Sentença social
Sentença social
Purgatório
Ruídos
Ainda na ativa,
a septuagenária professora,
que ficara surda,
aprendeu leitura labial.
Com a peste,
vieram as máscaras
e as restrições.
Foram-se as bocas
e a esperança.
Tentou telepatia,
em vão.
Perdeu o emprego,
e, debilitada,
morreu na fila do pão.
Era sexta-feira!.
Foto @franciscopernafilho
A lírica existencial de Maria Lúcia Gigonzac
A Revista Banzeiro traz a poesia de Maria Lucia Reis Duarte Gigonzac e ilustração do Artista Plástico e Arquiteto M.Cavalcanti, que gentilmente nos presenteou com os desenhos da séria "Linhas e Sombras" - caneta acrílico sobre papel. Os poemas aqui apresentados são inéditos e foram escritos em diversas épocas.
Maria Lúcia nasceu em 1947, em Icem (SP). Ainda criança, acompanhando os pais, mudou-se para Minas e, depois, para Goiás. Em Goiânia, fez o segundo grau e, logo após, começou um curso de física, na Universidade Católica. Em 1972, mudou-se para ilha da Gudalupe, Departamento francês na América Central, onde se casou, teve dois filhos. Naquela ilha, cursou francês e história da arte, foi quando começo a pintar. Ao cabo de quatro anos, mudou-se para a França metropolitana, terra que viu nascer sua filha caçula. Lá morou primeiramente em Bordeaux, depois em Créteil, em Rueil-Malmaison, até desaguar em Taverny, no Val d’Oise. No ano letivo de 78/79, na Universidade de Villetaneuse (Paris XI). Em 1980, trabalhou como redatora de um jornal português, A Ponte, editado na França. Transferiu-se para a Universidade de S. Saint-Denis (Paris VIII) onde fez um DEUG(diploma de estudos universitários gerais) de português. Logo após, começou o curso de Letras (francês). Fez o DEUG de francês, depois a licenciatura e,. em seguida, foi aceita para o mestrado em literatura francesa. Na França, estudou artes: desenho, aquarela, pastel e óleo sobre tela. Retornou ao Brasil, quando dedicou-se à pintura, ao ensino de francês, traduções, e, paralelamente, à literatura.
MEU MUNDO
Crédito: Pedro França/Agência Senado |
"Sem título" - Iberê Camargo |
A Revista Banzeiro, neste tempo de pandemia, traz, mais uma vez, a escrita precisa e a reflexão profunda de James Frederico Rocha Coelho, sem sombra de dúvidas, um dos melhores contistas brasileiros. Natural de Carolina – MA, James é formado em Letras e Direito. Em 1989, publicou o romance Quarto 16. O conto O Homem que não havia faz parte do livro Histórias Civilizadas. Goiânia: América, 2015. Logo após o conto, no final desta página, você poderá conhecer um pouco mais sobre o autor. A imagem que ilustra este conto é do artista Gaúcho Iberê Camargo.
O HOMEM QUE NÃO HAVIA
Os
homens são tão necessariamente loucos, que não ser louco significaria ser louco
de um outro tipo de loucura
Pascal
Essa história é
personalíssima e um capítulo breve mais definitivo em minha vida, como ouvinte
da vida que devo ser. Personalíssima porque tudo na gente que vem de nosso
silêncio pessoal e superlativo cria outros mundos paralelos, que nem por serem
paralelos deixam de alegrar ou causar dor, da dor funda de se saber que um
caminho, dobrado à direita, pela esquerda poderia ter seguido.
O relato me veio à memória
de uma conversa antiga, não recordo se o contador foi um amigo da escola ou um
conhecido qualquer de quem não posso mais lembrar – aconteceu quando começaram
a levantar os edifícios residenciais de Águas Claras. Depois da autorização da
prefeitura, a especulação imobiliária revolveu quase todo o imenso descampado
de vegetação rala e rasteira, marcando a terra com traços que formaram inúmeros
retângulos, onde mais tarde instalaram os postes de iluminação e abriram as
ruas. Nosso contador ouviu a história de um homem que trabalhava como vigilante
naquele aluvião de obras em construção. Conto a história como ouvi, ou acredito
que ouvi. Imagino, para meu conforto, quando lembro dela, que fora contada numa
noite de verão clara e tranqüila. O lugar e o tempo, também não recordo. Pode
ter sido nos bancos daqueles passeios de paralelepípedos onde os vizinhos de
bairro fazem caminhadas, ou posso tê-la ouvido enquanto bebia cerveja nas
noites barulhentas de nossa megalópole. Importante dizer, principalmente, é que
conto conforme ouvi.
