Antônio Ramos Rosa - Poema
















Maio de 68


As linhas, mil linhas, novas linhas
do ar que circula
numa língua desligada, de uma fábrica
de ervas violentas, jovens,
nutrindo o pulso e os membros,
água de silêncio, no ar agora,
nas avenidas abertas ao silêncio,
nas pedras sem memória, sem medo,
vitória que se perde na frescura rápida,
princípio irrefragável desvanecido, vindo,
lanço a fronte no ar para a linguagem viva
que respira na espessura fragmentada morta
perseguida no vazio, obscura carga,
peso de um olhar, de uma boca ávida sem passado,
no entusiasmo irreparável da língua por viver
do corpo imediato
no centro - turbilhão - da árvore.
Terra, o solo comum, originário, em que descalços
surgir, ó boca, surgir como só um
de nós,
na praia de um presente aberto,
o vulcão surdo convertido em jorro de ar,
a boca restituída ao corpo, a língua
dada ao ar, ao sopro de um corpo a renascer,
razão livre desde sempre, ignota, desde sempre a única
razão,
anterior chama de ar submersa,
que nos lábios soçobra, agora se levanta,
fronte única, fonte, ovo de tudo o que começa,
rajadas de ar,
árvore de homens num estrépito de folhas de ar nas ruas,
a pedra o sol a terra a chama ávida e nua
a praia sob os passos
a página de mil linhas
a boca as palavras que rompem como água
de um princípio que encontra o seu presente
agora a língua livre e jovem
a língua irrefragável.


In.Nos seus olhos de silêncio. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1970.p.99-100. Fonte: Revista Poesia Sempre. Nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.28, 2007.
Imagem retirada da Internet: Antônio Ramos Rosa


Antônio Ramos Rosa - Poema






Antônio Ramos Rosa






Se não vivo ainda de um país branco e vermelho
ou de uma mulher de um magnífico fruto
se por ela não tremo e por ti não digo
ou não tremo e escrevo
sem uma estrela viva sem uma sombra de amor
é porque saí do teu ventre
e pela interdição de o fender
de o abrir na tua fenda primeira
numa Primavera derradeira
e por ti e por ela poderei viver ainda
e num arco-íris de sombra ou de areia
respirar como um astro subterrâneo
o espaço do mar
o sono de um canto adolescente
ó maravilhoso gemido
de um abandono
sem futuro!

Lisboa, 24/11/06


In. Revista Poesia Sempre. nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.24, 2007.
Imagem retirada da Internet: arco-íris

Brasigóis Felício - Ensaio






Por Brasigóis Felício







A liturgia da caneta




No lançamento do livro “Pescando peixes graúdos em águas goianas”, do poeta Geraldo Pereira, representando a Ube-go, fui chamado a dizer algumas palavras. Disse da diferença que existe entre as pessoas que planejam, alimentam sonhos, e as que se deixam levar como peraus na correnteza: as primeiras têm futuro, enquanto as outros têm destino. Falei da decadência a que se entregam as nações que não escutam as vozes de seus poetas. Ou de estadistas que honram a liturgia dos cargos que exercem, esmerando-se em dar exemplos positivos aos povos que lideram, animando-os com palavras sábias, nobres e belas, e outros, que agem como se fossem animadores de circo, acrobatas de buteco, e piadistas indecorosos, envaidecidos de não lerem livros, e de não gostar dos que os lêem ou escrevem – como diz o senador Mão Santa, ele prefere fazer duas horas de esteira a ler, de um livro, uma página inteira!

