Sentença social


Fora pego cheirando cocaína, ainda que negasse.
Levado para o presídio, durante anos cheirou o pó da cela, dos corredores e do pátio.
Foi o que disseram.
Um dia, sem que soubesse, deram-no por morto.
O diário local estampou na manchete:
Do pó ao pó.
Texto e fotografia: @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 


Purgatório


A moça colhendo a bosta do cão,
A mosca na boca da moça,
A sopa, sem mosca e sem pão,
O pão, sem mosca e sem boca.
O cão, se sentindo cuidado,
sente-se livre para borrar a calçada.
A moça, com total afeição,
contabiliza sua dura jornada.
Do outro lado, na antiga estação,
olhos cansados espiam assustados,
É o poeta esquálido, sem eira nem beira,
na fila da carne, exercitando a palavra esperança.

Desenho: caneta sobre guardanapo @franciscopernafilho

Francisco Perna Filho

 



Ruídos

Ainda na ativa,
a septuagenária professora,
que ficara surda,
aprendeu leitura labial.
Com a peste,
vieram as máscaras
e as restrições.
Foram-se as bocas
e a esperança.
Tentou telepatia,
em vão.
Perdeu o emprego,
e, debilitada,
morreu na fila do pão.
Era sexta-feira!.

Foto @franciscopernafilho 

POESIA

 




A lírica existencial de Maria Lúcia Gigonzac



A Revista Banzeiro traz a poesia de Maria Lucia Reis Duarte Gigonzac e ilustração do Artista Plástico e Arquiteto M.Cavalcanti, que gentilmente nos presenteou com os desenhos da séria "Linhas e Sombras" - caneta acrílico sobre papel. Os poemas aqui apresentados são inéditos e foram escritos em diversas épocas.

Maria Lúcia nasceu em 1947, em Icem (SP). Ainda criança, acompanhando os pais, mudou-se para Minas e, depois, para Goiás. Em Goiânia, fez o segundo grau e, logo após, começou um curso de física, na Universidade Católica. Em 1972, mudou-se para ilha da Gudalupe, Departamento francês na América Central, onde se casou, teve dois filhos. Naquela ilha, cursou francês e história da arte, foi quando começo a pintar. Ao cabo de quatro anos, mudou-se para a França metropolitana, terra que viu nascer sua filha caçula. Lá morou primeiramente em Bordeaux, depois em Créteil, em Rueil-Malmaison, até desaguar em Taverny, no Val d’Oise. No ano letivo de 78/79, na Universidade de Villetaneuse (Paris XI). Em 1980, trabalhou como redatora de um jornal português, A Ponte, editado na França. Transferiu-se para a Universidade de S. Saint-Denis (Paris VIII) onde fez um DEUG(diploma de estudos universitários gerais) de português. Logo após, começou o curso de Letras (francês). Fez o DEUG de francês, depois a licenciatura e,. em seguida, foi aceita para o mestrado em literatura francesa. Na França, estudou artes: desenho, aquarela, pastel e óleo sobre tela. Retornou ao Brasil, quando dedicou-se à pintura, ao ensino de francês, traduções, e, paralelamente, à literatura.


Com inúmeras exposições no Brasil e no exterior, M.Cavalcanti, que também é Arquiteto, destaca-se como um dos mais conceituados artistas plásticos contemporâneos do Estado de Goiás. Nasceu em Uberlândia- MG, em 1956, e reside em Goiânia, desde 1960. Já realizou dezenas de painéis, inclusive na sede nacional da OAB, em Brasília, além de esculturas e murais. Obras de sua autoria compõem acervos, entre outros, da University of Wyoming Art Museum, em Laramie (Estados Unidos); Banco Interamericanos de Desenvolvimento BID, em Brasília; Palácio das Esmeraldas Goiânia; Unesco, no Rio de Janeiro; Museu de Arte de Goiânia; Fundação Jaime Câmara e Fundação Cultural de Brasília. Participou de exposições nos Estados Unidos, França, Goiânia, Brasília, Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte.



 MEU MUNDO



De sonho e fantasia o mundo eu revesti;
Edênico jardim, arco-íris de cores,
Campina verdejante onde a viver mil flores
Dançando sob a brisa, a sorrir entre si.

Riachos de cristal farfalham a correr;
Adejam colibris e borboletas voam 
N'amplos panapanãs canções aves entoam
Com plumas de leveza as asas a bater.

D'Aurora ouro em pó lá jorram sobre os campos
Centelham do orvalho, em gotas, diamantes,
E no cair da noite esvoejam cintilantes
Em bandos céus afora, a faiscar, pirilampos!

Imperecível mundo, em beleza e harmonia
Quimérica visão de sonho e fantasia.

Gyn, em 2020





ESTRADA DA VIDA

Vinhas por onde eu ia, em mesma estrada,
Teu fardo era de dor, desilusão.
A tua fronte curvada era sulcada, 
Estampando tristeza e solidão.

Eu, porém, ia alegre em minha senda,
Vendo-a bordada em brilho e vastidão
Contente prossegui, e em oferenda
Levei minha juventude e o coração.

E ao regressar de tão longa jornada,
Perdera no caminho as vaidades,
Como o teu, meu semblante era marcado

Tinha eu também a face maltratada
Pelas rodas do tempo e as saudades
Perdidas n'algum canto do passado.

Gyn, 2017








SER DE NÉVOA

Quisera estar no infinito
De nebulosas, estrelas,
Pois que não posso retê-las
No meu espaço restrito

E ser só brilho e leveza
Fagulhas do firmamento
Livre como um pensamento
De harmonia e de pureza.

