Francisco Perna Filho - Poema

Não nos curvemos




Aguardemos, meu Amor,
ainda é dia,
e a noite não tardará,
sabemos.

Mas antes que ela chegue,
cantemos ao sol,
brindemos aos deuses,
sorvamos o perfume das flores.

Ninguém nos tirará a sensatez
e a razão. Não nos esqueçamos,
homens é o que somos,
apesar da bruteza de muitos.

Por isso, celebremos a vida,
o anúncio de cada nova manhã,
o sorriso dos nossos filhos,
e a voz com a qual nos fazemos ouvir.



Palmas-Tocantins-Brasil, 02 de fevereiro de 2011


Gilson Cavalcanti - Poema


Dobradiças de Veludo

janela. jaz nela o vão
de todas as esperas

o vôo embalsamado
das aves-primavera

janela de espiar
as moças (donzelas)
indo para a igreja
domingo

janela de adular o vazio
dentro da tarde que se vai
na silhueta do infinito
como um grito amarelo

(a saudade levada no bico)

janela de olhos vasculhando
o defunto em sua caixa
de música tocando seus ossos
de encontro às raízes que plantamos
sobre o cálcio da solidão
do sossego do gesso

pássaros assombrados
de asas de fogo fecham
a janelacônica

voo de enxugar o gesto
com o ferrolho da infância
no vão das coisas que passam
e ficam presas dentro da gente


In. Armazém de Versos
Imagem retirada da Internet: dobradiça

Pablo Neruda - Poema


















Angela Adonica



Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardía em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.


Gilberto Mendonça Teles - Poema


Ballet


Teu nome dança na palavra. Acerta
o timbre das vogais e, a cada instante,
se faz gleba e glicínia, descoberta
de um gêiser no vapor da consoante.

É ele que reluz na letra L,
no corpo da mulher que, airosa e fina,
se exibe no poema e, pele a pele,
deixa no ar seu perfil de bailarina.

É dele que provêm a forma, o estilo,
a beleza sem fim e sem começo:
o segredo maior e mais tranquilo
para ser dito apenas pelo avesso.



In. Linear G. São Paulo: Hedra, 2010, p.78.
Imagem retirada da Internet: Bailarina

Gilberto Mendonça Teles - Poema


















Simplesmente


Não quero mais ouvir falar de poesia
antiga tradicional ou moderna
trovadoresca clássica ou barroca
arcádica romântica ou realista

Não quero mais ouvir falar de poesia
simbolista unanimista ou futurista
vanguardista cubista ou dadaísta
surrealista ou modernista

épica lírica satírica ou dramática
religiosa mística ou goliardesca
cósmica anacreôntica ou semiótica

e muito menos de poesia
bucólica cortês, popular ou engajada
abstrata concreta cinética pura impura
experimental visual sonora ou táctil

Quero é pedir como Mário Quintana
- Retire todos os adjetivos e estará
ressalvada a Poesia.
Eu quero a Poesia, simplesmente.


In. Linear G. São Paulo: Hedra, 2010, 40-1.

João Guimarães Rosa - Poema



Consciência Cósmica




Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...


Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...


Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...



In. Magma - Fonte: Jornal de Poesia
Imagem by Alexandre Lettnin: redemoinho

João Guimarães Rosa - Poema


Luar



De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...


No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.


A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...


Desliza solta...


Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...



In. Magma - Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: Luar

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