“ O meu turno começava ao
meio-dia e terminava a meia-noite. Isso na segunda, na quarta e no sábado.
Terças e quintas, folgava. A guarita de trabalho era um cômodo estreito de
tabique. Na minúscula prateleira de madeirite dos fundos, um rádio e um filtro
d’água de barro. Eu sou um homem seco, de bochechas encovadas, e tenho trinta e
seis anos. No trabalho visto um macacão azul de brim ordinário, com a marca da
construtora estampada no peito e nas costas.
A primeira vez que o vi, ele
viera à obra acompanhado do engenheiro-chefe. Ele também era um homem seco, de
bochechas encovadas. Quanto a idade, não posso precisar, pois sempre fui um
péssimo fisionomista. Como eu, não era um homem bonito, e éramos diferentes
apenas no traje e na altura – eu era muito mais baixo. Com muita insistência e
por conta de um elogiável poder de persuasão, convenceu a incorporadora a lhe
vender um apartamento inacabado, num tempo em que isso não era usual. Mais exato dizer que faltava muito para a
conclusão das obras, e os apartamentos sequer tinham portas e janelas. Ele
apenas exigiu já instalados o vaso sanitário, a pia da cozinha, o chuveiro e
duas lâmpadas.
Mudou-se um mês depois para
um apartamento do primeiro andar, defronte à guarita de vigilância. Trouxe um
mobiliário franciscano e uma televisão ultrapassada. Aquele lugar, exceto de
segunda a sábado, era completamente ermo. O comércio estava distante e a cidade
em si, mais distante ainda. Todos nós, operários da obra, chegávamos ao
trabalho munidos de marmitinhas de papel alumínio, com a refeição do turno.
Depois da meia-noite, terminada a labuta na obra, o que restava era algum
remanescente e recalcitrante pássaro noturno ou o chiado do vento na vegetação
rasteira e ressequida, pequeno grande espetáculo que restava para assistir a
quem ali dormia em turnos de revezamentos. De tanto estar só e não ter com que
se ocupar, além de observar a vagarosa dança dos astros e a inquietude discreta
dos pássaros noturnos caçando comida, eu ouvia o rádio. Porém, com a mudança
daquele homem para o apartamento em frente, passei a observá-lo. Ele saía para
a cidade muito cedo, por volta das seis da manhã, e retornava no cair do dia,
sempre com um saco de papel com pães e os óculos dependurados do bolso da
camisa. Subia as escadas sem pressa, silencioso e às vezes cantando ou
assobiando. Enquanto ele tomava banho, cá de baixo ou o via da cintura para
cima, através do vão da parede de uma janela que ainda não havia. Quando o via
tomando banho no chuveiro improvisado no térreo, do lado de fora do edifício,
sempre com a mesma bermuda azul desgastada, não raro eu também sentia vontade
de tirar o macacão e tomar banho no meu chuveiro também improvisado no fundo da
guarita, tamanho o prazer que parecia lhe proporcionar aquela ducha fria de
final de tarde. Havia nele também a estranheza de não cumprimentar ninguém. Aos
poucos também passou a tratar com reserva e distância o engenheiro que lhe
facilitara a aquisição do imóvel.
Não mais que dois meses
depois, já não cumprimentava sequer o engenheiro e a impressão que dava era de
que não enxergava mais ninguém. Ao longe, à entrada do canteiro de obras, ele
aparecia à tardinha e percorria os quinhentos metros da trilha de cascalho
vermelho com a cabeça sempre erguida, como se todos estivéssemos ausentes.
