Raul de Leôni - Poema



Canção de todos




Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!


Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...


Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,


Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.


Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.


A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas


Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...


Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina


Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:


Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.


Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.


Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.


Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas


Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.


Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: almas

Raul de Leôni - Poema



Ciganos



Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.


Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.


Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...


Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...


Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.


Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.


Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.


E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.


Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.


E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: ciganos

Mécia Rodrigues - Ensaio Poético



La Bohème





para Egle Gruppi Turini, minha avó



Alguma coisa lírica soou na minha memória, quando entrei na Barão de Itapetininga, em meio à profusão dos pisca-piscas, à polifonia própria de dezembro e à infinita variedade de quinquilharias pelas vitrinas úmidas e garoentas. As palmeiras do Vale, a enorme árvore de natal ali montada, o Theatro Municipal.
2
Sabonetes em formato de noz. Da Kanitz. Havia as caixas grandes, com três, e a pequenas, com um. As caixas verde-claro, enfeitadas com papel transparente picado. No meio dele se acomodavam as nozes-sabonetes. E também havia as caixas de talco, de madrepérola, com esponjas tão leves que pareciam flutuar. E os chocolates da Kopenhagen.
3
O circo de Moscou, os doces sírios da ladeira Porto Geral, Os três mosqueteiros, O cavaleiro da máscara de ferro, Miguel Strogoff. As fotonovelas dos dias chuvosos, quando a máquina de costura deixava de ser pedalada. A caneta preta, de pena de irídio, do meu avô.
4
Subi até a Sete de Abril e entrei na galeria onde comprávamos, eu e minha mãe, os presentes de natal para minha avó. E, talvez, para reencontrar a ambas, eu procurava o sabonete da Kanitz.
5
A garoa se transformou numa chuva forte, que me obrigou a ficar parada na porta da galeria, na saída da praça Dom José Gaspar. Um punhal pintado na perna direita da minha calça jeans e uma rosa entrelaçada nele. Com essa displicência atravessei natais e invernos rigorosos, mp3 e gramophones, perfumes de pinheiro e todas as tempestades possíveis.
6
A chuva parou. As pessoas que, como eu, estavam por ali, esperando que ela passasse, começaram a se dispersar. E naquela pequena multidão eu via o vulto da minha avó e da minha mãe passando com caixas e caixas de sabonete e chocolates. E as notas claras de uma ária:
7
Al buio non se trova
Ma per fortuna è una notte di luna...
8
— Ah, como eu queria um Nintendo com dois controles e quatro cartuchos, suspirou a voz, ao meu lado, olhando para a vitrina. E depois, para mim. Era uma menina suja e mal vestida, de uns dez anos, cujo rosto brilhava com uma graça irresistível. — Você não queria um Nintendo daqueles? Ela perguntou bem alto. Dei um sorriso forçado. Eu estava atravessando a praça e havia parado um minuto em frente à uma loja de brinquedos, mais para olhar o movimento dos estudantes, costureiras, pequenas vendedoras de fósforos, gatunos, camelôs indo embora, vagabundos, homens de terno e gravata, mulheres cheias de charme.
9
— Você não me respondeu...e a menina cutucou minha perna com o dedo.
— O que eu não respondi?
— Sobre o Nintendo...

10
So bien...le angoscie tue,
Non le vuoi dir
Non le vuoi dir
11
Os corrimãos de ferro e as escadas de mármore da Estação da Luz, a litorina das 21h, um cravo vermelho em um vaso de vidro e a toalha branca de linho do vagão-restaurante. E uma hora depois, a casa da minha avó.
12
— Olha aqui, chatinha, eu disse para a garota suja, o que eu tenho de dinheiro dá pra comprar uma vela bem bonita, milk-shake e batatas fritas do McDonald’s, serve? — Para que a vela? ela perguntou. Fingi que não ouvi.
13
— Os dois de chocolate, falei para a moça do caixa. Peguei o troco e disse à garota: — Vamos sentar nas escadas do Municipal, acender a vela e falar mal dos natais, das pessoas, das injustiças, da falta de dinheiro. — Estão molhadas, disse a menina. — Com esse calor, já secaram.
14
A neve caindo devagar sobre os telhados, um quadro a óleo, a casa de penhores, as cinzas da lareira apagada. Sobe o pano no Teatro Régio de Turim, 1896. Libreto por Giusepi Giacasa e Luigi Flicca, baseado em Scènes de la Vie de Bohème, de Henri Murger.
15
Mal nos sentamos em um dos degraus, vinha vindo um homem cheio de pacotes, que pelo volume, supus serem os caros panetones da Dulca. Levantei e fui até onde ele estava: — Boa-noite, cavalheiro, preciso acender esta vela, o senhor teria um isqueiro para me emprestar? Ele se atrapalhou um pouco, pediu para eu segurar os pacotes — os panetones? — enquanto acendia um zippo. Que mais parecia um lança-chamas.
16
Pisquei para a menina, sentada na escada, segurando os mil-shakes e as batatas. Que, por sua vez, também piscou para mim. O homem me olhou, segurando o zippo aceso: — Você...e pigarreou. Encostei o pavio da vela na chama e sorri: — Eu?
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Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.
In povertá mia lieta
Scialo da gran signore
Rime ad inni d’ amore.
18
Acendi a vela vermelha, enfeitada com frisos dourados, e o nome da minha avó, escrito nela, brilhou mais do que todas as luzes do centro da cidade.





 In. Jornaleco

Nelson Ascher - Poema


Hölderlin


para Antonio Medina Rodrigues



Luz não se vê tão límpida
quanto, inundando a casa,
aquela que extravasa
fugaz de qualquer lâmpada
que, de repente, exalte-
-se e atinja, por um átimo,
à beira do blecaute
mais último, seu ótimo.
Cega ao fulgor, a orelha
talvez capte de esguelha
um ultra-som que, esgar-
çador como um lamento,
provém do filamento
no afã de se queimar.
 



Imagem retirada da Internet: filamento
In. Jornal de Poesia

Mário Quintana - Poema




O mapa



Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...


(E nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...


Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moca bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)


Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso


Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso...









Imagem retirada da Internet: Porto Alegre

Salgado Maranhão - Poema





DESLIMETES 10
(táxi blues)



eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
         — eu sou a luta.
O que há sido entregue aos urubus,
e de blues
         em
         blues
endominga as quartas-feiras
         — eu sou a luz
sob a sujeira.
(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)
eu sou ferro, eu sou a forra.
E fogo milenar desta caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco às estrelas.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
leito de terra negra
sob a água branca,
seu a lança
a arca do destino sobre os búzios.
e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
eu sou a luz em seu rito de sombras
— esse intocável brilho

Imagem retirada da Internet: blues

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