Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) - Poema

Se eu morrer novo,sem poder publicar livro nenhum


Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.


Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.


Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser.


Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.



Fonte: Insite
Imagem retirada da Internet: Livro

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) - Poema




    O meu olhar é nítido como um girassol



    O meu olhar é nítido como um girassol.

    Tenho o costume de andar pelas estradas

    Olhando para a direita e para a esquerda,

    E de vez em quando olhando para trás...

    E o que vejo a cada momento

    É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

    E eu sei dar por isso muito bem...

    Sei ter o pasmo essencial

    Que tem uma criança se, ao nascer,

    Reparasse que nascera deveras...

    Sinto-me nascido a cada momento

    Para a eterna novidade do Mundo...


    Creio no mundo como num malmequer,

    Porque o vejo. Mas não penso nele

    Porque pensar é não compreender...


    O Mundo não se fez para pensarmos nele

    (Pensar é estar doente dos olhos)

    Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...


    Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...

    Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

    Mas porque a amo, e amo-a por isso

    Porque quem ama nunca sabe o que ama

    Nem sabe por que ama, nem o que é amar...


    Amar é a eterna inocência,

    E a única inocência não pensar...



    In. O Guardador de Rebanhos - Fonte: Insite
    Imagem retirada da Internet: caminhante

Leila Miccolis - Poema


SEREIA, JANAÍNA, IEMANJÁ




Vem meu veleiro navegar-me lendas
que abro oceanos nunca desbravados,
as portas líquidas dos meus reinados,
e armo de pérolas as nossas tendas...

Vê-me a nudez – afasta as alvas rendas,
que encontrarás tesouros afundados;
só que talvez, pra teres tais agrados,
ao mar pra sempre tua vida prendas.

Se mesmo assim o novo lar não temes,
se não recuas, e se ainda gemes,
por meu amor, sedento de paixão,

cheia de luzes, colorida amante,
eu verde, azul, e em brilhos deslumbrantes,
refratarei-me em tuas redes-mãos.



In. Jayrus

Imagem retirada da Internet: sereia

Leila Miccolis - Poema

Confissão




Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelas e as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...



In. Jayrus

Imagem retirada da Internet:

Leila Miccolis - Poema


A Seco




Tem coisas que a gente só diz de porre,
se não o outro corre;
mas passada a bebedeira,
a gente acha que fez besteira,
não devia ter falado,
que se expôs adoidado,
à toa e foi tolice.
Finge-se então que se esquece o que disse,
culpa-se a carência, a demência, a embriaguez,
responsáveis por tamanha estupidez.
E é aceitando este estranho cabedal
que quando se volta ao "estado normal",
cada vez mais sós, na defensiva,
corroídos morremos de cirrose afetiva.




In. Jayrus

Imagem retirada da Internet: bebida

Luiz de Aquino - Poema


















RIO QUENTE E EU




Na minha terra existe um rio.

Pequeno curso, pequeno caudal

que deságua límpido

nas turvas águas do Piracanjuba.


Corre alegre, borbulhante,

mantendo constante

a água clara

a trinta e sete graus.


Persistente, meu pequeno Rio Quente!

Foi ele a imagem primeira

do que chamei de rio.


Mas não é ele, ainda,

um rio de verdade. É ribeirão;

e na cidade (pouco mais que vila),

o Córrego de Caldas,

miúdo e manso: hospitaleiro

para o banho, farto de lambaris

de ingênuas pescarias.

Rio mesmo

é o Corumbá, violento e forte.

Vem do norte

e reforça o Paranaíba,

que nasce em Minas.


Rios são assim, feito a vida. Tímidos

primeiro, crescentes depois.

E viram grandes

quando grandes somos também

tal como grande nos parece o mundo.


Saudade de ser córrego:

hospitaleiro e manso.


In. Luiz de Miranda

Foto by Ricardo Borges Gonçalves

Luiz de Aquino - Poema
















A CASA NASCE DAS ÁGUAS





A casa de Aninha, a casa grande

na beira da ponte,

dá mão ao tempo e espera outro século.


Mas a casa está só.

Não há mais quem lhe varra o chão

e espane pó das histórias.


O tacho de cobre não coze mais doces:

Aninha descansa em São Miguel.

Não mais as histórias dos becos nem livros de cordel.


Doce Ana doutros anos,

força e voz, tempo e tempero.


Foi-se Ana, a cordeleira, cordilheira feito humana,

canto e coro, coralina, voz menina, canto forte

cristalina voz poesia.


A casa nasce das águas

à beira da ponte, à beira do tempo.

A casa escura das águas.

Rio Vermelho resmunga.

Rio velho, triste...

Rabugento, o Rio Vermelho.



In. SARAU. Goiânia: Edição do autor, 2003. p.152.

Foto by Zemaria: Casa de Cora

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