Ronaldo Costa Fernandes - Lançamento


UM HOMEM E O MUNDO


Este romance de largo fôlego, Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, apresenta-se como um desafio ao leitor, desde seu título enigmático. Para pensá-lo com eficácia, ainda que não seja sua decifração, lembro de uma sugestiva passagem do poema do poeta, pintor e revolucionário inglês William Blake (1757-1827), denominado “O casamento do céu e do inferno”:

“Sem contrários não há progressão. A atração e a repulsa, a razão e a energia, o amor e o ódio são necessários à existência humana. Desses contrários emerge o que os religiosos chamam o Bem e o Mal. O Bem é o passivo que obedece à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia”.

Sendo um romance moderno e nosso contemporâneo, os contrários marcados com clareza abstrata por Blake, nele se expressam pela ambiguidade, pelo princípio da incerteza e ainda pelos inúmeros contrastes que nos marcam nas sociedades de classes que o capitalismo construiu e vem consolidando.

A narrativa da memória subterrânea dos tempos sombrios da ditadura militar se concentra no tema espinhoso da inviabilidade da constituição de um sujeito humano e social estável na nossa modernidade periférica perpassada pelo avanço e o atraso, como unidade contraditória. As personagens, a rigor, podem ser quase tudo e nada, ao mesmo tempo, inseridas num Rio de Janeiro que também é assim. Elas amam, odeiam, fogem, somem, escondem-se, viajam, retornam e não ficam, perseguem e são perseguidas, modulam-se por choques e trompaços, sem destino entre a vida e a morte.

Por isso a trama de seu mundo não se pode organizar: razão e desrazão trocam todo o tempo de lugar e de sinal, vivendo do acaso e no acaso. Assim também o Mal e o Bem, que nunca se completam nem são definitivos, estão sempre presentes, como virtudes sem metafísica nem transcendência.

As estruturas narrativas experimentam variações do ponto de vista, em terceira ou em primeira pessoas e a identificação dos narradores é sempre um exercício de descoberta para o leitor, mas uma vez percebidos acendem-se luzes para a coerência do narrado. Por sua vez os estilos dos enunciadores formam-se por um processo singular: as ações ou reflexões sempre comparecem como imagens, as quais são exploradas em várias facetas e se desdobram em muitas outras imagens, constituindo uma teia emaranhada que muito revela ou oculta em seu andamento, que podemos chamar dialético.
Valentim Facioli

SOBRE O AUTOR
Ronaldo Costa Fernandes publicou, entre outros romances, O viúvo (2005) e O morto solidário (1998). Ganhou vários prêmios, entre eles, o Casa de las Américas, Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Além de ficção, publicou poesia e ensaios. Dirigiu por nove anos o Centro de Estudos Brasileiros na Venezuela e, de volta ao Brasil, a Coordenação da Funarte em Brasília.


Fonte: Nankin
vendas@nankin.com.br

Mário Quintana - Poema


Canção da Garoa




Em cima do meu telhado,
Pirulin lulin lulin,
Um anjo, todo molhado,
Soluça no seu flautim.


O relógio vai bater;
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando para mim.


E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer:
Pirulin lulin lulin...



In. Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: anjo no telhado

Arseni Tarkovski (1907-1989) - Poema

VIVA, VIDA!






