Carlos Drummond de Andrade - Conto


flor, telefone, moça 


Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava. É doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

– Sei de um caso de flor que é tão triste!
E sorrindo:
– Mas você não vai acreditar, juro.

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

– Era uma moça que morava na Rua Gerenal Polidoro, começou ela. Perto do Cemitério São João Batista.

 Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defundo, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

– No interior isso não é raro…
– Mas a moça era de Botafogo.
– Ela trabalhava?

– Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma… Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.

– Que flor?
– Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.

– Aloooô…
– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?
A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:
– O quê?

Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.

– Alô.
– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.

– Está aqui comigo, vem buscar.

No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:
– Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.

Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:
– Vem buscar, estou te dizendo.
– Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.
– Mas quem está falando aí?
– Me dá minha flor, eu estou te suplicando.
– Diga o nome, senão eu não dou.
– Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.
O trote era estúpido, não variava, e moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.
Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.

– Alô!
– Quede a flor…

Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:
– Olhe, vire a chapa, já está pau.
– Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova?
 Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.
– Essa é fraquinha. Não sabe de outra?

E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a idéia daquela flor, ou antes, a idéia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo que a moça começou a ter medo.
– E eu também.
– Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.

A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.

– A voz chamou hoje? Indagava o pai, chegando da cidade.
– Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.

Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a freqüentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?
O rapaz começou a tocar para todos os telefones da Rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.

Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem com as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem que restituir”, etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava explicações.

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica…

– Mas é a tranqüilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?
– Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranqüilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando? Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…

O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas. A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.

Mas a “voz” não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos são impotentes, quando alguém quer alguma coisa até sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e esta flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?
– Mas, e a moça?
– Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.

(1951)


In. Contos Fantásticos Brasileiros. Org.: Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.21-25.

Marcos Crotto - Conto Vencedor do Concurso Juan Rulfo


             Marcos Crotto
Comunión


Caminaba entre las tumbas. No había más de veinte, adornadas con flores y cintitas. Una huerta de cruces perdida en la cordillera recibiendo los colores del cielo. Dejó la mochila sobre una lápida y en la pantalla de su cámara digital congeló una cruz de madera armada con dos troncos y un Cristo tallado en la corteza. Me gustaría que me enterraran en un lugar así, dijo. La piel blanca que la musculosa dejaba libre se le había puesto algo rosa en esos días. Le sacó fotos a un pajarito amarillo que movía la cabeza encima de una lápida y a un abejorro que se metía una y otra vez en la trompeta de una flor que se abrazaba a una cruz de hierro. Se sentó en una piedra y prendió un porro. Es como si los propios muertos, después de recorrer toda la tierra, hubiesen decidido entrar allí, dijo, en este lugar apartado de los hombres, y dormir para siempre en la roca de colores tan cerca del cielo. Christophe, que la esperaba apoyado contra la puerta del Mitsubishi, de brazos cruzados, oculto detrás de sus anteojos negros, le contestó que ya estaba fumada y le pidió que se apurara, quería llegar antes que se hiciese de noche.
Ya de nuevo en el auto, Virginie miró las fotos en la pantalla de su notebook. Le gustó una especialmente: se veía una tumba armada con ladrillos y una reja de lanzas en las que se entrelazaban flores azules y jarrones de cerámica; detrás de la tumba crecían yuyos verdes que contrastaban con los colores de las flores; más abajo, jirones de nubes deambulaban entre los pliegos de los cerros, de modo que el cementerio estaba arriba de la nube; al fondo resurgía una montaña vertical, el cielo y la tierra se confundían en esa imagen. La puso como protector de pantalla, reemplazando a su casa de Bordeaux en una mañana fría pero de sol.
            El GPS adherido al parabrisas indicaba la existencia de arroyos, lechos secos, minados por piedras blancas que parecían osamentas de peces. Por algo el pueblo al que iban se llamaba Aguas Secas. Las paredes de la montaña doblaban con el camino. Naranjas, verdes, turquesas, amarillas, rojas. La montaña, dijo Virginie, era la paleta inmensa de un pintor que prepara los colores y que después no la toca porque advierte que la paleta es el cuadro. Sólo colores. Ese paisaje era lo mismo. La fuerza de los colores aislados de la materia. Él le preguntó si pensaba que encontrarían el cuadro en Aguas Secas. Ella se encogió de hombros y miró un rato la foto del cementerio, cerró la notebook, se reclinó contra la ventanilla, tal vez podía dormir. Christophe puso el disco de Ravel. De a gotas caía la fuerza del piano. Es una música lenta pero que no deja de avanzar, es mágica, dijo Virginie, descalza y apoyando los pies contra el parabrisas. Christophe le preguntó si la había tocado en algún concierto. Sí, dijo Virginie, me volví loca estudiándola, encima con Ravel hay que contar una historia desde las sensaciones, escuchá esta parte, ¿ves?, las notas imitan las campanadas que velan a un ahorcado, se repiten las campanas y se repite el miedo a la muerte, que va creciendo. No es una música, es una atmósfera que toca una música.
El camino ya parecía un serrucho, el disco empezó a saltar, las notas se repetían o volvían atrás. Mejor apagarlo y abrir la ventanilla. No sé por qué dejé el piano, dijo Virginie. Ya vas a volver, dijo él. Sí, no sé. Entró el aire de la montaña y el errático ruido del motor que ya empezaba a sufrir el esfuerzo de la altura. Pasaron dos o tres cementerios más, el paisaje se secaba, pocas plantas, cada vez más rocas, la tierra desnuda y naranja, las montañas parecían jarrones de arcilla.
Llegaron a Aguas Secas. La poca gente que caminaba por la calle de piedra era vieja, con los rostros curtidos por el sol. Vestían ropas de colores alegres algo erosionados por el uso. Delante del auto una señora arreaba a sus cabras y en la vereda una nena en bicicleta los miraba con un dedo metido en la nariz. Virginie le mostró la cámara, como preguntándole si le podía sacar una foto; la nena pedaleó calle arriba.
Bajaron del auto. Las casas eran blancas, todas parecidas. Ya casi no quedaba nada de pueblo cuando vieron, al final de una curva, una pared grande de roca medio negra, un balcón arrodillado hacia un precipicio. Arriba de la roca había un cura, sentado, mirando las montañas, y alrededor del cura parecía estar concentrado todo el pueblo, en distintos niveles. Algunos sentados sobre piedras, otros de pie, algunos con los ojos cerrados, otros mirando al cura. A veces los miraban, como si no entendieran qué hacían dos turistas en ese lugar. Virginie recordó esa escena de Ben Hur en la que Cristo predica en el monte. Una viejita arrugada lloraba. Virginie le sacó una foto. Después se acercó un poco más al cura y también le sacó una foto. Era rubio, de barba, flaco, parecía más un conquistador que un cura. Perdieron el tiempo de cuánto duró esa oración, al atardecer. Al final, el cura se puso de pie y caminó por un caminito bien marcado. Todos lo siguieron: la vieja que lloraba, un tipo encima de un burro, la nena de la bicicleta. Dos o tres señoras cantaban, no muy afinadas. Llegaron de nuevo al pueblo por un caminito que ascendía y descendía entre arbustos espinosos y duros. La capilla era blanca como las casas y con un campanario exageradamente alto, le pareció a Virginie. Alguien empezó a sonar las campanas y el sonido rodó cerros abajo con una avalancha de ecos.
Los bancos de madera rechinaban a medida que los ocupaban. Virginie no sabía que el olor denso era guano de murciélago. Se hizo una fila para comulgar. Todavía había luz. Comulgaban y después se arrodillaban en los bancos o rezaban de pie, mirando al piso o al Cristo demasiado lastimado que colgaba del techo. Ellos, por respeto, también lo miraban, tratando de incorporarse a esa oración comunitaria, aunque casi al mismo tiempo advirtieron el cuadro, detrás del Cristo, en la pared del altar.
Virginie caminó por los laterales y se acercó lo más que pudo sin ser indiscreta. Le temblaron las piernas. Le sacó fotos al Cristo, como para disimular, y después al cuadro. La comunión de los pastores estaba en una capilla anclada en las montañas, a más de diez mil kilómetros de donde había sido pintado quinientos años atrás. 
            Los fieles se perdieron en los cerros. Las puertas de las capillas quedaron abiertas. El cura había desaparecido detrás del altar con la viejita que le hacía de ayudante. Pudieron acercarse más al cuadro. Tendría unos dos metros de largo por uno y medio de alto. A pesar del polvo y de la mugre acumulada se adivinaban figuras de hombres y de mujeres que languidecían en la cima de un cerro. Había granjeros, una vieja con un telar, un burro, un pastor con sus cabras, alguien que podía ser un sacerdote. Otros cerros continuaban en distintos planos, secos, como cubiertos de un manto de cuero de toro. Gris y negra la tierra. En cambio, el cielo regalaba colores alegres que se encendían unos a otros. Los hombres y las mujeres del cuadro levitaban con esas pinceladas características del pintor. Como algunos pájaros de montaña, esas figuras ya eran más del cielo que de la tierra.  

