividindo as Minas Gerais de sua alma espraiando-se nos sertões calejados de Goiás – onde tantas almas nossas fecundaram. Da plaqueta vermelha que ostentou o carro de boi do meu avô no passo duro da estrada (Carro de boi 108, Araguari, 1944), levantando o poeirão contínuo do sertão de Minas e Goiás – e queria tanto saber o nome de seus bois, para pronunciá-los poeticamente como num mantra de tocar a raiz funda da árvore de nossa história familiar! – ao livro de Hugo de Carvalho Ramos, Tropas e Boiadas. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, uma jornada dura que tem me instigado e mexido muito com as emoções e a imaginação. Da história de meu avô a Hugo de Carvalho Ramos, um baque seco, como se eu tivesse caído do lombo de um cavalo indomável, daqueles que meu avô amansava e que só respeitavam a sua autoridade incontestável.
E sigo justamente essa poeira vermelha da estrada do Brasil de dentro, poeira do sertão engolido pelo tempo, soterrado pelas máquinas que apagaram, não de todo, o rastro das boiadas. Ainda é uma cena comovente de se ver: a comitiva tangendo boiadas no concreto do asfalto.
Tempo desses, topei com duas comitivas de boiadeiros. Uma seguia rumo Norte, entre os municípios de Goianésia e Uruaçu. A outra, no Vale do Araguaia, próximo a Aruanã. Na paisagem, apenas uma mancha ou outra de cerrado preservado quebrando a monotonia das monoculturas de exportação a perder de vista, a soja e os canaviais num verde sem fim.
E a ternura de olhar a inusitada miragem da boiada em seu lento arrastar pelo asfalto e os boiadeiros ponteando a manada... Ohhh! Puxo as rédeas do olhar e empaco. Deixo a saga de meu avô no fecundo poço da memória. E sigo a galope o sertão pintado por Hugo de Carvalho Ramos no começo do século passado, aqueles idos de 1914 a 1917.
Acredito que, assim como eu na minha procura, Hugo foi dar no mesmo brejo fecundo do barro fundo, o da memória afetiva. No mundo do encantado sertão de Hugo de Carvalho encontro o sertão desbravado pelo meu avô. O mesmo além Paranaíba, histórias que ouvi, as trilhas abertas pelos cascos dos bois onde o traçado do caminho não beirava nem a intuição de estrada – as perdidas estradas do boi, a rota do comércio entre as gentes das bandas de cá e de lá, na mesma bacia das almas, pois é difícil encontrar um goiano que não tenha um pé remoto em Minas. Aqueles homens de sertão, no calejado das rédeas de domar animais, brabezas de gente e de bicho, um arcaico Brasil conduzido por fazendeiros que fundavam seus reinos com mãos de ferro, esticando cercas de arame farpado a perder de vista no cerradão goiano.
O coronelismo falando grosso por esses rincões perdidos de Deus, sacramentando a defesa de interesses financeiros e políticos em alianças que asseguravam o domínio das terras, os privilégios de classe e o poder da aristocracia na província. E o falar grosso era o império da força bruta, do chicote, a lei do 38, das brutalidades que sacramentavam os domínios do latifúndio. Sem contar ainda das espúrias relações de compadrio entre os donos de terra e os agregados, mascarando a exploração com todos os componentes da servidão de nossa herança escravocrata.
Fui procurar o meu avô no recorte literário daquele mundo por onde andou e desandou muito dos nossos genes em Tropas e Boiadas. Livro que vez ou outra entra na lista dos indicados para os vestibulares das universidades goianas, que (in) explicavelmente passou ao largo de minhas mãos e dos meus interesses nos tempos do colegial e da faculdade.
Nascido em 21 de maio de 1895, na Vila Boa de Goiás, antiga Capital da Província e do Estado, Hugo de Carvalho estudou no Rio de Janeiro, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Morreu jovem, aos 26 anos de idade, no dia 12 de maio de 1921. Mário de Andrade, num daqueles congressos de escritores, em 1942, reverenciou Tropas e Boiadas, única obra de Hugo, como leitura essencial para quem quisesse compreender o Brasil de dentro, o Brasil do Planalto Central, o Brasil que vive de costas para o mar.