Viver no vácuo silente,
Nunca mais sentir saudade
Ser só de luz, sem presente,
Sem passado e sem idade.

Ser de névoa novamente
Por toda a eternidade!

Gyn, 2016.





HORAS AMARGAS

O amargo das horas amargas
Que fica na boca.
Escondido atrás do sorriso
Estampado no rosto,
Disfarçando o gosto,
Um gosto de fel.

Onde o mel?

Onde a leve doçura
Dos dias de encanto?

Onde encontrar um tanto
Por pouco que seja
Da cereja o gosto?

Ou um amargo doce,
Uma tristeza alegre
Por pouco que fosse!




MARCAS QUE FICAM

Essa marca que ficou no rosto
Reflete o desgosto
Fechado no  peito,
Escondido, abafado,

Qual vaga bravia
A rebentar sombria
Apagando o farol,
esboroando a rocha
e sempre a voltar.

Sempre a retornar
sem ter alvedrio,
mesmo que fugidio,
sem poder parar.





VIDA: UM SÓ DIA

Logo ao romper d'aurora o fulgurante dia
Vestido de Esperança, em cores e perfumes,
Esparzindo no mundo o canto e a alegria,
Radiante é a manhã, sem mágoas e queixumes.

O sol a pino vai, mas 'inda é bela a tarde,
Envolta toda em seda, ornada em pedraria
Tomada de ilusão, em desejo ela arde;
Ter o mundo a seus pés, por certo gostaria.

Mas o sol tão depressa afunda-se no Oeste,
E o dia vai morrendo em lânguidos suspiros;
Escuro é seu véu, negra mortalha veste,
Envolve-o triste bruma; o céu lhe oferta círios.

Esperança e ilusão lá jazem enterradas,
Silêncio e solidão é o que restou, mais nada.






AONDE VAIS?

Aonde vai o amor que
não escolhe findar,
 nem mesmo deixar para trás
um sorriso. Nem deixar um só beijo,
o beijo que era de mel,
 mesmo se tornado amargo
com gosto de fel
 eu o aceitaria
 em lugar do adeus.
Seu vazio deixado, lacrado,
enchendo o baú de recordações
que as rodas do tempo, como monções
colheram e reduziram a pó.

Por que fostes em náufrago
no barco da vida, se a senda é a mesma
para todo vivente, 
que a dada por chão, 
No forçado caminho,
Ladeado de espinhos,
Sem dele sair.
Sem ter alvedrio
Mesmo que fugidio.
Levado tu fostes
por mãos traiçoeiras,
Por mãos ceifadeiras.
Deixastes um vazio,
Na casa, no mundo.
Partistes, amor!  

O Tempo da Memória - Adalgisa Nolêto Perna


 



Sobre ser mulher...


Quero dizer que aos  53 anos, que hoje tenho, me sinto jovem, leve e solta! Mais ou menos... porque ser mulher nesta sociedade é  uma condição de plena resistência!  Resistência por ter de se (re)fazer  representada constantemente, sempre vista e ouvida! D. Adalgisa teve a felicidade de formar uma família de maioria feminina: Márcia, Magada, Magaly, Madel, Marja e, lógico, ela: Adalgisa! Manoel, Franciscos (02) e Maurício são os outros que compõem essa linda família! Mas o fato de ser composta da maioria feminina me enche de orgulho por poder assinalar o que é o empoderamento feminino: mulheres livres, resistentes (ao seu modo) e conscientes de sua identidade feminina em uma sociedade patriarcal. D. Adalgisa traz essa resistência em suas histórias contadas e, nessa sociedade de classe, de relações de poder, quero dizer do orgulho que sinto por ter minha sogra, aos quase 90 anos, lançando um livro. Uma obra que reflete seus dilemas cotidianos e , ao mesmo tempo, suas reflexões, sempre coerentes sobre  a vida.  Uma mulher que merece ser reconhecida pela sua capacidade de reflexão e de crítica a este mundo desigual, preconceituoso e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, acolhedor! A vida, doída, nos faz ser melhores!  Obrigada, D. Adalgisa pelas suas palavras!

Rosana Carneiro Tavares
Mestre e Doutora em Psicologia
Professora da PUC - Goiás


Resenha


"Tempo da Memória: estas palavras eu guardei para ti" reflete bem a sua trajetória, o seu olhar e criatividade, por isso é que o livro se constitui híbrido: poesia, crônica, contos, memória, tudo junto compondo um passado de muitas lutas e glórias. A memória refazendo os caminhos de uma genealogia, trazendo os fatos reais, mas também o ficcional, o que demonstra o seu poder criativo, sua atenção aos acontecimentos, ao vivido. Uma trajetória belíssima.

Dividido em três parte, o livro na sua organização contempla a Memória, Contemporaneidade, Velhice.  Escrito por uma mulher, aos quase 90 anos de vida, este livro na sua estrutura, nas epígrafes que traz, intertextualiza com Lygia Fagundes Teles, Clarice Lispector e Cora Coralina, mulheres brilhantes das nossas letras.

Na Primeira Parte, Memória, Adalgisa traz textos que refazem a trajetória de sua família: a origem paterna e materna; a ação pioneira do seu pai, Antônio Pinheiro Nolêto, e de sua mãe, Euzébia Teixeira Nolêto, em Miracema do Tocantins, e sua trajetória épica no Garimpo dos Piaus e em outros garimpos; o mergulho na densidade do sertão goiano (hoje Tocantins), o comércio de cristais e ouro, a fé inabalável de Euzébia, sua mãe, e a tenacidade e intrepidez de Antônio Pinheiro Nolêto, seu pai, em busca de melhores dias para a família, cujo propósito maior era a educação dos filhos.