El cura salteó churrascos con cebollas y les ofreció el vino dulce que usaba para la misa. Ellos quisieron comer poco, tal vez para mostrarse civilizados, pero el aire de la altura y el humo de la marihuana les había inflado el hambre y limpiaron los platos. Les parecía increíble que el cura hablara tan bien francés. El cura les comentó que su abuela había nacido en Francia, ella le había enseñado. No se interesó demasiado por la vida de ellos ni tampoco quería hablar de él. Apenas comió unos bocados de cebolla con pan. Al final de la cena, Christophe le pidió si les podía mostrar de nuevo la capilla. La recorrieron, cada uno sosteniendo un candelabro con velas encendidas. Cuando llegaron al cuadro, Christophe fingió sorpresa, dijo que era lindo y que le gustaría comprarlo. El cura contestó que todo lo que estaba allí pertenecía a la comunidad de los cerros. Virginie comentó que le encantaría llevarse el cuadro así recordaba su viaje por esa parte del mundo, era tan lindo ese lugar, y el cuadro mostraba muy bien todo eso, seguramente lo había pintado alguien de la zona, dijo acercando una vela a la tela. Se iluminaron los ojos del burro y de un pastor. El cura sonrió y explicó de nuevo que el cuadro pertenecía a la comunidad. Hablaba lento y siempre como si mirara un poco más allá de aquello que enfocaba. No le importaron los tres mil dólares que ofreció Virginie. Christophe dijo que tal vez podían pagar hasta diez mil, aunque el cuadro ni tenía firma, seguro que era de un pintor desconocido, y estaba arruinado de humedad, dijo ella, y de polvo, dijo él, pero igual subían la oferta, la gente de esa zona era demasiado pobre. El cura los miró y dijo que la comunidad apreciaba ese cuadro, no estaba en su poder venderlo, eso dependía de Dios. ¿Y cómo hablamos con Él?, preguntó Christophe, riéndose.

El cura entró en el cuarto pegado a la sacristía. Preparó dos camas para ellos y después lo vieron tirarse entre unos perros flacos. ¿Por qué no duerme en una cama?, le preguntó Virginie. Así le ofrezco el sacrificio a Dios, dijo, ya acostado sobre el suelo. También les dijo que se despedía ahora de ellos, en unas horas, en plena noche, saldría en burro hacia los cerros, había casas arriba, estaría unos días administrando sacramentos.
Virginie se acostó en una cama y Christophe salió a fumar tabaco. Miró el brillo rabioso del cielo, enmarcado por las cumbres. Entonces le pareció que el cuadro estaba bien en ese lugar: un pueblo levitando entre la potencia de las montañas y las riquezas brillantes que esperan del otro lado de la noche.
Los murciélagos revoleteaban alrededor del campanario, cazando insectos.         