Hugo de Carvalho e os nomes dos bois de meu avô, incógnitas que por esses dias duelam com a minha curiosidade, esgrimam com pensamentos seguindo fios de intuição, relampejos na memória, uma insistência querendo claridade, materialidade e entendimento. E a possibilidade de tocar o mundo nunca esteve tão fácil. Basta apenas um click. Abro a porteira do ciberespaço e com um click encontro no mundo virtual de tantas e confusas possibilidades as Tropas e Boiadas de Hugo de Carvalho Ramos, obra que este ano completou 70 anos e já é de domínio público. É uma obra referencial em matéria de regionalismo, muito citada em teses de mestrados e doutorados, mas pouco lida e estudada – penso eu.
Nas minhas pesquisas pela Internet encontrei apenas um livro de análise da obra, A Narrativa de Hugo de Carvalho Ramos, da professora Albertina Vicentini. Também encontrei alguns artigos. E o bom é que o exemplar de Tropas e Boiadas que comprei num sebo de Goiânia veio com um bônus: anotações de algum aplicado estudante que esmiuçou, didaticamente, a obra, destacando personagens, foco narrativo e os significados de expressões e nomes de coisas do universo trabalhoso dos tropeiros. Vislumbrei atrás deste estudante um professor mais aplicado ainda em montar um roteiro de leitura, desses que de tão enfadonho afastaria ao mais interessado dos leitores. E pior ainda, embarcando para o matadouro a imaginação do leitor e as possibilidades de interação emocional com a obra. Agradeço não ter sido embarcada naquele lote e hoje sonho a galopes com o encantado da narrativa de Hugo de Carvalho e escavo o meu desejo de penetrá-la nas camadas fundas.
Meio que esquecida da saga do meu avô, a escrita, a pintura e os personagens de Hugo têm mexido e remexido fundo. E me vem umas imagens, uns clarões no breu desse desejo de arqueologia. Estou raspando camadas, aguçando a escuta, guardando pistas, um punhado de palavras e imagens que sorrateiramente coloco sob as mangas, como cartas de um jogo. Embrenho-me pelo sertão pré-rosiano de Hugo e, impressionismo do meu olhar (talvez), escuto uma voz que quase assovia na varanda de Riobaldo - ilusionismo do escorregadio sertão, inda mais esse eivado de vestígios da memória.
E o sertão de Hugo de Carvalho arde como as queimadas na secura do cerradão, seguindo o rastilho inflamável do capim seco. Arde no meu desejo de compreender, mais do que decifrar. Difícil atravessar a cortina de silêncio sobre o homem Hugo de Carvalho, fato que talvez se explique pelo que teria de inexplicável um suicídio na província (Hugo enforcou-se com a escápula da rede em que costumava se deitar, segundo informação no prefácio da 6ª edição de Tropas e Boiadas, 1984, de Victor de Carvalho Ramos - irmão de Hugo -, texto datado de 1964). Notícia veiculada no jornal da província, segundo o irmão: morreu um bacharel.
E a figura de Hugo de Carvalho destoa completamente daquele mundo do sertão que pinta viva e detalhadamente em Tropas e Boiadas. E nunca vi tanta ternura na pintura de um mundo de incomensuráveis brutalidades. Histórias que percorro na firmeza de sua escrita, histórias que ainda ouço de memória nas narrativas do meu avô, como parte de uma trama do inconsciente coletivo. Histórias que se arrastaram sertão goiano adentro, tempo afora, desde as Minas Gerais. A inocência daquelas maldades, as forças hermogêneas, as grandes e definitivas travessias.
Há leituras, como disse, que escavam a gente. Definitivamente, sei que vou cavalgar com Hugo, o escritor que recria em mim a força norteadora do meu avô no coração do Planalto Central, um homem que também domava destinos. Cavalgar com Hugo, soltando as rédeas, sem as amarras das teorias literárias - na minha curiosidade inicial o que encontrei me encheu de insatisfação. Uns enveredam pela linguagem, trilha natural, mas não é por aí que Hugo me pegou. É que dentro do academicismo de sua escrita foram abrindo-se ao sabor da minha leitura em disparada umas clareiras, umas belezas indomáveis, uns êxtases espontâneos, e uns diabinhos dançando no meu peito, entre picadas de borrachudos.