Semanas depois, quando chegava ao seu apartamento, começou a falar sozinho,
cantar alto, esbravejar de vez em quando e gargalhar com freqüência. Vez ou
outra, na área dos pilotis do edifício inabitado, discutia consigo mesmo uma
miscelânea de assuntos, alguns hilários e inusitados. A sua indiferença à minha
existência e presença permitiu que aos poucos, e não abruptamente, num misto de
curiosidade e impertinência, eu me aproximasse quando ele descia para a área no
térreo. Eu ouvia as conversas que ele entabulava com pessoas que não havia, que
eu não via ou ouvia, ele interlocutor dele mesmo, com uma lúcida e estranha
convicção. Quando me entediavam o rádio ou o silêncio do lugar, eu subia as
escadas e, na área comum, ainda de tijolos descobertos, sentava ao lado da
porta que não havia e ouvia as conversas, os comentários com suas invisíveis
gentes, seres que eu suspeitava terem permanecido adormecidas e ocultas nele
mesmo. Quase sempre eram diálogos densos, com frases lógicas e bem situadas.
Com o tempo fui conhecendo e reconhecendo aqueles seres com quem ele conversava
e depois de algum tempo o rol daqueles nomes já me soava familiar – passei a
ter com ele, de minha parte, mesmo a distância, certa intimidade.
Uma dessas pessoas era uma
mulher de nome Verbena, esse nome anacrônico, um tanto implausível. Dos
comentários que ele fazia, estava claro que era sua irmã, que era baixa e
gorda, que ria muito, que era a irmã de sua preferência e que era quem ouvia
suas queixas, confissões e segredos. Ele deitava num sofá marrom com pinturas
de pássaros coloridos em cores fortes no tecido que recobria o encosto alto e
fofo e, vestindo calções largos e rindo com discrição, conversava com aquela
irmã que eu não via, mas que se cobria com um vestido leve e florido, de
organdi. Um dia, sério, falou dos problemas que enfrentara com o irmão que
chegaria dali a dois dias. Aquela irmã, porém, foi quem o acompanhou nos males
da saúde, algumas vezes ao pé da cama. Certa vez, ele, entubado, desacordou por
dois meses em uma UTI de hospital público. Aquela irmã o fazia se soltar e
desabafar todos os entreveros e choramingar os desencontros. Conversavam de
preferências culinárias, de trabalho, de dinheiro e de suas putarias; ela
também falava de suas putarias e namorados, e ele escutava com gosto e
paciência, gozando uma confiança que me parecia a ele tão cara e tão prazerosa.
Ele falava do casamento desfeito e lamentava a separação premeditada por muitos
e longos anos. Vez em quando declarava o amor que sentia por aquela irmã, que
mesmo longe, nunca estivera ausente. Riam com freqüência e lembravam os pais,
os avós, suas manias, suas neuroses, e das paranóias recorrentes da mãe, mas
também de tudo de bonito neles. Aqueles monólogos dialogados daquele homem com
a irmã ausente, denunciava a tormenta da distância física, a distância quase
sempre doída – das outras distâncias nem falo, pois aquela irmã nunca despertara
nele sentimentos ruins.
De outra vez, quando um
irmão seu de nome Cláudio chegou, irmão que somente ele enxergava, observei-o,
numa noite azul e límpida, dialogando seus monólogos ao pé da porta da cozinha.
Na verdade, ao pé de uma porta que não havia. A discussão com aquele irmão
denunciava que o irmão largara-se no mundo e levara quase todo o patrimônio da
família consigo. Traíra a todos e agora voltava adornado com roupas de luxo, de
marcas caríssimas, com um automóvel impagável, enquanto ele, prestes a ser
demitido, perambulava com pouco dinheiro no bolso. Dizia que sua mulher e seus
filhos também foram muito prejudicados pelo golpe aplicado pelo irmão.
Tripudiou sobre aquele irmão com palavras raivosas, mas isso não era o pior,
aquele fora o irmão preferido, fora desgraçadamente o irmão que habitara sua
casa anos e anos. Mas com todos os percalços daquele diálogo monologado, que só
é permitido a um homem só, ao final ele capitulou e, mão no ombro daquele irmão
que não havia, ele suspirou uma, duas vezes, calou por algum tempo, pensou
aquele pensamento que não sai da cabeça, exatamente, e perdoou. Todo
ressentimento deve ser moído e remoído em algum lugar, em algum momento, é a
praxe necessária do mundo. Após o perdão consentido, foi para o quarto e em poucos
minutos roncava um ronco altissonante, só franqueado aos que perdoam.
