Maurilio Tadeu de Campos - Crônica




Tempo de Criança





Fui criança num tempo em que a alegria predominava junto com a simplicidade, a pureza de espírito e a humildade. A minha família residia numa casa simples, de madeira, num bairro de muitas casas semelhantes.  Ruas de terra, árvores nos quintais, belos e arrumados jardins com plantas e flores diversas adornando.  
Levantávamos cedo todos os dias. Os adultos iam para a lida; a criançada geralmente ia para a escola; na volta, a lição de casa e os momentos para os folguedos. As brincadeiras eram alegres e saudáveis, inocentes, típicas da imaginação infantil.  Em cada época predominava um brinquedo especial, entre eles o jogo de pião, bolinhas de gude, queimada, além do período que coincidia com os ventos mais constantes, que propiciava empinar pipas.
As famílias eram católicas e, como de praxe, ouviam a “hora do Ângelus” pelo rádio, sempre antes do jantar. Em seguida, mais atenção à programação radiofônica e, por volta das nove da noite, já estávamos prontos para dormir. Mesmo os adultos não se recolhiam tão tarde.
Lembro que podíamos deixar as portas e as janelas abertas durante todo o dia, desde o amanhecer até o por do sol. Não tínhamos medo de ladrões, nem nos preocupávamos com atos violentos de qualquer natureza porque, se aconteciam, eram raríssimos. A vizinhança era amistosa e predominavam as boas relações de amizade. Nos dias quentes as cadeiras iam para a calçada, durante a costumeira prosa dos adultos. Nós, crianças daquele tempo, adorávamos as noites calorentas porque podíamos brincar um pouco mais, enquanto os adultos conversavam.
O mês de junho era a época de reverenciar Santo Antônio, São João e São Pedro. As casas com quintais maiores reuniam as pessoas da vizinhança para as festas juninas. Ouvíamos música e ficávamos em volta da fogueira, alegres, de rostos aquecidos. E nos divertíamos ouvindo as estórias dos adultos, contadas com muitos detalhes, aqueles “causos” de assombração, de mulas-sem-cabeça, do saci-pererê e de tantos outros personagens que  provocavam curiosidade e medo. Adorávamos os doces, bolos, amendoins torradinhos doces e salgados, pipocas, paçocas, refrescos, típicos daquela festança, todos feitos em casa com muito carinho.
No final de cada ano, no Natal, uma ceia especial, comemorando o nascimento de Jesus. Depois da ceia, íamos à igreja, para a “missa do galo”. No dia seguinte, embaixo das camas das crianças os presentes do Papai Noel. Os meninos ganhavam bolas ou carrinhos de madeira e as meninas, quase sempre, recebiam suas belas e bem arrumadas bonecas. Reunidos, mostrávamos os nossos presentes e compartilhávamos os brinquedos naqueles momentos mágicos em que os sonhos e as fantasias brotavam das mentes felizes e inocentes.
Hoje, com tanta tecnologia, os pequenos perderam a pureza mais cedo, deixaram de lado a inocência e nem sabem mais como preservar a felicidade, pois vivem em ambientes postiços, em lares despedaçados, desunidos e individualistas demais. Seus brinquedos não são mais compartilhados porque foram concebidos para distrações solitárias. Os videogames e os computadores predominam e conduzem as crianças ao individualismo, deixando-as despreparadas para o exercício da convivência social mais saudável.  
Sinto saudades do meu tempo de criança, um tempo feliz e, seguramente, muito mais saudável do que os dos dias atuais.



Maurilio Tadeu de Campos é professor, poeta e escritor. Membro efetivo da Academia Santista de Letras e presidente da Contemporânea Projetos Culturais. É autor do livro “Relações & Compromissos”, editado em 2010.


Imagem retirada da Internet: empinador de Pipa


Weder Soares dos Santos - Poema


Faísca de Buriti

    Poema dedicado ao amigo poeta Valdivino Braz

Deus menino
Abençoe os poetas,
seus cadernos e letras,
tempere rimas
com pimenta de cheiro.
Da acidez dos cantos
adoce uma estrofe pequenina
bem feita com nome de menino.
Sou faisca de asteroide,
Singela janela,
Na luz de meia estação.
Poeta maturado,
Sereno, maldade,
Saudades,
no lombo da liberdade.
Fui amigo da fome,
com ela me banqueteei
de nada.
Do nada,
bordei a pauta,
apontei os lapsos,
segurei o lápis,
e tirei do borralho
Braz as
que espalhei
pelos vãos
da terra partida,
perdida nos sonhos
de um menino,
faisca,
poema,
estradas
de outras esferas.
Segurei
na mão de Deus,
tapeei o capeta,
na sua cauda encardida
amarrei um cometa.
Escombros amarelos,
maça envenenada,
bruxa malvada,
herói sem capa,
ou espada
abrindo o Porteirão.
Deus mundo,
caduco,
nos cascos do tempo.
Lama, lima,
lâminas,
açoitando a pele.
Lá estão elas
as procelas encadernadas
capa, contracapa
anunciando a aurora bucólica.
Poeta de chapéu
bengala e bigodes.
A Infância ainda canta,
no embornal surrado,
no estranho de suas retinas:
meninas amadas,
no escuro das madrugadas.
Sobre a face das pedras
Tapiocangas.
Hoje saliva amadurecida,
versos menino,
vozes
Poeti(a)mando,
Permitindo eternidade.

Lacordaire Vieira - 1946 - 2011



FORMIGAMENTO





- O próximo - anunciou a recpcionista do Dr. Isaac.