Não acredito em premonições, não temo superstições,
veneno e calúnia não vigoram sobre mim.
Não existe morte, senão plenitude no mundo.
Somos todos imortais; tudo é imortal.
Não é preciso temer a morte,
seja aos dezessete ou aos setenta.
Nada há além de presente e de luz;
escuridão e morte não existem neste mundo.
Chegados que somos todos à margem, sou um dos escolhidos
para puxar as redes quando o cardume da imortalidade as cumular.
Habitai a casa, e a casa se sustentará.
Invocarei um dos séculos ao acaso: eu o adentrarei
e nele construirei minha morada.
Sento-me portanto à mesma mesa
que vossos filhos, mães e esposas.
Uma só mesa para servir bisavô e neto:
o futuro se consuma aqui agora,
e quando eu erguer a minha mão,
os cinco raios de luz convosco ficarão.
Omoplatas minhas como vigas mestras,
sustentaram por minha vontade a revolução dos dias.
Medi o tempo com vara de agrimensor:
eu o venci como se voasse sobre os Urais.
Talhei as idades à minha medida.
Rumamos para o sul, um rastro de poeira pela estepe.
As altas ervas agitavam-se entre vapores
e o grilo dançarino,
ao perceber com suas antenas as ferraduras faiscantes,
profetizou-me, como monge possuído, a aniquilação.
Atei então, rápido, meu destino à sela,
ergui-me sobre os estribos como um menino
e agora cavalgo os tempos vindouros a meu ritmo.
Basta-me minha imortalidade,
o fluir de meu sangue de uma para outra era,
mas em troca de um canto quente e seguro
daria de bom grado minha vida,
conquanto sua agulha voadora
não me arrastasse, feito linha, mundo afora.




Tradução de Álvaro Machado


Poema de 1950, lido pelo autor no filme O Espelho (1974), dirigido por seu filho, Andrei Tarkovski.
Imagem retirada da Internet: imortalidade

Louise Labé - Poema


Soneto VI




Duas ou três vezes seja louvada
A volta do Astro claro, e sem demora
Esta que o olho seu olhar adora.
Que de manhã ela seja saudada,

E que também consiga, enfatuada,
Beijar somente o melhor dom da Flora,
Melhor aroma que já viu a Aurora,
E nos seus lábios fazer a morada!

Somente a mim este bem é devido,
Por tantos prantos e tempo perdido:
Mas, quando o vir, tanto o festejarei,

Tanto usarei dos olhos o poder,
Para maior vantagem receber,
Que, em breve, grande conquista farei.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.180.
Imagem retirada da Internet: lábios

Louise Labé - Poema


Soneto V




Vênus tão clara, pelo firmamento,
Escuta a voz que em queixas cantará,
Enquanto o rosto teu cintilará,
O seu cansaço e custoso tormento.

Meu olho vela em vigília a contento,
E ao te ver muito pranto verterá
Sobre meu leito mole, e o banhará,
Disso teus olhos têm conhecimento.

Pois são humanas as almas cansadas
Em seu repouso e sono apaixonadas.
Já não suporto o Sol e seu fulgor:

E quando estou quase toda desfeita,
E que meu corpo no leito se deita,
A noite toda eu choro minha dor.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.178.
Imagem retirada da Internet: Afrodite

Louise Labé - Poema


Soneto IV




Desde que Amor cruel envenenou
O peito meu no fogo que fulmina,
Ardi-me sempre na fúria divina,
Meu coração jamais o abandonou.

Qualquer tormento, a que ele me obrigou,
Qualquer perigo e vindoura ruína,
Ou mau presságio que tudo termina,
Meu coração jamais se amedrontou.

Por mais que Amor nos ataque raivoso,
Mais nos obriga a vê-lo venturoso,
Sempre saudável ao vir combater:

Não é por isso que nos favorece,
Ele que os Deuses e os homens esquece,
Mas por mais forte aos fortes parecer.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p.176
Imagem retirada da Internet: Hera

Louise Labé - Poema


Soneto III



Ó ânsias longas, ó espera ausente,
Tristes suspiros, prantos costumeiros,
Formando em mim tantos rios e aguaceiros
De que meus olhos são fonte e nascente!

Ó crueldade, ó dureza inclemente,
Olhares pios dos astrais luzeiros,
Do coração pleno ó amores primeiros,
Quereis mais forte a minha dor ardente?

Que contra mim o Amor seu arco traga,
Que lance novos fogos, novos dardos,
Que ele se irrite, e contra mim se firme:

Tão atingida estou por tantos lados
Que, se quiser abrir-me nova chaga,
Não haverá lugar para ferir-me.



Tradução de Felipe Fortuna



In. Louise Lambé: amor e loucura. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 174
Imagem retirada da Internet: cupido

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