Nessa mesma noite azul e
limpa, levantou-se na madrugada para beber água da torneira, estava insone e
ansioso. Não demorou e outro alguém que não havia chegou ao apartamento, e eu constatei
isso porque ele balançou a cabeça e mexeu os olhos, como quem acompanha gestos
e conversa com alguém, conversa discreta sobre a vida dos outros. Em pouco
tempo tremia as mãos, os lábios e ajeitava sobre os ombros o lençol amarelecido
marcado pelo uso incessante e antigo, via-se que desejava pronunciar alguma
palavra, mas não conseguia, e no máximo murmurava palavras truncadas, que saíam
de sua boca quase cuspidas. Torcia as mãos, sentava, deitava, levantava, sempre
com os olhos postos no canto direito da sala, o olhar fixo naquele outro alguém
que não havia. A paz, o assovio, a displicência descompromissada e as
gargalhadas matutinas, às vezes diuturnas, deram lugar a gotas atormentadas de
suor que escorriam pela face encovada. Em seguida, por fim, ele falou: “ – Não
te esperava, não agora ! Pra dizer a verdade, não te esperava nunca mais. Mas
também pudera, não atentei para a solidão aos poucos acumulada em porções
pequenas, esparsas, que foram inundando os pequenos espaços diários de nossas
vidas, quando em certo momento eu acomodei-me a essa triste intimidade com a
mais bruta solidão. Um dia, descobri, houvera de estar refém de uma solidão
maior e definitiva, aquela que arranca, exila a gente de todas as gentes,
solidão espalhada, que ruge na amplidão particular de cada um – falar que
palavra, a quem ? Esta cidade admite qualquer espécie ou gênero de solidão,
pois ela está prenhe de homens e mulheres sós. No viaduto, ao lado do conjunto
de casas populares em que morávamos, eu sempre pressenti milhares de palavras à
mercê de serem ditas, desejadas de serem ditas, mas nunca foram ditas, e apenas
adejaram ao redor das pessoas, de suas cabeças, e flutuaram presas no escuro
interior de milhares de bocas, e jamais foram ou serão pronunciadas. Quando dei
conta dessa situação, arrependi-me do abandono que eu perpetrara contra nós e
senti a nostalgia grotesca e dolorosa das poucas e bestas palavras que eram
faladas vez em quando, ao longo dos longos dias. Era muito bom ! Não se tratava
de vaidade, nem sofisticação, nem mistério, ou de palavras inalcançáveis, mas
do compromisso com o descompromisso, que é próprio e privilégio que Deus deu a
esses seres microscópicos e desconhecidos, seres quase invisíveis que habitam o
ar que respiramos, ou moram em nossa pele ou no vão mais distante da terra ou
do mar, e que deles não se tem notícia ou conhecimento. Nesse tempo eu desejava
muita coisa e muita gente, e vivia na torre de vidro do desejo incauto, mas que
sabotava o homem simples, que não desejara um dia o brilho fugaz de existir a
existência transformada em espetáculo diário. O espetáculo estrelado pelo bobo
da corte de plantão. Desaprendera o fascínio, que deve ser a regra, mas só
sobrevive ao largo da solidão, perto dos outros, o que é sempre arriscado e
perigoso, mas fundamental. Desaprendera de sentar na mesa do terraço dos
fundos, olhando direto nos teus olhos,ouvir tua voz falar de um passeio ontem,
conviver no barulho úmido da chuvinha generosa e intermitente, barulhinho
aquoso no telhado marcado pelo lodo de anos – a substância da felicidade
possível, o sangue de uma convivência que algo ou alguém desconhecido tornara
possível, e digo assim porque sei que aqueles momentos se foram, fugiram, como
um determinado e fugaz aeroplano que, partindo, tivesse escrito pela letra de
Deus que jamais retornaria. Somente mais tarde veio-me a noção cruel de minha
inglória fragilidade, eu um náufrago que pouco antes do momento final recusasse
a ternura de um beijo, que pudesse ser o beijo simples, diário, mas definitivo.
Plantei pouco, plantamos pouco, algo que frutificasse. Fomos pouco ao cinema,
fomos pouco a lugares incertos. As cores do mundo são irresponsáveis, cor de
crepúsculo, bicho ou árvore, que tem a divina permissão de variar, sumamente
imprevisíveis. Rimos pouco de nós mesmos, de nossas vidas que passavam céleres
diante dos olhos do mundo. Celebramos pouco os companheiros de viagem. A terra
e o fogo ignoram as palavras, a água, sei bem, também ignora as palavras,
ignoram as artimanhas, as armadilhas que estão nelas palavras. A água, a terra
e o fogo seguem solenes, firmes, nos seus silenciosos passos cotidianos,
ignorando a memória e o inevitável desfecho pessoal de tudo.
