Bruno Tolentino - Poema



Via Crucis



A Via Crucis foi uma selvageria,
a Crucifixão uma brutalidade;
mas em três, quatro horas, acabou a agonia,
baixou a eternidade.

Eu vivo aqui, crucificada noite e dia,
carrego da manhã à tarde
o meu lenho de opróbrio e a noite me excrucia,
lenta, fria, covarde.

Ah, como eu preferia
que me crucificassem de uma vez, sem o alarde
de algum terceiro dia!

Mas toca-me seguir nessa monotonia,
a agonia de alçar-me do catre
e abrir de novo os braços, vazia.


In.As Horas de Katharina
Imagem retirada da Internet: Crucificação

Bruno Tolentino - Poema


bruno-tolentino


O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

de outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde o teu degredo,

onde o teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto

da ressurreição.




In. As horas de Katharina. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.180 
Imagem retirada da Internet: Bruno Tolentino

Bruno Tolentino - Poema





Os Deuses de Hoje




ihil obstat



  
II



É preciso que a música aparente
no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro
e os ritmos da terra e da semente
porque antes de ser forma foi primeiro
humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa
da argila lentamente, foi fazendo
do meu aprendizado o Seu compêndio


de opacidades cada vez mais claras,
e com silêncios sempre mais esplêndidos
foi limando, aguçando o que escutara




In. Plataforma para a poesia
Imagem retirada da Internet: Oleiro

Bruno Tolentino - Poema




MECANISMOS




Havia um azul sereno
naquele roxo florindo,
o jardim dava no tempo
e o tempo passava rindo.

É tudo de que me lembro.
Quase nada do que sinto.
Deu-se a flor ao pensamento
entre a memória e o instinto.

O mais é aquilo que invento,
as músicas que mal digo,
orvalhos que ficam sendo
daquele jardim antigo.

Carlos Drummond de Andrade - Poema





A UM AUSENTE





Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste


Imagem retirada da Internet: Saudade

Francisco Soares Feitosa - Poema



Architectura
                                                                                             
Um dia, Ela 
desenhará em chãos longínquos a casa só nossa, 
que eu farei com estas mãos.


Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés.


Às telhas —
hei de aprontar o barro mais macio,
e as formas serão por mim,
uma a uma, completadas;


Ela as alisará longamente — 
seus dedos molhados de um profundo silêncio:
só os pássaros.

Fortaleza, manhã de 19.11.1998




Imagem retirada da Internet: mãos

Francisco Soares Feitosa - Poema


Foto by Gustavo Penteado

O que digo entre as flores?


Meus olhos se consomem pela tua promessa"
(Salmo 119, 82)
 
 
O resto foi travo e mel  
que não se disse mais nada —  
em um   
ali: 
rubro o tempo, as faces.
      — Seu Francisco — indagou, aflito,   mestre Antônio (vaqueiro): —  o senhor mandou matar todos os novilhos,  foi assim mesmo que entendi,   e botar a melhor veste nos caminhos?  — Como ficará então esta fazenda?  Sem os bois que morrerem,  o que digo entre as flores? 
Diga nada não, mestre Antônio,  
os novilhos ressurgirão  da terra,  
nos passos largos das minhas sandálias.
E os caminhos ficarão de perfume,  
diga nada não, mestre Antônio,  
que ela estava morta,  
as flores sabem, outra vez,  
agora vive.
 
                                 Salvador, mormaço da tarde, 13.03.96
 
Nota: 
O novilho: in Lucas, 15,23: 
Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos


In. Jornal de Poesia

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...