Na segunda Parte, Contemporaneidade, reflete sobre temas atuais: as agruras provocadas pela Covid-19: perdas, danos e o medo que se abateu sobre todos nós. Reflete, ainda, sobre o papel da mulher na sociedade. Aproveita para falar, mais uma vez, sobre Miracema, desta vez nas suas Bodas de Ouro, e, em outra crônica, diria artigo de opinião, compara a cidade atual com a Miracema do passado.

Na Terceira  e última Parte, a Velhice, Adalgisa reflete sobre a sua vida, sobre perdas e ganhos. Fala do sofrimento de quando perdeu a visão de um olho e de como isso afetou sua vida intelectual. Em meio a tantas histórias, nos dá a conhecer uma história comovente "Se os gatos falassem", que serve de metáfora para o amor incondicional das mães.[...]Aborda temas polêmicos, como o abandono familiar e perdas, quando homenageia a irmã querida, Isabel Teixeira Nolêto, falecida recentemente.

Este livro nos vem como testemunho de alguém que viu nascer Miracema: o pioneirismo dos seus pais, histórias de uma família, de uma cidade, de um povo, com o seu rio e seus barcos. Neste livro, pode se saber um pouco da história de todos nós, da nossa amada cidade, com seu começo, seu desenvolvimento, até a contemporaneidade.


Francisco Perna Filho
Mestre e Doutor em Literatura


Congresso Nacional | Fachada do Congresso Nacional, a sede d… | Flickr
Crédito: Pedro França/Agência Senado



SERÁS MINISTRO



Carlos Drummond de Andrade




— Esse vai ser ministro — sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu.
— E você, com esse ordenado mixo de servente, tem lá poder pra fazer
nosso filho ministro? — duvidou a mãe.
— Então, só porque meu ordenado é mixo ele não pode ser ministro? A Rádio
Nacional deu que Abraão Lincoln trabalhava de cortar lenha no mato e chegou a
presidente dos Estados Unidos.
— Isso foi nos Estados Unidos.
— E daí? Nem eu estou querendo tanto pra ele. Só quero uma de ministro.
— Tonzinho, deixa isso pra lá.
— Pra começar, a gente convida o ministro pra padrinho dele.
— O ministro não vai aceitar.
— Não vai por quê? Trabalho no gabinete há dois anos.
— Ele é muito importante, filho.
— Por isso mesmo. Com padrinho importante, o garotinho começa logo a ser
importante.
— O ministro é tão ocupado, você mesmo diz. Vê lá se tem tempo pra
batizar filho de pobre.
— Pois sim. Ele me trata com toda a consideração, de igual pra igual. Hoje
mesmo eu faço o convite.
Fez. O ministro não pôde comparecer, mas enviou representante. Era quase
a mesma coisa. Na hora de dizer o nome do menino, o pai não vacilou; disse bem
sonoro:
— Ministro.
— Como? — estranhou o padre.
— Ministro, sim senhor.
A mulher ia atalhar: “Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente
combinou?”, mas era tarde.
No cartório, também estranharam:
— Ministro por quê?
— Porque eu escolhi. Acho lindo.
— Não é nome próprio.
— Pois eu cá acho muito próprio. Não tem aí uma família chamada
Ministério, aliás com pessoas distintas, médicos, dentistas etc.?
— Tem.
— Pois então. Meu filho é Ministro, só isso. Ministro Alves da Silva, futuro
cidadão útil à pátria. Tem alguma coisa demais?
O garoto registrou-se. Cresceu. Na escola, a princípio achavam-lhe graça no
nome. Parecia apelido. Depois, o costume. Há nomes mais estranhos. Ministro
não era o primeiro da classe, também não foi dos últimos.
Já moço, o leque das opções não se abriu para ele. Entre o ofício sem brilho
e o andar térreo da burocracia, acabou sendo, como o pai, servente de
repartição. Promovido a contínuo.
— Eu não disse? — festejou o pai. — Começou a subir.
O máximo que subiu foi trabalhar no gabinete do ministro.
— Ministro, o senhor ministro está chamando.
— Ministro, já providenciou o cafezinho do senhor ministro?
— Sabe quem telefonou pra você, Ministro? A senhora do senhor ministro.
Diz que você prometeu ir lá consertar umas goteiras e esqueceu.
— Ministro! Roncando na hora do expediente?!
Começaram os equívocos:
— Telefonema para o Ministro.
— Qual? O Ministro ou o senhor ministro?
— Esse Ministro é um cretino! Me fez esperar uma hora nesta poltrona!
— Perdão, deputado, o senhor está ofendendo o senhor ministro.
— Eu? Eu? Estou me referindo a esse animal, esse…
Até que se apurasse que o animal era Ministro, o contínuo — que confusão!
O ministro de Estado, ciente da confusão, recomendou ao assessor:
— Faça esse homem trocar de nome.
— Impossível, senhor ministro. É o seu título de honra.
— Então suma com ele da minha vista.
Mandaram-no para uma vaga repartição de vago departamento. Queixou-se
ao pai, aposentado, que isso de se chamar Ministro não conduz a grandes coisas e
pode até atrasar a vida.
— Ora, meu filho, hoje no bueiro, amanhã no Pão de Açúcar. E você não
tem de que se queixar. Num momento em que tanta gente importante sua a
camisa pra ser ministro, e fica olhando pro céu pra ver se baixa um signo do
astral, você já é, você sempre foi Ministro, de nascença! de direito! E não
depende de governo nenhum pra continuar a ser, até a morte!
Abraçaram-se, chorando.