Enfim, mesmo que não
consigas perdoar-me, eu próprio perdôo-me por ti, em teu lugar, e agora com
coragem exponho-me, miúdo e risível, como o resto, e sei que agora mereço esse
perdão, um pouquinho de paz, que garimpo dia após dia, noite após noite – agora
sim, sou autoridade delegada e constituída, artesão emérito para praticar o
ofício ou a arte de perdoar. Além disso, para mim que agora tenho a pia certeza
de ter compreendido alguma pequena coisa da vida, ainda compreensão pela
metade, mereço ser perdoado, o que não é arrogância, pois jamais recusarei amar
e celebrar o mundo, nada está incompleto quando se trata de amar e celebrar o
mundo. Se você acreditar em tudo isso, venha, aproxime-se, nos beijemos – vamos
agora passear, nesta noite, sem a hora, sem o jogo, sem as palavras, sem o
medo.”
Depois dessa longa fala
consigo mesmo, o homem desceu para a área comum do térreo e passeou de mãos
dadas com uma companheira que não havia. E pareceu-me que ela haveria de tê-lo
perdoado, pois na madrugada ele ainda passeava pelas ruas de cascalho, e estava
sereno.
Ele esteve ausente algum
tempo, talvez quinze dias ou um mês, não recordo ao certo. Senti sua falta. As
noites alongaram-se e um tédio morno e resignado invadiu a guarita. O rosto
triste da solidão é verdadeiro. Acordo às quatro da manhã, no canto do armário
de aço está a marmita de alumínio, brilhando. Os gestos e o modo de o corpo
mover-se e avançar são quase os mesmos. Minutos depois ocupo meio metro
quadrado do passeio público sob a estrutura de pré-moldado do ponto de ônibus,
onde encosto, quando posso. Sou gerente de depósito, o antigo almoxarife, nem
mesmo sei se ainda existirá esse nome no mundo corrente. Conheço de vista
alguns transeuntes, pois são vinte e oito anos nessa vida, percorrendo esse
mesmo trajeto urbano. Observo-os como eles me observam, com uma indiferença
compassiva e ao mesmo tempo mentirosa – não sou indiferente a ninguém. Que Deus
tenha piedade de todos nós, que vivemos em grupos, aos milhares, sem nos tocar
ou nos falar. Há mais de uma década encontro três ou quatro deles naquele ponto
de ônibus, a cada amanhecer de cada dia útil da cidade. Para nós, homens de
meia-idade da cidade, que trabalham, a vida parece esgotada, monumental
apresentação de teatro que se finda logo na abertura do pano e cujo enredo fala
que quase tudo permanece incompreendido. Não compreendi ainda, lato sensu, os
cheiros, as luzes, as peles de todas as diversas gentes – brancas, amarelas,
douradas, mestiças e suas misturas, nuances de correntes ora turvas, ora
aparentemente cristalinas, todas de prazer e dor, que não decifro e que, por
hábito, acontecem ao mesmo tempo. Mas considero importante, ainda, a convicção
inabalável de que faço tudo certo, embora chore escondido. Há anos não sonho
mais com vôos sobre ilhas desconhecidas ou sobre improváveis continentes. Vive
a meu lado uma mulher distante e filhos enfileirados, como num pelotão de
quartel, de quem me compadeço. Careço como nunca dos seres invisíveis e também
dos imaginários, pois do contrário esse sentido não terá sentido. Sinto vez em
quando, no meio da tarde, da manhã ou da noite, um clamor escondido por detrás
de anteparos, escondidos por outros anteparos, paredes escondendo paredes de
aposentos desconhecidos, um clamor por música, por alguma presença plena que
não fosse a presença daquele estranho condenado à condição de eterno estranho,
até o último dia. Orgasmo permanente num turbilhão que pudesse jazer num fundo
chão de tranqüilidade, o que quero. Encontro permanente, o que desejo. Nisso me
vejo sob o chuveiro de água farta, sentindo na alma o vento de maio, que
suspende gotículas de água por um instante, e elas brilham e elas volteiam e
fazem um balé suspenso no ar, antes que cheguem à superfície dura do chão. Elas
deviam permanecer suspensas, volteando e bailando, refrescadas e refrescando.