E mais do que aquela cobra enrodilhada no peito daquele peão (personagem incidental em Gente da Gleba, uma novela onde entrevejo esboço e fôlego de um romance) que dormia profundo e sentia o peso dos diabinhos pulando na quentura do corpo largado ao sono no meio do mato à visão aflitiva da serpente. Aqueles suores, aqueles focos narrativos negaceando como uma cobra cega. E Expedito (Dito)? E aqui me calo, reservando-me para a proximidade visceral do seu sertão, do meu sertão, em que rumino a esperança de ouvir os nomes dos bois secretos de sua criação.
Vou cavalgar com Hugo por muito, mas muito tempo mesmo. Isso é certo. Tudo nele me impressionou, principalmente o que intui nas fotografias. Aquela figura de dândi, pele alvíssima, delicadíssimas mãos, silêncios prolongados no ver e no dizer, mas que têm se aninhado no meu peito como aquela serpente insidiosa no corpo de uma das suas personagens que trilham o sertão do nosso imaginário. E uma interlocução assim a gente não despreza, ainda mais vinda do fundo do poço, daquele barro fecundo viajando na perenidade do tempo, atualizando no meu interesse um desejo de ver além do que já vi. Uma interlocução assim não há como desprezar. Tem mais é que ir em frente. A ponte: a escuta. O guia: a voz. E não sou mais eu que segue o rastro da boiada da criação de Hugo. É ela que me escava, acordando uma necessidade de ver.
E vi de relampejo tanta coisa que pede metódica releitura. Que pinturas na paisagem do sertão de Hugo de Carvalho, o sertão de dentro e de fora do homem! Em alguns momentos chego a entrar na pintura, tamanha pulsação de cores e contrastes. Enquanto o sertão ainda estava sendo desbravado ele levanta sua voz contra o rastro de destruição. Ali, naquelas preciosas páginas de Tropas e Boiadas, uma voz de ecologista integra-se naturalmente à paisagem que percorre sem o estardalhaço do panfleto. E em tantos trechos a minuciosa e poética descrição da paisagem feita por Hugo acariciam os nossos sentidos como uma pintura em movimento, beirando cinema, um relicário com força de documentário da fauna, flora e gente do cerrado. Nunca mais esquecer a ternura do olhar de Hugo.
Ele faz um desvio profundo na trilha seguida por outros regionalistas que levavam o homem ao fundo do poço da degradação. Entendi lendo Hugo o que me desagradava tanto na literatura de Bernardo Élis, o nosso imortal. Era justamente esse olhar degradante, a falta de saídas, nenhuma zona de repouso, nenhuma ternura que resgatasse a nossa precária humanidade. Até hoje a lembrança da leitura do conto A Enxada de Bernardo Élis me provoca um desconforto estranho.
Em Hugo, não. A crueza mais visceral nos aprisiona o olhar pela ternura. É um escritor que não precisa do conjunto da obra ou mesmo da fórmula de um livro fechado em seu conceito para nos convencer do seu valor literário. Basta a leitura do mínimo e profundo conto Ninho de Periquitos para nos seqüestrar irremediavelmente a admiração pelo escritor. Ali, o amor de um pai que não quer aborrecer o filho adolescente justo no dia do aniversário e que mesmo contrário a mexer no curso da natureza, profana um ninho de periquitos. E há tantos símbolos, tantos arquétipos, tantas camadas e trilhas a percorrer nessa única e definitiva obra de Hugo...
E ainda falando de ternura, assim como Riobaldo se encantava com o canto dos pássaros, Hugo também afinava os ouvidos da gente. Ah, e alguém que nessa trilha encantatória do sertão escreve os “joões-conguinhos”, definitivamente, já imprimiu a poesia do seu olhar.