James Frederico Rocha Coelho

ibere-camargo
"Sem título"   - Iberê Camargo 

A Revista Banzeiro, neste tempo de pandemia, traz, mais uma vez, a escrita precisa e a reflexão profunda de James Frederico Rocha Coelho, sem sombra de dúvidas, um dos melhores contistas brasileiros. Natural de Carolina – MA, James é formado em Letras e Direito. Em 1989, publicou o romance Quarto 16. O conto O Homem que não havia faz parte do livro Histórias Civilizadas. Goiânia: América, 2015. Logo após o conto, no final desta página, você poderá conhecer um pouco mais sobre o autor. A imagem que ilustra este conto é do artista Gaúcho Iberê Camargo. 


                                                                                                        
   O HOMEM QUE NÃO HAVIA



Os homens são tão necessariamente loucos, que não ser louco significaria ser louco de um outro tipo de loucura
Pascal
          
                                                                                                                                                                                                                         
Essa história é personalíssima e um capítulo breve mais definitivo em minha vida, como ouvinte da vida que devo ser. Personalíssima porque tudo na gente que vem de nosso silêncio pessoal e superlativo cria outros mundos paralelos, que nem por serem paralelos deixam de alegrar ou causar dor, da dor funda de se saber que um caminho, dobrado à direita, pela esquerda poderia ter seguido.
O relato me veio à memória de uma conversa antiga, não recordo se o contador foi um amigo da escola ou um conhecido qualquer de quem não posso mais lembrar – aconteceu quando começaram a levantar os edifícios residenciais de Águas Claras. Depois da autorização da prefeitura, a especulação imobiliária revolveu quase todo o imenso descampado de vegetação rala e rasteira, marcando a terra com traços que formaram inúmeros retângulos, onde mais tarde instalaram os postes de iluminação e abriram as ruas. Nosso contador ouviu a história de um homem que trabalhava como vigilante naquele aluvião de obras em construção. Conto a história como ouvi, ou acredito que ouvi. Imagino, para meu conforto, quando lembro dela, que fora contada numa noite de verão clara e tranqüila. O lugar e o tempo, também não recordo. Pode ter sido nos bancos daqueles passeios de paralelepípedos onde os vizinhos de bairro fazem caminhadas, ou posso tê-la ouvido enquanto bebia cerveja nas noites barulhentas de nossa megalópole. Importante dizer, principalmente, é que conto conforme ouvi.
“ O meu turno começava ao meio-dia e terminava a meia-noite. Isso na segunda, na quarta e no sábado. Terças e quintas, folgava. A guarita de trabalho era um cômodo estreito de tabique. Na minúscula prateleira de madeirite dos fundos, um rádio e um filtro d’água de barro. Eu sou um homem seco, de bochechas encovadas, e tenho trinta e seis anos. No trabalho visto um macacão azul de brim ordinário, com a marca da construtora estampada no peito e nas costas.
A primeira vez que o vi, ele viera à obra acompanhado do engenheiro-chefe. Ele também era um homem seco, de bochechas encovadas. Quanto a idade, não posso precisar, pois sempre fui um péssimo fisionomista. Como eu, não era um homem bonito, e éramos diferentes apenas no traje e na altura – eu era muito mais baixo. Com muita insistência e por conta de um elogiável poder de persuasão, convenceu a incorporadora a lhe vender um apartamento inacabado, num tempo em que isso não era usual.  Mais exato dizer que faltava muito para a conclusão das obras, e os apartamentos sequer tinham portas e janelas. Ele apenas exigiu já instalados o vaso sanitário, a pia da cozinha, o chuveiro e duas lâmpadas.
Mudou-se um mês depois para um apartamento do primeiro andar, defronte à guarita de vigilância. Trouxe um mobiliário franciscano e uma televisão ultrapassada. Aquele lugar, exceto de segunda a sábado, era completamente ermo. O comércio estava distante e a cidade em si, mais distante ainda. Todos nós, operários da obra, chegávamos ao trabalho munidos de marmitinhas de papel alumínio, com a refeição do turno. Depois da meia-noite, terminada a labuta na obra, o que restava era algum remanescente e recalcitrante pássaro noturno ou o chiado do vento na vegetação rasteira e ressequida, pequeno grande espetáculo que restava para assistir a quem ali dormia em turnos de revezamentos. De tanto estar só e não ter com que se ocupar, além de observar a vagarosa dança dos astros e a inquietude discreta dos pássaros noturnos caçando comida, eu ouvia o rádio. Porém, com a mudança daquele homem para o apartamento em frente, passei a observá-lo. Ele saía para a cidade muito cedo, por volta das seis da manhã, e retornava no cair do dia, sempre com um saco de papel com pães e os óculos dependurados do bolso da camisa. Subia as escadas sem pressa, silencioso e às vezes cantando ou assobiando. Enquanto ele tomava banho, cá de baixo ou o via da cintura para cima, através do vão da parede de uma janela que ainda não havia. Quando o via tomando banho no chuveiro improvisado no térreo, do lado de fora do edifício, sempre com a mesma bermuda azul desgastada, não raro eu também sentia vontade de tirar o macacão e tomar banho no meu chuveiro também improvisado no fundo da guarita, tamanho o prazer que parecia lhe proporcionar aquela ducha fria de final de tarde. Havia nele também a estranheza de não cumprimentar ninguém. Aos poucos também passou a tratar com reserva e distância o engenheiro que lhe facilitara a aquisição do imóvel.