A história de Geraldo Pereira, este poeta longilíneo, espandongado e sem jeito, qual um Quixote dos trópicos, é um exemplo a ser exaltado e seguido. Vindo dos gerais da Bahia, à beira do São Francisco, para não morrer de fome, já que o velho Chico anda vasqueiro de peixes (até dos miúdos), veio, batendo alpercatas, pescar em águas goianas – como tantos de sua grei o fizeram, atravessando a Serra Geral, em caminhada heróica e sertaneja, que durava meses. Quando, ao atravessar a serra, os mais cansados perguntavam se Goiânia estava longe, alguém dizia: vamos apertar a alpercata que a capital está ali, bem pertinho. Pois é... pra que... um rapaz tão moço! Assim, como tantos outros heróis anônimos, Geraldo Pereira chegou, se instalou na Vila Nova, pátria da baianidade vindica, e viu que era bom. Viu que poderia ter aqui um futuro melhor do que poderia ter na terra em que nasceu. De bicicleta, pedalando sua magrela pelas ruas de Goiânia, fez-se vereador, mas logo viu que seus ideais estavam além do que a política poderia fazer, a não ser prometer sem cumprir, como a maioria dos políticos o fazem. Bandeou-se então para a poesia, e nesta nave vai muito bem, pescando peixes graúdos, em águas goianas, de mais dois ou três Estados do nordeste, e até em águas de Portugal.

Em uma mesa, bebericando e mordiscando delícias do ágape que o Sesc ofereceu ao poetariado tupiniquim, conversava com o poeta Valdivino Braz e Lamar Lamounier, sobre A caneta dourada, casa de vender e consertar canetas de classe, que houve na Goiânia antiga. Era um requinte ter uma Mon Blanc, uma Park 51. Conferia status e distinção a quem portava uma destas, mesmo sendo analfa de pai e mãe. Quando estragavam, Valbraz era o artífice que dava jeito, chegando até a fabricar peças das cobiçadas jóias, objeto do desejo de colecionadores. Quem matou a beleza e o requinte deste tempo?Quem trouxe a simplicidade barata e objetiva da Bic, que anda de bolso em bolso, sem dono que possa chamar de seu, e sem valer nem de um calango nem o seu pisca-pisca? Pior será quando matarem a arte de escrever.

Que tenha se perdido no tempo o prazer (ou o orgulho besta, admito) de ter uma caneta que seja jóia rara, foi uma perda e tanto. Uma aposentadoria da beleza, um destronar do talento. Collor não sacou de uma Bic para assinar o termo de posse e renúncia da presidência da República. A liturgia do cargo pedia uma Mont Blanc. Mesmo tendo ele feito o que fez, ou permitido que o fizessem. Já outros fazem titica na liturgia do cargo, agindo como Chapolins colorados, fazendo piada de assassinatos políticos, para divertir os irmãos Castro. Tristes, trágicos tempos sem canetas douradas!


Imagem retirada da Internet: Parker

Paulo Leminski - Poema


















Amor


Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


In.Caprichos & nrelaxos. Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.89.
Imagem retirada da Internet:amor meu grande amor


Ivan Junqueira - Poema














INÊS: O NOME


Inês é nome que se pronuncia
Para instigar ou seduzir prodígios,
é senha que as sibilas balbuciam
ao decifrar enigmas cabalísticos.

É mais do que isto: códice da língua,
raiz da fala, bulbo do lirismo.
É gênese da raça e do suplício,
arché do amor e substância prima.

É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retornar na antítese do epílogo.

E quem disser que Inês é apenas mito
- mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.


In. A rainha arcaica. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.114.
Imagem retirada da Internet: Pedro e Inês

Ana Cristina César - Poema












O tempo fecha



Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh! tão presa! Esses mosquitos
que não largam! Minhas saudades ensurdecidas
por cigarras! O que faço aqui no campo
declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não
sou mais, veja, não sou mais severa e ríspida:
agora sou profissional.


In. A teus pés. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.9.
Imagem retirada da Internet: Ana Cristina César

Carlos Nejar - Poema

















Contra a esperança


É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio de litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.


In.Os melhores poemas. Carlos Nejar. São Paulo: Global, 1984, p.46.
Imagem retirada da Internet: corra-tempo

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