            Aunque el cura ya había partido con el burro, ellos caminaban en silencio, casi en puntas de pie, como si la capilla fuera un museo minado de alarmas. Virginie colocó la tela enrollada dentro de un tubo de aluminio. Fueron hacia el Mitsubishi, lo empujaron y saltaron a los asientos cuando el auto tomó velocidad por el efecto de la pendiente. Christophe prendió el motor, aceleró, pero las piedras golpeaban la panza del auto. Había que tranquilizarse o romperían el cárter de aceite. Apenas se veía el camino que despertaban los faros y que se hundía y resurgía entre piedras. Menos mal que tenían el GPS. De los matorrales saltaban tucuras de lado a lado, atravesando la luz de los faros. No hablaban. A veces, Virginie miraba para atrás y tocaba el cilindro que contenía la tela que ella había desprendido del marco con su navaja. En doce horas, tal vez diez, llegarían a Chile cruzando por el Paso de Jama. Tenían documentos diplomáticos, nadie molestaría. Virginie bajó la ventanilla. Le sorprendió el aire húmedo, enseguida se largó a llover, gotas que estallaban en el parabrisas, aisladas unas de otras. Después ya fue una lluvia pareja, vertical y monótona, interrumpida por algún trueno que vibraba en las montañas.
Los limpiaparabrisas apartaban el agua con su coreografía. Llovía con calma, una lluvia mansa que no golpeaba la tierra sino que la bañaba.
            Los sobresaltó el primer arroyo. Donde ayer había un lecho resquebrajado ahora pasaba una cuerda de agua marrón. Christophe metió las ruedas de a poco, el agua rascó la panza del auto, las ruedas volvieron a apoyar el peso del Mitsubishi sobre la tierra.
            Ahora llovía fuerte, cascadas de agua que bajaban con viento y peso. Christophe tenía que esquivar las piedras que se habían desprendido de las paredes de roca. A veces Virginie tenía que bajarse para correrlas. Se embarraba las manos y la cara. Por momentos no se veía nada, sólo la lluvia casi encima, empañada por los faros. El agua también caía de las paredes de la montaña. Ese paisaje quieto y silencioso de la tarde anterior ahora era un gigante que movía sus aguas, sus rocas, sus ruidos.
            El Mitsubishi se les quedó en medio de uno de los arroyos. Los faros casi que se hundieron en un pozo, iluminaron el agua desde abajo, como un submarino, el motor se apagó después de toser. Las ruedas sirvieron más de flotadores que de apoyo y el auto empezó a girar empujado por las olas hacia la cascada que rugía al costado del camino. Christophe ayudó a Virginie a subirse al techo del auto y de ahí, colgada de las hojas de una cortadera, pisó tierra firme. Christophe agarró el cilindro y estiró el brazo. Ella tuvo que meterse un poco en el arroyo y alcanzar uno de los extremos. Él también se colgó de las cortaderas para llegar a la tierra. En el cilindro se juntaron las sangres de los dos, las lavó la lluvia.
Se refugiaron debajo de una piedra que salía de la pared. Desde allí vieron cómo la corriente bajaba cada vez más rápido y más gorda. El agua negra pasaba por encima del capó y acercaba el auto a la pendiente. Oscuro, el auto parecía una roca que divide el cauce de un río.

La luna resplandeció en las rejas de lanza y en algunas cruces de hierro. El cementerio estaba ahí nomás. Se sentaron en uno de los banquitos de piedra. Christophe se tiró a dormir, Virginie le pidió que no se durmiera y le preguntó qué harían con todo ese lío. Ni bien el cura volviera de su paseo le subirían la oferta, una muy buena oferta, le harían entender que el cuadro tenía que estar en un museo y que el gobierno francés podría ayudar con donaciones a la comunidad. Tengo frío, dijo Virginie. Habían perdido todas sus cosas. Mañana, cuando baje el agua, las rescatamos del auto, dijo Christophe.

            La luz todavía era azul y no dejaba ver más que sombras de arbustos o rocas no muy lejos. Desde arriba de los cerros se soltaba un cielo turquesa y rosa. Divisaron al Mitsubishi en un desbarranco, cuarenta metros abajo del camino. Apenas se veían las gomas y una puerta entreabierta. Lo demás eran plantas y barro que se le habían pegado como una barba. Imposible bajar hasta ahí, se podían romper una pierna y ahí sí que la cosa sería brava.
            No sabían qué hacer, si caminar, si quedarse ahí. Salió el sol y al rato apareció un hombre a caballo y un chico, seguramente el hijo, encima de un burro. No se pudieron entender. El chico los ayudó a subirse al burro, uno pegado al otro. El hombre iba adelante con su caballo y el chico caminaba y los arrastraba con el bozal. No hablaban. Dejaron el camino de autos y se metieron en una huella marcada por animales. Volvían para el pueblo. Ristras de nubes aparecían desde las montañas, como si la tierra las pariera, y al rato todo el cielo estaba atravesado de largas franjas de nubes grises, parecido a un campo recién arado. Una aventura esto de rastrear arte, dijo Christophe y Virginie se rió. No tengas miedo, le dijo Christophe. Adelante, el hombre guiaba al caballo con silbidos.
Llegaron al pueblo. Los cascos del caballo y del burro sonaban en el empedrado. Apareció la nena con la bici, otra nena con una muñeca que le colgaba de la mano, tres chicos jugaban al fútbol. Los miraron pasar y después siguieron jugando. Se bajaron del burro en la puerta de la capilla. Una viejita arrugada como una nuez se acercó a Virginie con la mano estirada, ella le dio la mano, pero la viejita no quería saludarla, quería el tubo de aluminio. La viejita sacó la tela de adentro y desenrolló ahí mismo los colores alegres del cielo y los grises en las montañas. Afuera del cuadro era al revés. La tierra de colores y el cielo gris. Christophe se lamentó de no saber mejor español, no podía dar explicaciones por lo del cuadro ni hablar de otras cosas, como de fútbol, el cinco del Paris Saint Germain era argentino. Vamos a buscar un teléfono, dijo Virginie.
En el pueblo no tenían mucho que hacer. No había teléfonos, no había autos y tampoco señales del cura. Se sentaron en una vereda. Por lo menos sus ropas ya estaban casi secas. Sonó la campana de la capilla.
— C’est un si bémol.
Sonó de nuevo, y otra vez, y otra vez, y así siguió, y a medida que sonaba hombres y mujeres bajaban de los cerros cargando sus palas, lazos, machetes y demás instrumentos de trabajo. Se reunían frente a una placita, donde se quedaban medios quietos, como pintados. Virginie buscó a la nena de la bicicleta, ya no había chicos en la calle. Miró a la comunidad de los cerros, ahora se movía, ahora avanzaba hacia ellos dos.
Desde arriba del campanario se veían los colores superpuestos de la montaña, y, más abajo, las tumbas blancas de un cementerio.