Não mais que dois meses depois, já não cumprimentava sequer o engenheiro e a impressão que dava era de que não enxergava mais ninguém. Ao longe, à entrada do canteiro de obras, ele aparecia à tardinha e percorria os quinhentos metros da trilha de cascalho vermelho com a cabeça sempre erguida, como se todos estivéssemos ausentes. Semanas depois, quando chegava ao seu apartamento, começou a falar sozinho, cantar alto, esbravejar de vez em quando e gargalhar com freqüência. Vez ou outra, na área dos pilotis do edifício inabitado, discutia consigo mesmo uma miscelânea de assuntos, alguns hilários e inusitados. A sua indiferença à minha existência e presença permitiu que aos poucos, e não abruptamente, num misto de curiosidade e impertinência, eu me aproximasse quando ele descia para a área no térreo. Eu ouvia as conversas que ele entabulava com pessoas que não havia, que eu não via ou ouvia, ele interlocutor dele mesmo, com uma lúcida e estranha convicção. Quando me entediavam o rádio ou o silêncio do lugar, eu subia as escadas e, na área comum, ainda de tijolos descobertos, sentava ao lado da porta que não havia e ouvia as conversas, os comentários com suas invisíveis gentes, seres que eu suspeitava terem permanecido adormecidas e ocultas nele mesmo. Quase sempre eram diálogos densos, com frases lógicas e bem situadas. Com o tempo fui conhecendo e reconhecendo aqueles seres com quem ele conversava e depois de algum tempo o rol daqueles nomes já me soava familiar – passei a ter com ele, de minha parte, mesmo a distância, certa intimidade.
Uma dessas pessoas era uma mulher de nome Verbena, esse nome anacrônico, um tanto implausível. Dos comentários que ele fazia, estava claro que era sua irmã, que era baixa e gorda, que ria muito, que era a irmã de sua preferência e que era quem ouvia suas queixas, confissões e segredos. Ele deitava num sofá marrom com pinturas de pássaros coloridos em cores fortes no tecido que recobria o encosto alto e fofo e, vestindo calções largos e rindo com discrição, conversava com aquela irmã que eu não via, mas que se cobria com um vestido leve e florido, de organdi. Um dia, sério, falou dos problemas que enfrentara com o irmão que chegaria dali a dois dias. Aquela irmã, porém, foi quem o acompanhou nos males da saúde, algumas vezes ao pé da cama. Certa vez, ele, entubado, desacordou por dois meses em uma UTI de hospital público. Aquela irmã o fazia se soltar e desabafar todos os entreveros e choramingar os desencontros. Conversavam de preferências culinárias, de trabalho, de dinheiro e de suas putarias; ela também falava de suas putarias e namorados, e ele escutava com gosto e paciência, gozando uma confiança que me parecia a ele tão cara e tão prazerosa. Ele falava do casamento desfeito e lamentava a separação premeditada por muitos e longos anos. Vez em quando declarava o amor que sentia por aquela irmã, que mesmo longe, nunca estivera ausente. Riam com freqüência e lembravam os pais, os avós, suas manias, suas neuroses, e das paranóias recorrentes da mãe, mas também de tudo de bonito neles. Aqueles monólogos dialogados daquele homem com a irmã ausente, denunciava a tormenta da distância física, a distância quase sempre doída – das outras distâncias nem falo, pois aquela irmã nunca despertara nele sentimentos ruins.
De outra vez, quando um irmão seu de nome Cláudio chegou, irmão que somente ele enxergava, observei-o, numa noite azul e límpida, dialogando seus monólogos ao pé da porta da cozinha. Na verdade, ao pé de uma porta que não havia. A discussão com aquele irmão denunciava que o irmão largara-se no mundo e levara quase todo o patrimônio da família consigo. Traíra a todos e agora voltava adornado com roupas de luxo, de marcas caríssimas, com um automóvel impagável, enquanto ele, prestes a ser demitido, perambulava com pouco dinheiro no bolso. Dizia que sua mulher e seus filhos também foram muito prejudicados pelo golpe aplicado pelo irmão. Tripudiou sobre aquele irmão com palavras raivosas, mas isso não era o pior, aquele fora o irmão preferido, fora desgraçadamente o irmão que habitara sua casa anos e anos. Mas com todos os percalços daquele diálogo monologado, que só é permitido a um homem só, ao final ele capitulou e, mão no ombro daquele irmão que não havia, ele suspirou uma, duas vezes, calou por algum tempo, pensou aquele pensamento que não sai da cabeça, exatamente, e perdoou. Todo ressentimento deve ser moído e remoído em algum lugar, em algum momento, é a praxe necessária do mundo. Após o perdão consentido, foi para o quarto e em poucos minutos roncava um ronco altissonante, só franqueado aos que perdoam.