As pessoas se olham sem saber quem é o próximo, mas a dúvida se dissipa em seguida com a chamada pelo nome:

-Miúcha! Quem é Miúcha?
-Sou eu, meu bem!
-Pode entrar!

Miúcha se levanta com o assombro de todos pela beleza global de sua altura e entra pela porta semi-aberta do consultório.
Dr. Isaac, cabeça baixa, examina-lhe a ficha: "Miúcha Miúra, brasileira, goiana, goianiense, 22 anos, Setor Oeste, modelo fotográfico."

- É a primeira vez?
- Como assim?
- O enjôo... quando começou?
- Há um mês mais ou menos...
- Desde que você trabalha na Agência?
- Há uns dois meses...
- Você já tinha sentido essas ânsias de vômitos antes?
- Do jeito de agora, não...
- Como é o seu trabalho?
- Difícil, doutor...muito difícil!
- Quantas horas por dia?
- Umas doze horas. Entro às dez da manhã e às vezes fico até meia-noite, uma hora...
- O que você faz?
- Tudo!
- Tudo como?
- É!...Todo tipo de fotografia...Todo tipo de pose. Nua! ...seminua!... madame... sensual... de todo jeito.
- Você fica tensa?
- Às vezes..
- Sente-se aí! (Indica-lhe uma caminha alta e branca com uma escadinha ao lado)
- Tire a blusa (Apalpa-lhe o pulso, mede a pressão)
- Deita! (Põe luvas brancas, pressiona a barriga e os seios).
- Dói?
- Não!
- E aqui?
- Também não!...
- Pode levantar (Senta-se novamente atrás da mesa com tampão de vidro e continua a consulta).
- Como são suas fezes?
- As minhas fezes?...
- É!... Se são amarelas, escuras? ...
- Amareladas...Acho que são amareladas... Nunca observei bem...
- Suas fezes ficam no fundo ou flutuam no vaso?
- Um pouco em cima... e um pouco embaixo... As primeiras que saem ficam em cima...
- Têm mau cheiro?
- Tem vez que tem... Mas não é sempre não...
- À noite, sente uma coceira no ânus?
- Outro dia, parece que percebi um formigamentozinho...
- Está bem! Faça esses exames, tome o lombrigueiro e volte na próxima semana (Passa-lhe o pedido e a receita, e anuncia para a recepcionista o fim da consulta).
- O próximo!
- O próximo! - repete a secretária abrindo-lhe a porta. (Ainda no ar, um suave sabor de perfume loiro...)



In. Detalhes em |Preto e Branco. Lacordaire Vieira. Goiânia:Editora da UCG, 1995, p.73-75
Imagem: Loira

Francisco Perna Filho - Poema



Foto by Francisco Perna Filho - Serra do Lageado - Tocantins


Este poema é uma homenagem ao Professor Lacordaire Vieira, que nos deixou ontem, 11 e outubro, aos 65 anos.


MONTANHA


A palavra pesada
persegue a pedra,
revela o austero pulsar do silêncio
e, com ele, inaugura um olhar de montanha.
Do alto, a alma encanta-se
e o olhar precipita-se em direção ao luzir da cidade.
Do baixo, o corpo, enfermo, claudica
e os braços perdem-se na impotência primordial
de uma escalada.
A montanha é sentida
e nela diviso o inferno e o paraíso
da Babel recriada.
Estando no centro,
a minha alma assesta a caverna
na recomposição do paraíso Dantesco.
Dessa forma,
a montanha enternece o poeta
e a palavra mais leve
revela a montanha/palavra
Refletida no olhar.

Caio Fernando Abreu - Conto


Linda, uma história horrível


    Para Sergio Keuchguerian                          




Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa. Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.
Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café. — A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.
— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?

— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

— A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião. 
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

(*) Ana Cristina César: "A teus pés".

In.Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras 1988.
Imagem retirada da Internet: cigarro

Tomas Tranströmer - Poema


PÁSSAROS MATINAIS 



Desperto o automóvel
que tem o pára-brisas coberto de pólen.
Coloco os óculos de sol.
O canto dos pássaros escurece.

Enquanto isso outro homem compra um diário
na estação de comboio
junto a um grande vagão de carga
completamente vermelho de ferrugem
que cintila ao sol.

Não há vazios por aqui.

Cruza o calor da primavera um corredor frio
por onde alguém entra depressa
e conta como foi caluniado
até na Direcção.

Por uma parte de trás da paisagem
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agoirento.
E o melro que se move em todas as direcções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:

Não há vazios por aqui.

É fantástico sentir como cresce o meu poema
enquanto me vou encolhendo
Cresce, ocupa o meu lugar.

Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.

Tradução do poeta João Luís Barreto Guimarães

Imagem retirada da Internet: pássaros

Tomas Tranströmer - Nobel 2011 - Poema


HISTÓRIAS DE MARINHEIROS 


Há dias de inverno sem neve em que o mar é parente
de zonas montanhosas, encolhido sob plumagem cinza,
azul só por um minuto, longas horas com ondas quais pálidos
linces, buscando em vão sustento nas pedras de à beira-mar.

Em dias como estes saem do mar restos de naufrágios em busca
de seus proprietários, sentados no bulício da cidade, e afogadas
tripulações vêm a terra, mais ténues que fumo de cachimbo.

(No Norte andam os verdadeiros linces, com garras afiadas
e olhos sonhadores. No Norte, onde o dia
vive numa mina, de dia e de noite.

Ali, onde o único sobrevivente pode estar
junto ao forno da Aurora Boreal escutando
a música dos mortos de frio).

Tradução do poeta João Luís Barreto Guimarães


Imagem: Tomas Tranströmer

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