Lá embaixo o chão. Há muito fui atirado ao chão, e da leveza inicial agora
muito pouco. Acostumei com o chão, mesmo o riso pode propagar-se ao rés do
chão, o riso deve propagar-se ao rés do chão, é ali onde tem mais utilidade e
onde imita Deus. Não há controle quando chega o riso, sei disso, mas não
volteio nem bailo, vivo a insípida permanência regular de quem não morre e não
vive. Atentem para o importante, hoje sei chorar, mesmo que seja o choro do
menino que se despede da mão para nunca mais voltar, e isso é alguma coisa,
isso é muito.
Antes do retorno dele ao
prédio de apartamentos, dormi menos em casa e permaneci com mais assiduidade no
canteiro de obras. Justifiquei com horas extras. Ocupei pro bono turnos de
colegas e eles, silenciosos e agradecidos, não compreenderam a bonomia.
Contradição final, eu desejava ficar só.
E pela primeira vez, numa
noite fria de junho, enquanto o vento arrastava folhas secas, eu, de olhos
fechados, percebi-me encarcerado, litúrgico e inexorável ato de consumição. Dei
por mim que me consumi sol a sol, jamais dediquei a mim um afago sequer, estava
ocupado em talhar o homem adaptado, admirável e triste, lá no fundo. Afagos que
me permitiam eram somente os afagos do ególatra da cidade, mas não carecia
desse afago, carecia daquele que nem parece existir e quando menos se espera aparece
debaixo da fronha do travesseiro, da janela entreaberta ou do meio das pernas
da mulher, naquele instante iluminada. Queria e carecia do afago solto, acima
da ciência e das coisas, imenso, mas ao mesmo tempo imperceptível. Desejei,
soberbo, que o tempo não se dividisse em mim, que o mundo não aparecesse em
categorias. Afago de um tempo por inteiro, sublime, de um espaço por inteiro,
comum e perene, se Deus permitisse, mas Deus não permitiria.
À tardinha de um sábado ele
apareceu na curva da estrada de cascalho. Com ar de cansado, subiu para o
apartamento arrastando com dificuldade uma sacola de couro. Naquele mesmo dia,
a noite, subi para escutar seus monólogos dialogados, mas ele dormia
profundamente. No dia seguinte, quando a noite descia, da guarita ouvi sua voz.
Subi e fui surpreendido com a sala pequena do apartamento enfeitada: balões,
fadas, gnomos, anões e palhaços coloridos de papel e, ainda, sineta chinesa de
prata barata dependurada na porta de entrada e um bolo confeitado no centro da
sala, de um mau gosto californiano. Ele caminhava pra lá e pra cá, numa
inesperada alegria de tablado. Pedia calma e cuidado às crianças que não
haviam, e a quem ele chamava Pedro, Letícia. Uma delas, em especial, recebia de
sua parte um atento acompanhamento. Algum tempo depois ele armou uma câmera
fotográfica de tripé. Os flashes, em dúzias, alcançavam a todos do outro lado
da sala, enquadrando na luz repentina o bolo confeitado ao centro da mesa,
guiando o sopro e as mãos de uma criança que não havia, o Pedro. Anônimo,
participei da festa de Pedro, e só na madrugada, ao voltar à guarita,
enxerguei-me ao longe, distanciamento triste, onde agora estava alheio à minha
própria existência - um descompromisso, mas ao mesmo tempo permanecia na
responsabilidade com o mundo, porque considerava tudo ao meu redor, mesmo o que
estava distante e que não via, mas esse sentimento também era um misto de
irresponsabilidade e respeito com o seguimento dos acontecimentos – isso me
pareceu o mantra dos celerados, dos tomados daquela paixão que só o inferno
protege e Deus transforma em vida.
A lâmpada do quarto dele
permaneceu acesa a noite toda, eu a via através do vão de uma janela que não
existia, pendulando leste oeste, oeste leste – ânimos e desânimos. A lâmpada
dormiu acesa. Quando amanheceu procurei os companheiros que não haviam, mas não
encontrei, e mesmo que os tivesse encontrado, eles não falariam, não dariam as
mãos. Procurei aquele menino Pedro e desejei que fosse meu, mesmo sabendo que
não havia, mas não o alcancei, nem o vi. Permaneci só e andei pela estrada e
pelo descampado do cerrado.