Nessa mesma noite azul e limpa, levantou-se na madrugada para beber água da torneira, estava insone e ansioso. Não demorou e outro alguém que não havia chegou ao apartamento, e eu constatei isso porque ele balançou a cabeça e mexeu os olhos, como quem acompanha gestos e conversa com alguém, conversa discreta sobre a vida dos outros. Em pouco tempo tremia as mãos, os lábios e ajeitava sobre os ombros o lençol amarelecido marcado pelo uso incessante e antigo, via-se que desejava pronunciar alguma palavra, mas não conseguia, e no máximo murmurava palavras truncadas, que saíam de sua boca quase cuspidas. Torcia as mãos, sentava, deitava, levantava, sempre com os olhos postos no canto direito da sala, o olhar fixo naquele outro alguém que não havia. A paz, o assovio, a displicência descompromissada e as gargalhadas matutinas, às vezes diuturnas, deram lugar a gotas atormentadas de suor que escorriam pela face encovada. Em seguida, por fim, ele falou: “ – Não te esperava, não agora ! Pra dizer a verdade, não te esperava nunca mais. Mas também pudera, não atentei para a solidão aos poucos acumulada em porções pequenas, esparsas, que foram inundando os pequenos espaços diários de nossas vidas, quando em certo momento eu acomodei-me a essa triste intimidade com a mais bruta solidão. Um dia, descobri, houvera de estar refém de uma solidão maior e definitiva, aquela que arranca, exila a gente de todas as gentes, solidão espalhada, que ruge na amplidão particular de cada um – falar que palavra, a quem ? Esta cidade admite qualquer espécie ou gênero de solidão, pois ela está prenhe de homens e mulheres sós. No viaduto, ao lado do conjunto de casas populares em que morávamos, eu sempre pressenti milhares de palavras à mercê de serem ditas, desejadas de serem ditas, mas nunca foram ditas, e apenas adejaram ao redor das pessoas, de suas cabeças, e flutuaram presas no escuro interior de milhares de bocas, e jamais foram ou serão pronunciadas. Quando dei conta dessa situação, arrependi-me do abandono que eu perpetrara contra nós e senti a nostalgia grotesca e dolorosa das poucas e bestas palavras que eram faladas vez em quando, ao longo dos longos dias. Era muito bom ! Não se tratava de vaidade, nem sofisticação, nem mistério, ou de palavras inalcançáveis, mas do compromisso com o descompromisso, que é próprio e privilégio que Deus deu a esses seres microscópicos e desconhecidos, seres quase invisíveis que habitam o ar que respiramos, ou moram em nossa pele ou no vão mais distante da terra ou do mar, e que deles não se tem notícia ou conhecimento. Nesse tempo eu desejava muita coisa e muita gente, e vivia na torre de vidro do desejo incauto, mas que sabotava o homem simples, que não desejara um dia o brilho fugaz de existir a existência transformada em espetáculo diário. O espetáculo estrelado pelo bobo da corte de plantão. Desaprendera o fascínio, que deve ser a regra, mas só sobrevive ao largo da solidão, perto dos outros, o que é sempre arriscado e perigoso, mas fundamental. Desaprendera de sentar na mesa do terraço dos fundos, olhando direto nos teus olhos,ouvir tua voz falar de um passeio ontem, conviver no barulho úmido da chuvinha generosa e intermitente, barulhinho aquoso no telhado marcado pelo lodo de anos – a substância da felicidade possível, o sangue de uma convivência que algo ou alguém desconhecido tornara possível, e digo assim porque sei que aqueles momentos se foram, fugiram, como um determinado e fugaz aeroplano que, partindo, tivesse escrito pela letra de Deus que jamais retornaria. Somente mais tarde veio-me a noção cruel de minha inglória fragilidade, eu um náufrago que pouco antes do momento final recusasse a ternura de um beijo, que pudesse ser o beijo simples, diário, mas definitivo. Plantei pouco, plantamos pouco, algo que frutificasse. Fomos pouco ao cinema, fomos pouco a lugares incertos. As cores do mundo são irresponsáveis, cor de crepúsculo, bicho ou árvore, que tem a divina permissão de variar, sumamente imprevisíveis. Rimos pouco de nós mesmos, de nossas vidas que passavam céleres diante dos olhos do mundo. Celebramos pouco os companheiros de viagem. A terra e o fogo ignoram as palavras, a água, sei bem, também ignora as palavras, ignoram as artimanhas, as armadilhas que estão nelas palavras. A água, a terra e o fogo seguem solenes, firmes, nos seus silenciosos passos cotidianos, ignorando a memória e o inevitável desfecho pessoal de tudo.
Enfim, mesmo que não consigas perdoar-me, eu próprio perdôo-me por ti, em teu lugar, e agora com coragem exponho-me, miúdo e risível, como o resto, e sei que agora mereço esse perdão, um pouquinho de paz, que garimpo dia após dia, noite após noite – agora sim, sou autoridade delegada e constituída, artesão emérito para praticar o ofício ou a arte de perdoar. Além disso, para mim que agora tenho a pia certeza de ter compreendido alguma pequena coisa da vida, ainda compreensão pela metade, mereço ser perdoado, o que não é arrogância, pois jamais recusarei amar e celebrar o mundo, nada está incompleto quando se trata de amar e celebrar o mundo. Se você acreditar em tudo isso, venha, aproxime-se, nos beijemos – vamos agora passear, nesta noite, sem a hora, sem o jogo, sem as palavras, sem o medo.”
Depois dessa longa fala consigo mesmo, o homem desceu para a área comum do térreo e passeou de mãos dadas com uma companheira que não havia. E pareceu-me que ela haveria de tê-lo perdoado, pois na madrugada ele ainda passeava pelas ruas de cascalho, e estava sereno.