Fonte: Radio France Internationale
Imagem retirada da Internet: túmulo

Alexei Bueno - Poema


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A Maja Desnuda- Goya


VIDÊNCIA



Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que para o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.


In. Em Sonho -1999.
Imagem retirada da Internet: Rosa

Samanta Schweblin - Conto


El núcleo del disturbio
Cuentos

Parada en el medio de la ruta Felicidad ha creído ver, en el horizonte, el débil reflejo de las luces traseras del auto. Ahora, en la oscuridad cerrada del campo, sólo se distinguen la luna y su vestido de novia. Sentada sobre una piedra junto a la puerta del baño concluye que no tendría que haber tardado tanto. Desprende del tul algunos granos de arroz. Apenas puede adivinar el paisaje: el campo, la ruta y el baño.
       Quiere llorar, pero todavía no puede. Corrige los pliegues del vestido, se mira las uñas, y contempla, cada tanto, la ruta por la que él se ha ido. Entonces algo sucede:
       -No vuelven- dice una mujer.
       Felicidad se asusta y grita. Por un segundo cree encontrarse frente a un fantasma. Intenta controlarse, pero el cuerpo no deja de temblarle. Mira a la mujer: nada parece sobresaltarla, tiene una expresión vieja y amarga, aunque conserva entre las arrugas grandes ojos claros y labios de perfectas dimensiones. 
       -La ruta es una mierda- dice la mujer. Saca de su bolsillo un cigarrillo, lo enciende y se lo lleva a la boca- Una mierda. Lo peor…
       Una luz blanca aparece en la ruta, las ilumina al pasar, y se esfuma con su tono rojizo.
       -¿Y qué? ¿Vas a esperarlo?- dice la mujer.
       Ella mira el lado de la ruta por el que, de volver su marido, vería aparecer el auto, y no se anima a responder.
       -Nené- dice la mujer, y le ofrece la mano.
       Ella extiende con duda la suya y se saludan. Los movimientos de Nené son firmes y fuertes.
       -Mirá- dice Nené; se sienta junto a Felicidad- voy a hacértela corta- pisa el cigarrillo apenas empezado, enfatiza las palabras- se cansan de esperar y te dejan. Eso es todo. Parece que esperar es algo que no toleran. Entonces ellas lloran y los esperan… Y los esperan… Y sobre todo, y durante mucho tiempo: lloran, lloran y lloran todavía más.
       Aunque lo intenta, Felicidad no logra entenderla. Está triste, y cuando más necesita del apoyo fraternal, cuando sólo otra mujer podría comprender lo que se siente tras haber sido abandonada junto a un baño de ruta, ella sólo cuenta con esa vieja hostil que antes le hablaba y ahora le grita.
       -¡Y siguen llorando y llorando durante cada minuto, cada hora de todas las malditas noches!
       Felicidad respira profundamente, sus ojos se llenan de lágrimas. 
       -Y meta llorar y llorar… Y te digo algo: esto se acaba. Estoy cansada, agotada de escuchar a tantas estúpidas desgraciadas. Y una cosa más te digo… -se interrumpe, parece dudar, y pregunta- ¿Cómo dijiste que te llamabas?
       Ella quiere decir Felicidad, pero se traga el llanto, hipando.
       -Hola… ¿Te llamabas…?
       -Fe, li…- trata de controlarse. No lo logra, pero resuelve la frase- cidad.
       -No, no, no. Ni se te ocurra. Por lo menos aguantá algo más que las demás.
       Felicidad empieza a llorar.
       -No. No voy a seguir soportando esto. No puedo. ¡Felicidad!
       Ella fuerza una respiración ruidosa y retiene el llanto, pero enseguida la situación le es insostenible y todo vuelve a empezar.
       -No puedo creer, que él…- respira- que me haya…
       Nené se incorpora, mira a Felicidad con desprecio y se aleja furiosa, campo adentro. Ella intenta contenerse, pero al fin se descarga:
       -¿Desconsiderada!- le grita, pero después se incorpora y la alcanza- espere… No se vaya, entienda…
       Nené camina ignorándola.
       -Espere- Felicidad vuelve a llorar.
       Nené se detiene.
       -Callate- dice- ¡Callate tarada!
       Entonces Felicidad deja de llorar y Nené le señala la oscuridad del campo.
       -Callate y escuchá.
       Ella traga saliva. Se concentra en no llorar.
       -Bueno, ¿y? ¿Lo sentís?- mira hacia el campo.
       Felicidad la imita, intenta concentrarse.
       -Lloraste demasiado, ahora hay que esperar a que se te acostumbre el oído.
       Felicidad hace un esfuerzo, tuerce un poco la cabeza. Nené espera impaciente a que ella al fin comprenda.
       -Lloran…- dice Felicidad, en voz baja, casi con vergüenza.
       -Sí. Lloran. ¡Sí, lloran! ¡Lloran toda la maldita noche! ¿No me vez la cara? ¿Cuándo duermo? ¡Nunca! Lo único que hago es oírlas todas las malditas noches. Y no voy a soportarlo más, ¿se entiende?
       Felicidad la mira asustada. En el campo, voces y llantos de mujeres quejumbrosas repiten a gritos los nombres de sus maridos.
       -¿Y a todas las dejan?
       -¡Y todas lloran!- dice Nené.
       Entonces gritan:
       -¡Psicótica!
       -¡Desgraciada, insensible!
       Y otras voces se suman:
       -¡Dejános llorar, histérica!
       Nené mira hacia todos lados. Grita al campo:
       -¿Y que hay de mí…? ¿Qué hay de las que hace más de cuarenta años que estamos acá, también abandonadas, y tenemos que oír sus estúpidas penitas todas las malditas noches? ¿Eh? ¿Qué hay?
      -¡Tomate un calmante! ¡Loca!
      Felicidad mira a Nené y comprende cuánto más grande es la tristeza de aquella mujer comparada con la suya. Nené se muerde los labios y niega. En el campo los gritos son cada vez más violentos. 
       -¡Vení, turrita!; ¡vení y da la cara!
       -Vení, dale. A ver cuanto te dura esta nueva amiguita…
       -¡Dónde estás vieja! ¡Hablá infeliz!
       -¡Cuando vos ya estabas acá llorando nosotras todavía salíamos con ellos desgraciada!
       Algunas voces dejan de gritar para reírse.
       Nené se deja caer y se sienta resignada.
       -¡Déjenla en paz!- dice Felicidad. Se acerca a Nené y la abraza como se abraza a una niña.
       -Hay… Que miedo…- dice una de las voces- así que ahora tenés compañerita…
       -Yo no soy compañerita de nadie- dice Felicidad- sólo trato de ayudar…
       -Ay… Solo trata de ayudar…
       -¿Saben por qué la dejaron en la ruta?
       -¡Por qué es una morsa flaca!
       -No, la dejaron porque…- se ríen- …porque mientras ella se probaba su vestido de novia, nosotras ya nos acostábamos con su maridito…- vuelven a reírse.
       Las voces se escuchan cada vez más cerca. Es un griterío donde es difícil separar a las que lloran de las que se ríen.
       -¡Porqué no se callan, cotorras!- grita Nené.
       -¡Ya te vamos a agarrar, turra!
       Felicidad siente bajo los pies el temblor de un campo por el que avanzan cientos de mujeres desesperadas. Nené comienza a retroceder hacia la ruta. Felicidad la sigue.
       -¿Cuántas son…?- pregunta.
       -Muchas- dice Nené- demasiadas.
       Pero Felicidad no puede escucharla, los insultos son tantos y están ya tan cerca que es inútil responder o tratar de llegar a un acuerdo.
       -¿Qué hacemos?- insiste Felicidad.
       Entonces Nené adivina en ella los signos contenidos del llanto.
       -No se te ocurra llorar- le dice.
       Retroceden cada vez más rápido. Ya casi están sobre la ruta. A lo lejos, un punto blanco crece como una nueva luz de esperanza. Felicidad piensa ahora, por última vez, en el amor. Piensa para sí misma: que no la deje, que no la abandone.
       -Si para nos subimos- grita Nené.
       -¿Qué?
       Ya están cerca del baño.
       -Que si el auto para…
       El murmullo las sigue y ya parece estar sobre ellas. No alcanzan a verlas, pero saben que están ahí, a pocos metros. El coche se detiene frente al baño. Nené se vuelve hacia Felicidad y le ordena que avance, y sin acercarse demasiado, oculta aún en la oscuridad, espera a que la mujer se baje para sentarse ella y obligar al hombre a conducir. Pero el que se baja es él. Con las luces recortando el camino aún no ha visto a las mujeres y baja apurado agarrándose la bragueta. Entonces el barullo aumenta. Las risas y las burlas se olvidan de Nené y se dirigen exclusivamente a él. Se detiene pero ya es tarde; en sus ojos el espanto de un conejo frente a las fieras. Mientras, Nené rodea el auto para subir del lado del conductor, pero cuando intenta abrir la puerta se encuentra con que la mujer ha puesto las trabas de seguridad. 
       -¡Abra, vamos! ¡Tenemos que subir!- dice Nené mientras forcejéa la puerta.
       -Si se quiere bajar dejála- dice Felicidad- por ahí ellos sí se quieren.
       Desde el interior del coche la mujer grita qué quieren, de dónde vienen, una pregunta tras otra. Nené grita y golpea desesperada los vidrios:
       -¡Abrí, nena! ¡Abrí!
       La mujer se cambia de asiento y enciende el motor. El hombre escucha el automóvil pero no se vuelve para mirar. Está absorto y parece adivinar, en la oscuridad, la masa descomunal de mujeres que corren hacia él.
       -¡Abrí, tarada!- Nené golpea los vidrios con los puños, forcejea la manija de la puerta. 
       Detrás, Felicidad mira al hombre y a Nené, al hombre y a Nené. La mujer acelera nerviosa haciendo patinar las ruedas. Nené y Felicidad retroceden. Parte del auto cae a la banquina y las salpica de barro. Al fin las ruedas vuelven a morder el asfalto y el auto se aleja. 
       Aunque tras ellas los gritos de las mujeres continúan, el reflejo anaranjado de las luces traseras alejándose parece sumirlas en una silenciosa tristeza. A Felicidad le hubiese gustado abrazar a Nené, apoyarse en su hombro al menos. Es entonces cuando pequeños pares de luces blancas comienzan a iluminar el horizonte.
       -¡Vuelven!- dice Felicidad.
       Pero Nené no responde. Enciende un cigarrillo y contempla en la ruta los primeros pares de luces que ya están casi sobre ellas. 
       -¡Son ellos!- dice Felicidad- se arrepintieron y vuelven a buscarnos…
       -No- dice Nené, y suelta una bocanada de humo- son ellos, sí; pero vuelven por él.


