Morre aos 95 anos a artista plástica goiana Goiandira do Couto

Artista Plástica Goiana - Foto de arquivo
(by Walter Alves - O Popular)


A artista plástica goiana Goiandira do Couto morreu de falência múltipla de órgãos, no fim da tarde desta segunda-feira (22), em Goiânia, aos 95 anos. Ela sofreu complicações de um acidente doméstico, no dia 29 de julho, quando fraturou o fêmur. Inventora de uma técnica que a tornou famosa internacionalmente, Goiandira do Couto extraía 551 tonalidades da areia da Serra Dourada para criar telas em que destacava a paisagem da Vila Boa em Goiás.  Professora aposentada e fundadora da Escola de Artes Veiga Valle, a artista plástica vendeu praticamente todas as telas  que produziu, a maior parte para  personalidades como presidentes, governadores e artistas. Goiandira Couto também foi fundadora da Igreja Messiânica na cidade de Catalão (GO).
O sepultamento deve acontecer na cidade de Goiás, na terça-feira (23), em horário a ser definido. Natural de Catalão, Goiandira completaria 96 anos no dia 12 de setembro.

Fonte G1

Maisa Lima - Conto

Na Curva da Maria Bárbara


No começo, todo mundo pensava que não tinha nada. Depois, foi pior: deram-se conta que não tinham nada mesmo. E desgraça das desgraças: orgulhosos. Em suma, uma gente fadada a não sair do lugar.

Aqueles que julgavam ter se livrado do visgo da pasmaceira estavam afundados nele até o pescoço. Se acreditavam melhores que o resto do mundo. E por resto do mundo, entenda-se a beira de serra em que viviam.

O resto não importava. Até porque, eles não existiam para o resto. Era gastar arrogância à toa. Mas, até mesmo onde o nada cruza com lugar nenhum, há aqueles que fazem o povo andar. Zé Esteira era desses.

Olhando pro seu carro estacionado no quintal, a gente só não dizia que estava num desmanche porque era só um. Se não contasse, é claro, com a carreta do carro de boi. Tão abandonada, que se a chuva continuasse era capaz de virar lenha.

O carro do Zé tinha chassi, rodas, volante e, luxo dos luxos, bancos! Quando ia pra cidade, só não usufruía da civilização quem não quisesse. Levava todo mundo. Só que a civilização também usufruía do Zé: bebia até cair os dentes. Mas, nunca matou ninguém.

Até que Daltiva, desgostosa da vida que levava com Aelcio Abacaxi (só o raio dessa fruta crescia no areal que o homem escolheu a dedo da terra que o pai deixou de herança para a prole de 14 filhos), tentou se matar afogada no lamaçal da Curva da Maria Bárbara. Mas não com o Zé. Outro só ia achar que era mais um cupim no chapadão, com um ar engraçado de nortista. Mas o Zé, não.

Ele gosta de conversar, mas gosta mais ainda que o freguês concorde com suas justíssimas palavras. Aliás, quanto mais bêbado, mais justas.

Quando Daltiva sequer lhe respondeu com o habitual – hum!, notou que algo não ia bem. Só demorou cinco quilômetros para se dar conta que, ou o planeta Chupão tinha sugado Daltiva (sorte do Aelcio, mas ele não merecia), ou tinha comprado passagem só de ida para o Vale dos Suicidas, ou, pior de tudo, tinha deixado o Zé falando sozinho. Essa última possibilidade fez com que reagisse. Um homem tão bom não merece esse tratamento! Ainda mais que Daltiva era a única que arriscou de voltar com ele e não gostava que o povo o visse falando sozinho.

Daltiva, que nunca foi apresentada a qualquer lei da física – nome lindo pra uma vaca! – não firmou no banco e foi ver de perto porque o chapadão é terra boa pra soja.

Zé não agüentou a desfeita. Com o ar mais sério do que o de Zumbi quando assumiu o lugar de Gangazumba em Palmares (isso é por minha conta. Zé nunca ouviu falar em nenhum dos dois. Mas é preto e eu, um daqueles que, em vão, tento transformar a pasmaceira em verniz), declarou:

-Sou bão demais, Daltiva. Carona dou pra todo mundo. Mas gosto que me avisa quando vai descer.