Ele esteve ausente algum tempo, talvez quinze dias ou um mês, não recordo ao certo. Senti sua falta. As noites alongaram-se e um tédio morno e resignado invadiu a guarita. O rosto triste da solidão é verdadeiro. Acordo às quatro da manhã, no canto do armário de aço está a marmita de alumínio, brilhando. Os gestos e o modo de o corpo mover-se e avançar são quase os mesmos. Minutos depois ocupo meio metro quadrado do passeio público sob a estrutura de pré-moldado do ponto de ônibus, onde encosto, quando posso. Sou gerente de depósito, o antigo almoxarife, nem mesmo sei se ainda existirá esse nome no mundo corrente. Conheço de vista alguns transeuntes, pois são vinte e oito anos nessa vida, percorrendo esse mesmo trajeto urbano. Observo-os como eles me observam, com uma indiferença compassiva e ao mesmo tempo mentirosa – não sou indiferente a ninguém. Que Deus tenha piedade de todos nós, que vivemos em grupos, aos milhares, sem nos tocar ou nos falar. Há mais de uma década encontro três ou quatro deles naquele ponto de ônibus, a cada amanhecer de cada dia útil da cidade. Para nós, homens de meia-idade da cidade, que trabalham, a vida parece esgotada, monumental apresentação de teatro que se finda logo na abertura do pano e cujo enredo fala que quase tudo permanece incompreendido. Não compreendi ainda, lato sensu, os cheiros, as luzes, as peles de todas as diversas gentes – brancas, amarelas, douradas, mestiças e suas misturas, nuances de correntes ora turvas, ora aparentemente cristalinas, todas de prazer e dor, que não decifro e que, por hábito, acontecem ao mesmo tempo. Mas considero importante, ainda, a convicção inabalável de que faço tudo certo, embora chore escondido. Há anos não sonho mais com vôos sobre ilhas desconhecidas ou sobre improváveis continentes. Vive a meu lado uma mulher distante e filhos enfileirados, como num pelotão de quartel, de quem me compadeço. Careço como nunca dos seres invisíveis e também dos imaginários, pois do contrário esse sentido não terá sentido. Sinto vez em quando, no meio da tarde, da manhã ou da noite, um clamor escondido por detrás de anteparos, escondidos por outros anteparos, paredes escondendo paredes de aposentos desconhecidos, um clamor por música, por alguma presença plena que não fosse a presença daquele estranho condenado à condição de eterno estranho, até o último dia. Orgasmo permanente num turbilhão que pudesse jazer num fundo chão de tranqüilidade, o que quero. Encontro permanente, o que desejo. Nisso me vejo sob o chuveiro de água farta, sentindo na alma o vento de maio, que suspende gotículas de água por um instante, e elas brilham e elas volteiam e fazem um balé suspenso no ar, antes que cheguem à superfície dura do chão. Elas deviam permanecer suspensas, volteando e bailando, refrescadas e refrescando. Lá embaixo o chão. Há muito fui atirado ao chão, e da leveza inicial agora muito pouco. Acostumei com o chão, mesmo o riso pode propagar-se ao rés do chão, o riso deve propagar-se ao rés do chão, é ali onde tem mais utilidade e onde imita Deus. Não há controle quando chega o riso, sei disso, mas não volteio nem bailo, vivo a insípida permanência regular de quem não morre e não vive. Atentem para o importante, hoje sei chorar, mesmo que seja o choro do menino que se despede da mão para nunca mais voltar, e isso é alguma coisa, isso é muito.
Antes do retorno dele ao prédio de apartamentos, dormi menos em casa e permaneci com mais assiduidade no canteiro de obras. Justifiquei com horas extras. Ocupei pro bono turnos de colegas e eles, silenciosos e agradecidos, não compreenderam a bonomia. Contradição final, eu desejava ficar só.
E pela primeira vez, numa noite fria de junho, enquanto o vento arrastava folhas secas, eu, de olhos fechados, percebi-me encarcerado, litúrgico e inexorável ato de consumição. Dei por mim que me consumi sol a sol, jamais dediquei a mim um afago sequer, estava ocupado em talhar o homem adaptado, admirável e triste, lá no fundo. Afagos que me permitiam eram somente os afagos do ególatra da cidade, mas não carecia desse afago, carecia daquele que nem parece existir e quando menos se espera aparece debaixo da fronha do travesseiro, da janela entreaberta ou do meio das pernas da mulher, naquele instante iluminada. Queria e carecia do afago solto, acima da ciência e das coisas, imenso, mas ao mesmo tempo imperceptível. Desejei, soberbo, que o tempo não se dividisse em mim, que o mundo não aparecesse em categorias. Afago de um tempo por inteiro, sublime, de um espaço por inteiro, comum e perene, se Deus permitisse, mas Deus não permitiria.
À tardinha de um sábado ele apareceu na curva da estrada de cascalho. Com ar de cansado, subiu para o apartamento arrastando com dificuldade uma sacola de couro. Naquele mesmo dia, a noite, subi para escutar seus monólogos dialogados, mas ele dormia profundamente. No dia seguinte, quando a noite descia, da guarita ouvi sua voz. Subi e fui surpreendido com a sala pequena do apartamento enfeitada: balões, fadas, gnomos, anões e palhaços coloridos de papel e, ainda, sineta chinesa de prata barata dependurada na porta de entrada e um bolo confeitado no centro da sala, de um mau gosto californiano. Ele caminhava pra lá e pra cá, numa inesperada alegria de tablado. Pedia calma e cuidado às crianças que não haviam, e a quem ele chamava Pedro, Letícia. Uma delas, em especial, recebia de sua parte um atento acompanhamento. Algum tempo depois ele armou uma câmera fotográfica de tripé. Os flashes, em dúzias, alcançavam a todos do outro lado da sala, enquadrando na luz repentina o bolo confeitado ao centro da mesa, guiando o sopro e as mãos de uma criança que não havia, o Pedro. Anônimo, participei da festa de Pedro, e só na madrugada, ao voltar à guarita, enxerguei-me ao longe, distanciamento triste, onde agora estava alheio à minha própria existência - um descompromisso, mas ao mesmo tempo permanecia na responsabilidade com o mundo, porque considerava tudo ao meu redor, mesmo o que estava distante e que não via, mas esse sentimento também era um misto de irresponsabilidade e respeito com o seguimento dos acontecimentos – isso me pareceu o mantra dos celerados, dos tomados daquela paixão que só o inferno protege e Deus transforma em vida.