Samanta Schweblin - Conto


Pássaros na boca

Pássaros na boca



Desliguei a tevê e olhei pela janela. O carro de Silvia estava estacionado em frente à casa com o pisca-alerta ligado. Pensei se havia alguma possibilidade real de não atender, mas a campainha voltou a soar; ela sabia que eu estava em casa – fui até a porta e abri.

- Silvia – disse.

- Olá – disse ela, e entrou sem que eu chegasse a dizer nada. – Temos que conversar. Apontou o sofá e obedeci porque, às vezes, quando o passado bate à porta e me trata como há quatro anos, continuo sendo um imbecil.

- Você não vai gostar. É… É forte – olhou o seu relógio – é sobre Sara.

- Sempre é sobre Sara – disse.

- Você vai dizer que exagero, que sou uma louca, tudo isso. Mas hoje não há tempo. Você tem que vir à minha casa agora mesmo. Tem que ver com seus próprios olhos.
- O que houve?
- Já disse a Sara que você iria. Ela está esperando.


Ficamos em silêncio um momento. Pensei em qual seria o próximo passo, até que ela franziu o cenho, se levantou e foi até a porta. Peguei meu casaco e saí atrás dela.
Por fora a casa estava como sempre, com a grama recém cortada e as azaleias de Silvia penduradas das sacadas do primeiro piso. Cada um saiu de seu carro e entramos sem falar. Sara estava no sofá. Embora as aulas deste ano já tivessem terminado, usava o agasalho da escola que lhe dava um ar igual às colegiais pornôs das revistas. Estava sentada com as costas retas, os joelhos juntos e as mãos sobre os joelhos, concentrada em um ponto da janela ou do jardim, como se estivesse fazendo um desses exercícios de ioga da mãe. Me dei conta de que, mesmo que tenha sido sempre mais para pálida e magra, aparentava transbordar saúde. Suas pernas e seus braços pareciam mais fortes, como se viesse fazendo exercícios há alguns meses. Seu cabelo brilhava e as bochechas estavam rosadas, como de maquiagem, mas real. Quando me viu entrar, sorriu e disse:

- Oi, papai.

Minha filha era realmente uma doçura, mas duas palavras bastavam para entender que algo ia mal com essa menina, algo seguramente relacionado com a mãe. Às vezes penso que talvez devesse ter levado ela comigo, mas quase sempre penso que não. A uns metros da tevê, perto da janela, havia uma gaiola. Era uma gaiola para pássaros – de uns setenta, oitenta centímetros – que pendia do teto, vazia.

- O que é isso?

- Uma gaiola – disse Sara, e sorriu.



Silvia me fez um sinal para que a seguisse à cozinha. Fomos até o janelão e ela se virou para verificar que Sara não nos escutava. Seguia rija no sofá, olhando a rua, como se nunca tivéssemos chegado. Silvia me falou em voz baixa.

- Olha, você vai ter que ter calma.

- Não enche. O que é que tá acontecendo?

- Ela não come desde ontem.

- Você tá brincando?

- Você precisa ver com seus próprios olhos.
- Você tá louca?


Disse que voltássemos à sala e me apontou o sofá. Me sentei em frente a Sara. Silvia deixou a casa e a vimos cruzar o janelão e entrar na garagem.

- O que está acontecendo com a sua mãe?

Sara deu de ombros, dando a entender que não sabia. Seu cabelo preto e escorrido estava preso num rabo de cavalo, com uma franjinha que chegava quase aos olhos. Silvia voltou com um caixa de sapatos. Trazia-a nivelada, com ambas as mãos, como se tratasse de algo delicado. Foi até a gaiola, a abriu, tirou da caixa um pardal bem pequeno, do tamanho de uma bola de golf, meteu ele dentro da gaiola e a fechou. Jogou a caixa no chão e a chutou para o lado, junto a outras nove ou dez caixas similares que iam se amontoando debaixo da escrivaninha. Então Sara se levantou, seu rabo de cavalo brilhou de um lado a outro de sua nuca, e foi até a gaiola saltitando como fazem as garotas que têm cinco anos a menos que ela. De costas para nós, na ponta dos pés, abriu a gaiola e tirou o pássaro. Não pude ver o que fez. O pássaro deu um pio e ela forcejou um momento, talvez porque ele tentasse escapar. Silvia tapou a boca com a mão. Quando Sara se virou para nós, o pássaro tinha sumido. Tinha a boca, o nariz, o queixo e as mãos manchadas de sangue. Sorriu envergonhada, sua boca gigante se arqueou e se abriu, seus dentes vermelhos me obrigaram a levantar de um salto. Corri até o banheiro, me fechei e vomitei na privada. Pensei que Silvia me seguiria e começaria com as culpas e as determinações do outro lado da porta, mas ela não fez nada. Lavei minha boca e meu rosto e fiquei escutando em frente ao espelho. Baixaram algo pesado no andar de cima. Abriram e fecharam algumas vezes a porta de entrada. Sara perguntou se poderia levar com ela a foto da prateleira. Quando Silvia respondeu que sim, sua voz já estava longe. Abri a porta tentando não fazer barulho, e entrei no corredor. A porta principal estava aberta de par em par e Silvia punha a gaiola no assento traseiro do meu carro. Dei uns passos com a intenção de sair da casa gritando umas verdades, mas Sara saiu da cozinha para a rua e me detive para que eu não visse. Se abraçaram. Silvia a beijou e a colocou no assento do acompanhante. Esperei que voltasse e fechasse a porta.

- Que merda…?

- Leve ela – foi até a escrivaninha e começou a amassar e dobrar as caixas vazias.

- Meu Deus Silvia, sua filha come pássaros!

- Não posso mais.

- Ela come pássaros! Você viu? Que merda ela faz com os ossos?
Silvia ficou me olhando, desconcertada.
- Acho que ela os engole também. Não sei se os pássaros… – disse e ficou me olhando.
- Não posso levar ela.
- Se ela ficar, me mato. Me mato e antes mato ela.
- Ela come pássaros!


Silvia foi até o banheiro e se trancou. Olhei para fora, pelo janelão. Sara me acenou alegremente do carro. Tratei de me acalmar. Pensei em coisas que me ajudaram a dar alguns passos torpes até a porta, rezando para que esse tempo fosse suficiente para voltar a ser um homem comum e corrente, um tipo elegante e organizado capaz de ficar dez minutos de pé no supermercado em frente à gôndola dos enlatados se certificando de que as ervilhas que está levando são as mais adequadas. Pensei que, se é fato que algumas pessoas comem pessoas, então comer pássaros vivos não é tão ruim. Também que, de um ponto de vista natural, é mais saudável que as drogas, e, do social, é mais fácil de ocultar que uma gravidez aos treze. Porém, até pegar na maçaneta do carro, segui repetindo come pássaros, come pássaros, come pássaros, e assim foi.

Levei Sara para casa. Não disse nada durante a viagem e quando chegamos, trouxe sozinhas as suas coisas. Sua gaiola, sua mala – que havia colocado no porta-malas -, e quatro caixas como as que Silvia havia trazido da garagem. Não pude ajudá-la com nada. Abri a porta e então esperei que ela fosse e voltasse com tudo. Quando entramos, disse que podia usar o quarto de cima. Depois que se instalou, a mandei que descesse e se sentasse diante de mim na mesa da copa. Preparei dois cafés, mas Sara Pôs de lado sua xícara e disse que não tomava infusões.

- Você come pássaros, Sara – disse.

- Sim, papai.

Mordeu os lábios, envergonhada, e disse:

- Você também.

- Você come pássaros vivos, Sara.
- Sim, papai.