Ele foi despejado dois meses
depois e, ainda no mesmo dia do despejo, sentado numa caixa de madeira, dessas
de feira para acondicionar frutas e verduras, jantou uma posta de peixe acompanhada
de uma porção de farinha seca. Serviu-se com despropositada e elegante
solenidade, estava sereno. Conversava em sussurros com um Anselmo que não
havia. Quem observasse bem, diria que estava fazendo a refeição à mesa do
palácio do governador.
Aquilo tudo, aqueles
acontecimentos, confundiram-me, uma garoa espessa, inexata, pensamentos
misturados, frágil definição do riso, parca sabedoria para entender a lágrima –
situação de não saber que se sabe, e se sabe muito bem, porque está guardado lá
no fundo da segunda alma, pois temos todos a segunda alma, de quem sabemos
muito pouco, ou temos pavor de saber. Nem mesmo o limite entre a razão privada,
medíocre e corriqueira, e a indecifrável loucura do mundo, cabia no meu
entendimento. No entanto conhecia bem dos desatinos da solidão urbana e alguns
poucos segredos dos homens da cidade.
Aos poucos fui capitulando e
talvez aproveitasse mais se não tivesse visto despropósito em reconhecer e
talvez aceitar, manso e desarmado de espírito, a minha insana razão privada diária,
guardando para mim o projeto de proteger e viver minha lúcida loucura
particular, sem estardalhaço, sem alcançar quem quer que seja, homens e coisas.
Obviedades também são verdadeiras, às vezes. Dessa lúcida loucura e dessa razão
privada de rotina, deveria carregá-las na bagagem, todos os dias, durante toda
a viagem, até o momento final, se final fosse. Confortava acreditar que a
demência estava na cidade, no espírito da cidade, a demência permitida e
controlada, e também a mais devastadora de todas, a demência útil, produtiva.
Minha negligência particular comigo mesmo era justificada pelos ganhos que só a
vida produtiva poderia me conceder, ganhos que eram o principal, como diziam.
Aquele homem, acredito,
houvera sido tomado de outro tipo de demência, a contrademência do paraíso.
Aquela contrademência substituta do álcool, do ópio, da metanfetamina, da
cocaína, do sexo, da oração, da poesia e da música. Aquela contrademência
talvez tivesse substituído seu jogo de azar, seu consumo, sua melancolia, todas
suas taras e todos seus vícios – perdão e aceitação. Não haveria de suportar de
outro modo que fosse. Mas estava só, ainda.
Nessa noite dormi em casa.
Descobri, à meia-noite, sob uma luz fraca, espalhados pelos dois cubículos da
casa, gente a quem eu negara o meu olhar mais cuidadoso ou mais sublime. Uma
mulher deitada, adormecida, com um braço pendente, crianças mal acomodadas sob
fuxicos coloridos. A enganosa sensação de conhecê-los, a reprise de nossas
vidas, na cabeça vídeos galopantes, entrecortados, salteados, confusos e
recorrentes, que um Deus trêmulo e inoperoso reproduzia sem interrupção,
projetando longos dias e longas noites que passaram. A mulher e as crianças
estavam em mim, desde o início, confundiam-se no mesmo itinerário. Quando clareasse
o dia talvez tivesse uma palavra doce, mesmo receosa que fosse pela falta de
hábito. Não negaria mais ao mundo a intenção trivial e simplória, a maneira
desinteressada, que contrapusesse nosso contundente veneno humano, que negasse
nossa condição principal. Nunca me contaram onde daria esse redemoinho.
Assim, muito dadivoso e
tomado dessa aura romântica e ingênua, optei pela loucura lúcida que também o
mundo oferece. Que, insensatos, consumíssemos a vida de mansinho, como num
palco improvável onde gastá-la fosse um ato heróico e glorioso, mistura de fé e
silencio.
Num momento ou noutro, tudo
isso soou falso, mas qualquer história ensina, sem nem mesmo precisar de
lucidez, se dela não se dispuser.
Aprendiz de quase nada, mas
qualquer pouquinho já me servia.
- * -
Sobre o autor
O que é feito da sombra? As manifestações do fantástico no conto “Luzeiro”, de James Frederico Rocha Coelho
Francisco Perna Filho; Heleno Godói de Sousa
Os Melhores livros de 2015
Entrevista com James Frederico Rocha Coelho
Leia o conto Luzeiro de James Frederico Rocha Coelho
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