A lâmpada do quarto dele permaneceu acesa a noite toda, eu a via através do vão de uma janela que não existia, pendulando leste oeste, oeste leste – ânimos e desânimos. A lâmpada dormiu acesa. Quando amanheceu procurei os companheiros que não haviam, mas não encontrei, e mesmo que os tivesse encontrado, eles não falariam, não dariam as mãos. Procurei aquele menino Pedro e desejei que fosse meu, mesmo sabendo que não havia, mas não o alcancei, nem o vi. Permaneci só e andei pela estrada e pelo descampado do cerrado.
Ele foi despejado dois meses depois e, ainda no mesmo dia do despejo, sentado numa caixa de madeira, dessas de feira para acondicionar frutas e verduras, jantou uma posta de peixe acompanhada de uma porção de farinha seca. Serviu-se com despropositada e elegante solenidade, estava sereno. Conversava em sussurros com um Anselmo que não havia. Quem observasse bem, diria que estava fazendo a refeição à mesa do palácio do governador.
Aquilo tudo, aqueles acontecimentos, confundiram-me, uma garoa espessa, inexata, pensamentos misturados, frágil definição do riso, parca sabedoria para entender a lágrima – situação de não saber que se sabe, e se sabe muito bem, porque está guardado lá no fundo da segunda alma, pois temos todos a segunda alma, de quem sabemos muito pouco, ou temos pavor de saber. Nem mesmo o limite entre a razão privada, medíocre e corriqueira, e a indecifrável loucura do mundo, cabia no meu entendimento. No entanto conhecia bem dos desatinos da solidão urbana e alguns poucos segredos dos homens da cidade.
Aos poucos fui capitulando e talvez aproveitasse mais se não tivesse visto despropósito em reconhecer e talvez aceitar, manso e desarmado de espírito, a minha insana razão privada diária, guardando para mim o projeto de proteger e viver minha lúcida loucura particular, sem estardalhaço, sem alcançar quem quer que seja, homens e coisas. Obviedades também são verdadeiras, às vezes. Dessa lúcida loucura e dessa razão privada de rotina, deveria carregá-las na bagagem, todos os dias, durante toda a viagem, até o momento final, se final fosse. Confortava acreditar que a demência estava na cidade, no espírito da cidade, a demência permitida e controlada, e também a mais devastadora de todas, a demência útil, produtiva. Minha negligência particular comigo mesmo era justificada pelos ganhos que só a vida produtiva poderia me conceder, ganhos que eram o principal, como diziam.
Aquele homem, acredito, houvera sido tomado de outro tipo de demência, a contrademência do paraíso. Aquela contrademência substituta do álcool, do ópio, da metanfetamina, da cocaína, do sexo, da oração, da poesia e da música. Aquela contrademência talvez tivesse substituído seu jogo de azar, seu consumo, sua melancolia, todas suas taras e todos seus vícios – perdão e aceitação. Não haveria de suportar de outro modo que fosse. Mas estava só, ainda.
Nessa noite dormi em casa. Descobri, à meia-noite, sob uma luz fraca, espalhados pelos dois cubículos da casa, gente a quem eu negara o meu olhar mais cuidadoso ou mais sublime. Uma mulher deitada, adormecida, com um braço pendente, crianças mal acomodadas sob fuxicos coloridos. A enganosa sensação de conhecê-los, a reprise de nossas vidas, na cabeça vídeos galopantes, entrecortados, salteados, confusos e recorrentes, que um Deus trêmulo e inoperoso reproduzia sem interrupção, projetando longos dias e longas noites que passaram. A mulher e as crianças estavam em mim, desde o início, confundiam-se no mesmo itinerário. Quando clareasse o dia talvez tivesse uma palavra doce, mesmo receosa que fosse pela falta de hábito. Não negaria mais ao mundo a intenção trivial e simplória, a maneira desinteressada, que contrapusesse nosso contundente veneno humano, que negasse nossa condição principal. Nunca me contaram onde daria esse redemoinho.
Assim, muito dadivoso e tomado dessa aura romântica e ingênua, optei pela loucura lúcida que também o mundo oferece. Que, insensatos, consumíssemos a vida de mansinho, como num palco improvável onde gastá-la fosse um ato heróico e glorioso, mistura de fé e silencio.
Num momento ou noutro, tudo isso soou falso, mas qualquer história ensina, sem nem mesmo precisar de lucidez, se dela não se dispuser.
Aprendiz de quase nada, mas qualquer pouquinho já me servia.

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Sobre o autor

O que é feito da sombra? As manifestações do fantástico no conto “Luzeiro”, de James Frederico Rocha Coelho

Francisco Perna Filho; Heleno Godói de Sousa

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Entrevista com James Frederico Rocha Coelho

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