Me lembrei de Sara aos cinco anos, sentada à mesa conosco, correndo para o seu prato, devorando fanaticamente uma abóbora, e pensei que, de alguma forma, solucionaríamos o problema. Mas quando a Sara que tinha diante de mim voltou a sorrir, me perguntei o que sentiria ao engolir algo quente e em movimento, algo cheio de plumas e patas na boca. Tapei a minha própria boca, como fazia Silvia, e deixei ela sozinha em frente aos dois cafés intactos.

Passaram três dias. Sara estava quase todo o tempo na sala, rija no sofá, com os joelhos juntos e as mãos sobre eles. Eu saía cedo para o trabalho e me aguentava as horas consultando na internet infinitas combinações das palavras “pássaro”, “cru”, “cura”, “adoção”, sabendo que ela seguia sentada ali, olhando para o jardim durante horas. Quando entrava em casa, por volta das sete, e a via tal qual a havia imaginado durante todo o dia, os pelos da nuca se eriçavam e me dava vontade de sair e deixá-la trancada à chave, hermeticamente trancada, como esses insetos que se caça quando se é criança para guardar em frascos de vidro até que o ar acabe. Poderia fazer isso? Quando eu era pequeno, vi no circo uma mulher barbada que carregava ratos na boca. Mantinha-os um tempo, com o rabo se mexendo entre os lábios fechados, enquanto caminhava em frente ao público sorrindo e mexendo os olhos para cima, como se isso lhe desse um grande prazer. Agora pensava nessa mulher quase todas as noites, dando voltas na cama sem poder dormir, considerando a possibilidade de internar Sara em um centro psiquiátrico. Talvez pudesse visitá-la uma ou duas vezes por semana. Poderia revezar com Silvia. Pensei nesses casos em que os médicos sugerem certo isolamento do paciente, afastando-o da família por uns meses. Talvez fosse uma boa opção para todos, mas não estava seguro de que Sara poderia sobreviver num lugar assim. Ou sim. Em qualquer caso, sua mãe não permitiria. Ou sim. Não conseguia me decidir.

No quarto dia, Silvia veio nos ver. Trouxe cinco caixas de sapatos que deixou junto à porta de entrada, do lado de dentro. Nenhum de nós dois disse nada a respeito. Perguntou por Sara e lhe apontei o quarto de cima. Quando desceu, lhe ofereci café. Bebemos na sala, em silêncio. Estava pálida e suas mãos tremiam tanto que fazia tilintar a louça cada vez que voltava a apoiar a xícara sobre o pires. Um sabia o que o outro pensava. Eu podia dizer “isso é culpa sua, isto é o que você conseguiu”, e ela podia dizer algo absurdo como “isto está acontecendo porque você nunca prestou atenção nela”. Porém a verdade é que já estávamos muito cansados.

- Eu cuido disso – disse Silvia antes de sair, apontando para as caixas de sapatos. Não disse nada, mas a agradeci profundamente.

No supermercado, as pessoas carregavam seus carrinhos de cereais, doces, verduras, carnes e laticínios. Eu me limitava a meus enlatados e enfrentava a fila em silêncio. Ia duas ou três vezes por semana. Às vezes, mesmo que não tivesse nada para comprar, passava antes de voltar para casa. Tomava um carrinho e percorria as gôndolas pensando no que podia estar esquecendo. À noite, assistíamos juntos à televisão. Sara, ereta, sentada em seu canto do sofá, eu na outra ponta, espiando ela de tempos em tempos para ver se acompanhava a programação ou se já estava outra vez com os olhos cravados no jardim. Eu preparava comida para dois e levava à sala em duas bandejas. Deixava a de Sara em frente a ela, e ali ficava. Ela esperava que eu começasse a comer e então dizia:

- Com licença, pai.

Se levantava, subia ao seu quarto e fechava a porta com delicadeza. A primeira vez, baixei o volume do televisor e esperei em silêncio. Se escutou um pio agudo e curto. Uns segundos depois, a torneira do banheiro e a água correndo. Às vezes, descia uns minutos depois, perfeitamente penteada e serena. Outras vezes tomava uma ducha e descia diretamente em pijama.

Sara não queria sair. Estudando o seu comportamento pensei que talvez sofresse algum princípio de agorafobia. Às vezes colocava uma cadeira no jardim e tentava convencê-la de sair um pouco. Porém era inútil. Ainda conservava uma pele radiante de energia e estava cada vez mais bonita, como se passasse o dia fazendo exercícios debaixo do sol. De tempos em tempos, fazendo as minhas coisas, encontrava uma pluma. No piso junto à porta da copa, detrás da lata de café, entre os talheres, ou ainda úmida no box. As recolhia, cuidando que ela não me visse fazendo isso, e as metia no vaso sanitário. Às vezes ficava olhando como iam embora com a água. Às vezes o vaso voltava a se encher, a água se aquietava, como um espelho outra vez, e mesmo assim seguia ali olhando, pensando se seria necessário voltar ao supermercado, se realmente se justificava encher os carrinhos com tanto lixo, pensando em Sara, no que é que havia no jardim.

Uma tarde, Silvia me ligou para avisar que estava de cama, com uma gripe feroz. Disse que não poderia nos visitar. Me perguntou se eu me viraria sem ela e então entendia que não poder nos visitar significava que não poderia trazer mais caixas. Lhe perguntei se tinha febre, se estava comendo bem, se tinha ido a um médico, e quando a deixei suficientemente ocupada com suas respostas, disse que tinha que desligar e desliguei. O telefone voltou a tocar, mas não o atendi. Víamos televisão. Quando trouxe minha comida, Sara não se levantou para ir a seu quarto. Olhou o jardim até que eu terminasse de comer, e só então voltou ao programa que estávamos vendo.

No dia seguinte, antes de voltar para casa, passei pelo supermercado. Pus algumas coisas no meu carrinho, o de sempre. Passeei entre as gôndolas como se fizesse um reconhecimento do mercado pela primeira vez. Me detive na seção de animais de estimação, onde havia comida para cachorros, gatos, coelhos, pássaros, peixes. Levantei alguns alimentos para saber o que se eram. Li do que eram feitos, suas calorias, e as quantidades que recomendadas para cada raça, peso e idade. Depois, fui à seção de jardinaria, onde só havia plantas com ou sem flor, vasos e terra, então voltei outra vez à seção dos animais de estimação e fique ali pensando no que fazer depois. As pessoas chegavam com seus carrinhos e se moviam se esquivando de mim. Anunciaram nos alto-falantes a promoção de laticínios para o Dia das Mães e passaram uma música melódica sobre um sujeito que tinha várias mulheres mas sentia falta de seu primeiro amor, até que final empurrei o carrinho e voltei à seção de enlatados.

