José Régio - Poema



CANÇÃO DA PRIMAVERA



Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, 
pois que maio chegou, 
Revesti-o de clâmides de cores! 
Que eu, dar flor, já não dou.


Eu, cantar já não canto. Mas vós, aves, 
Acordai desse azul,calado há tanto, 
As infinitas naves! 
Que eu, cantar, já não canto.


Eu, invernos e outonos recalcados 
Regelaram  meu  ser  neste  arripio... 
Aquece tu, ó sol, jardins e  prados! 
Que eu, é de mim o frio.


Eu,  Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, 
Vem, com tua paixão, 
Prostrar a terra em cálido desmaio! 
Que eu, ter Maio, já não.


Que eu, dar flor, já não dou; cantar,não canto; 
Ter sol, não tenho; e amar...  
Mas,  se não amo, 
Como é que,  Maio em flor, te chamo tanto, 
E não por  mim  assim te chamo?  


Imagem retirada da Internet: Primavera

Marinalva Barros



Poema de amor



Por todos os motivos,
não se findem
os vestígios da noite
e a luz de velas perfumadas.
Nada quero saber
da presença do dia
e suas coisas banais,
estou ocupadíssima
praticando a arte
de morrer em teus braços.




Imagem retirada da Internet: em teus braços

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico



                                        vidas-b.jpg
                    Vidas Secas - Foto by Evandro Teixeira
Vidas secas


                                                                                                                            

Fabiano é um personagem do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos - e sobre seus ombros pesam séculos de miséria e servidão. Daí que tenha tremido diante do soldado amarelo, despótico e autoritário por tradição, ignorância e costume. Ainda que, não obstante sua rude e sertaneja autoridade, seja ele próprio um excluído da dignidade.

Sao tantos os Fabianos, Severinos do berço à sepultura, mesmo que tenham outros nomes de pia. Iguais na aridez e sofrimento da existência cabocla, vivida em meio à eterna necessidade.Ontem como hoje, mesmo com as bolsas e auxílios que dão suporte à sustentabilidade da pobreza.  Severinos iguais na pobreza da linguagem, não muito mais rica do que a de seus animais de estima e cria.

O cenário agreste, castigado pela seca - torrão esturricado de caatinga brava ainda é o mesmo, na paisagem nordestinada. E o ciclo da miséria permanece, eternizado, com pessoas pensantes que não pensam - apenas obedecem.Pode ser que, vivesse hoje, muitos dos Severinos não fossem tão magros, nem tão pobres quanto o seu Fabiano. Pobres de fato continuam a ser, mesmo que em suas casas existam aparelhos de televisão, ligados a antenas parabólicas - ou que já tenham cacife e ilustração para fazer uso de aparelhos de telefonia celular. A Bolsa Fomília faz que não falte na barriga.

Dá-se então que não seria vero parodiar Euclides da Cunha, dizendo que "O sertanejo é antes de tudo um forte". Talvez hoje seja até barrigudo, e até obeso, embora sofrendo anemia. Como prefeito quase imposto de Palmeira dos Índios foi probo, o que quase não se vê por estes páramos.

Graciliano(recebeu pouco mais de 400 votos e não teve opositor. Ao assumir recebeu uma terra arrasada, mas pouco pode fazer, além de moralizar (sem moralismo) os usos e costumes do longinquo e remoto lugar do sertão das Alagoas. Governou sem fazer distinção de partido ou parentesco, e nisto multou até o seu pai, por expor couro de animais em via pública: "Prefeito não tem pai", decretou. Pôs funcionários barnabés no trabalho, o que deixou muita gente contrariada. Seu exemplo não foi seguido, ao contrário, proliferou como praga o que o gestor reprovava. Sem falso moralismo, exigiu e praticou a moralidade.

O relatório que fez de sua gestão não concluída chamou a atenção para o escritor em potencial. Foi sorte para a literatura ter o velho Graça bandeado para o seu lado. Como político ele não teria prosperado. Não conseguiria ser reeleito, e seria até preso por sua honestidade - como de fato foi aprisionado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, sem processo formal e sem saber do que era acusado. Não foi preso por ser comunista - que ele não era - mas por não ser corrupto, e por não renunciar à sua integridade. Cancro sócio-politico que sufocou o tempo dele, e continuar a sufocar o nosso.

Ronaldo Costa Fernandes - Poema




A visão dos teus quartos




O parlamento do corpo
na assembléia de membros,
tua bunda,
tuas duas luas nuas,
o sistema solar do assoalho,
os olhos chineses da persiana,
e, tu, na ventriloquia do telefone.

Tu, que és distúrbio,
multidão de uma só pessoa,
passeata de sopranos e bombardinos,
me lanças coquetéis molotovs
e me incendeias com a gasolina dos teus cheiros.

Os poros como ventosas,
os pelos se eriçam como línguas tremelicantes.
Cai a chuva amarela da luz dos postes.
Meus dedos têm memória:
tocam o espinho de carne do teu seio.
Teu biquinho do peito
como o segredo do cofre,
vou rodando até fazer clic
e aí teu coração – ou o tesão – se abre.



(do livro Andarilho, Rio, 7Letras, 2000)
Imagem retirada da Internet: mulher

Manuel Bandeira - Poema


foto
Tragédia brasileira



Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

In. BANDEIRA, Manuel. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 238
Imagem retirada da Internet: projétil

Raul Bopp - Poema



Urucungo


Pai-João, de tarde, no mocambo, fuma
E as sombras afundam-se no seu olhar.
Preto velho afaga no cachimbo a lembrança dos anos de trabalho que lhe gastaram os
músculos.

Perto dali, no largo pátio da fazenda,
umbigando e corpeando em redor da fogueira,
começa a dança nostálgica dos negros,
num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

Erguem-se das solidões da memória
coisas que ficaram no outro lado do mar.

Preto velho nunca mais teve alegria.

às vezes pega no urucungo
e põe no longo tom das cordas vozes que ele escutou pelas florestas africanas.

Dói-lhe ainda no sangue uma bofetada de nhô-branco.
O feitor dava-lhe às vezes uma ração de sol para secar as feridas.

Perto dali, enchendo a tarde lúgubre e selvagem,
a toada dos negros continua:

Mamá Cumandá
Eh bumba.
Acubabá Cubebé
Eh Bumba.

In.Urucungo (1932)

Imagem retirada da Internet: Pai-João

Raul Bopp - Poema


Fórmula

- Vamos fazer um trato
numa conta corrente de interesses:

Eu te elogio.
Tu me elogias.
Seremos lembrados.
Seremos fortes.
Seremos gênios.

O povo pensa pelo que lê nos jornais.

Um dia
o Prefeito, lá na província telegráfica,
mandará levantar um bustinho em praça pública.

Imagem retirada da Internet: político

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...