Daltiva, digna, apesar da lama que pingava da sobrancelha, voltou para o chassi com rodas. Com o orgulho em frangalhos, mas voltou. O chapadão não era famoso pela animação (os gaúchos ainda não eram praga) e 17 quilômetros são de se respeitar. Ainda mais que até os brincos – ouro puro da Bahia – estavam marrons e ela não queria ser confundida com um tatu-peba fashion.

 Mas ficou mais de mês sem ir pra civilização. O Zé não percebeu, porque, graças a Deus, pinga apaga qualquer desfeita. E o Aelcio, coitado, pensou que era amor.


* Maísa Lima é Jornalista, Editora de Economia do Jornal do Tocantins.

Imagem retirada da Internet: Humortalha

Romério Rômulo - Poema



pontes, ouro preto


as pontes que martelo e que atormento
carregam uma espécie de ungüento
que vila rica deixou em cada delas.

o sujo, o não calado, o renitente
perderam a vida, a mão, a língua, o dente
por discordar do que havia sobre elas.

quantos soberbos sobre as pontes disfarçaram
suas viagens de quem nasceu do ouro
e o ferro em apetite aguçaram.

tiveram, em pindorama, estes senhores
que carregar na consciência, se a tiveram,
o grito amargo das dores que causaram!
                                    (de quantas pontes vive ouro preto?)



In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Ouro Preto

Lêdo Ivo - Conto


A resposta




Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, .solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:


— Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.


In.  Ficção, nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.
Fonte: Releituras
Imagem retirada da Internet: Lêdo Ivo

Carlos Drummond de Andrade - Poema



O chão é cama


O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

Imagem retirada da Internet: cama

Rosy Feros - Poema




Egon Schiele
Dedos do silêncio


Vem...
          Me toma à beira da noite,
          caminha por mim
          com seus passos molhados,
          despeja seu rio no meu cálice
          – pois minha emoção é só água.

Vem...
          Que eu lhe dou um trago
          deste meu vinho guardado,
          destas minhas uvas
          frescas de inverno...
          Que eu derramo em gotas meu perfume
          pelos quatro cantos do seu corpo,
          vestindo sua pele com a camurça
          da nudez e do silêncio.

Vem...
          Deita e me canta,
          sente meu desejo
          se esgueirando pelos seus dedos,
          veleja sem bússola
          pelos meus sentidos,
          me olha como quem pede lua...

          Deixa eu sussurrar minhas folhas,
          soprar minhas pétalas
          pelo seu peito de relva,
          pelo seu solo macio.
          Vem... Não volta,
          esquece a hora morta
          do cotidiano de sempre.
          Me toca feito música
          e deixa eu cantar meu bolero
          pelas suas curvas de carne...

          Sinto-me inocência
          passeando por suas alturas,
          por seus andares cheios
          da mais noturna noite densa.

          Desvenda essa face molhada
          e me mostra a sua vertente original
          de emoção-fêmea pura...
          Que eu o espero na branca paz
          do meu ventre adormecido,
          dos meus braços plenos
          de fogueiras e cantigas.

Vem...
          Que eu desfolho
          toda essa sua vontade nua,
          que eu desperto
          todo esse seu lado cigano...
          pois o meu leite é morno
          e é rosa franca meu sorriso.
          Deixa seu barco
          navegar pelo meu leito,
          que eu carrego no peito a ânsia
          de hastear a bandeira do infinito...

Vem...
          Deita... Me namora...
          Me afoga no espelho de luz
          dessa madrugada afora,
          me diz que no nosso tempo
          não há tempo nem hora,
          que eu não agüento
          a flor do sexo que arde
          nas entranhas de mim...

          Deixa que eu amanheça
          na espuma dessa sua onda quente,
          deixa sua emoção fluir
          da garganta num repente...
          Que eu carrego nos olhos de relento
          a voz que lhe pede a terra
          e que lhe entrega o mar.


Imagem  by  Egon Schiele

Adélia Prado - Poema



Moça na cama


Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.
A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,
tomo a bênção e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.
Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.
Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.
Sim, mamãe, já vou:
passear na praça em ninguém me ralhar.
Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moa de moços no bar, violão e olhos
difíceis de sair de mim.
Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.
O céu é aqui, mamãe.
Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no topor
dos monsenhores podados.
Posso sofrer amanhã
a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.
As fábricas têm os seus pátios,
os muros tem seu atrás.
No quartel são gentis comigo.
Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo
me ungindo com óleo santo.
Da vida quero a paixão.
E quero escravos, sou lassa.
Com amor de zanga e momo
quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.
Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.



In.CSeabra
Imagem retirada da Internet: na cama

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