Essa noite, Sara demorou a dormir. Meu quarto estava embaixo do dela, e escutei-a caminhar nervosa no teto, se deixar, voltar a levantar. Me perguntei em que condições estaria o quarto, não havia subido desde que ela tinha chegado, talvez o lugar estivesse um verdadeiro desastre, um curral cheio de sujeira e penas.

A terceira noite depois do telefonema de Silvia, antes de voltar à casa, me detive para ver as gaiolas de pássaros que estavam penduradas do toldo de uma veterinária. Nenhum se parecia com o pardal que havia visto na casa de Silvia. Eram coloridos, e em geral um pouco maiores. Fiquei ali um pouco, até que um vendedor se aproximou perguntando se eu estava interessado em algum pássaro. Disse que não, que de jeito nenhum, que só estava olhando. Ficou por perto, mexendo em caixas, olhando para a rua, depois entendeu que eu realmente não compraria nada, e voltou para o balcão.

Em casa, Sara esperava no sofá, erguida em seu exercício de ioga. Nos cumprimentamos.
- Oi, Sara.

- Oi, papai.

Estava perdendo suas bochechas rosadas e já não estava tão bem quanto nos dias anteriores. Preparei minha comida, me sentei no sofá e liguei o televisor. Depois de um tempo, Sara disse:
- Paizinho…
Engoli o que estava mastigando e baixei o volume, duvidando de que realmente tivesse falado, mas ali estava, com os joelhos juntos e as mãos sobre os joelhos, me olhando.
- Que? – eu disse.

- Você me ama?

Fiz um gesto com a mão, acompanhado de um assentimento. Tudo em conjunto significava que sim, que claro. Era minha filha, não? E ainda assim, por via das dúvidas, pensando sobretudo o que minha ex-mulher teria considerado “o correto” disse:
- Sim, meu amor. Claro.

E então Sara sorriu, uma vez mais, e olhou o jardim durante o resto do programa.

Voltamos a dormir mal, ela passeando de um lado ao outro do quarto, eu dando voltas em minha cama até que adormeci. Na manhã seguinte, chamei Silvia. Era sábado, mas não atendia ao telefone. Chamei mais tarde, e por volta do meio-dia também. Deixei uma mensagem, mas não respondeu. Sara esteve toda a manhã sentada no sofá, olhando o jardim. Seus cabelos estavam desarrumados e já não se sentava tão ereta, parecia muito cansada. Perguntei se estava tudo bem e ela disse:
- Sim, papai.

- Por que você não sai um pouco ao jardim?

- Não, papai.



Pensando na conversa na noite anterior, me ocorreu que poderia perguntar a ela se me amava, mas em seguida me pareceu uma estupidez. Voltei a telefonar a Silvia. Deixei outra mensagem. Em voz baixa, tomando o cuidado para que Sara não escutasse, disse para a secretária eletrônica:

- É urgente, por favor.
Esperamos sentados cada um em seu sofá, com o televisor ligado. Umas horas mais tarde, Sara disse:
- Com licença, papai.

Se trancou em seu quarto. Desliguei o televisor para escutar melhor: Sara não fez nenhum barulho. Decidi que telefonaria a Silvia uma vez mais. Porém, levantei o gancho, escutei o sinal de linha e desliguei. Fui de carro até a loja de bichos, procurei o vendedor e lhe disse que necessitava de um pássaro pequeno, o menor que tivesse. O vendedor abriu um catálogo com fotografias e disse que os preços e a alimentação variavam de uma espécie para outra.

- Você gosta dos exóticos ou prefere algo mais familiar?

Golpeei o tampo com a palma da mão. Algumas coisas saltaram no balcão e o vendedor ficou em silêncio, me olhando. Apontei para um pássaro pequeno, escuro, que se movia nervoso de um lado a outro de sua gaiola. Me cobraram cento e vinte pesos e me entregaram em uma caixa quadrada de cartolina verde com pequenos buracos, um saco grátis de alpiste que não aceitei e um folheto do criador com a foto do pássaro na frente.
Quando voltei, Sara continuava trancada. Pela primeira vez desde que ela estava em casa, subi e entrei no quarto. Estava sentada na cama em frente à janela aberta. Me olhou, mas nenhum de nós dois disse nada. Estava tão pálida que parecia doente. O quarto estava limpo e ordenado, a porta do banheiro encostada. Havia umas vinte caixas de sapatos sobre a escrivaninha, mas desmontadas – de modo que não ocupavam tanto espaço – e empilhadas cuidadosamente umas sobre as outras. A gaiola pendia vazia perto da janela. Na mesinha de cabeceira, perto do abajur, o porta-retrato que tinha levado da casa de sua mãe. O pássaro se moveu e escutamos suas patas na cartolina, mas Sara permaneceu imóvel. Deixei a caixa sobre a escrivaninha e, sem dizer nada, saí do quarto e fechei a porta. Então me dei conta de que não me sentia bem. Me apoiei na parede para descansar um momento. Olhei o folheto do criador, que ainda levava na mão. No verso, havia informações sobre o cuidado do pássaro e seus ciclos de procriação. Ressaltavam a necessidade da espécie se acasalar nos períodos quentes e as coisas que se podia fazer para que os anos de cativeiro fossem os mais amenos possíveis. Escutei um pio breve, e depois a torneira do chuveiro. Quando a água começou a correr me senti um pouco melhor e soube que, de alguma forma, conseguiria descer as escadas.


Tradução de Ronaldo Pelli e Douglas Duarte


Vera Lúcia de Oliveira - Poema



SEMPRE



fui sempre
de percorrer na carne
o puído dos vãos
sempre de pôr o pé
na intimidade
das veias
sempre de lavrar
os dias mais
ferozes
para que doendo
amansem a morte


In. livro Entre as junturas dos ossos.
Imagem retirada da Internet: mulher

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