Marinalva Rego Barros - Poeta

ENCONTRO



Façam para mim

um vestido esvoaçante

com pequeninas flores

em tom pastel


Um banho fresco

com folhas de eucalipto

é essencial


Ah, não esqueçam de marcar

uma hora antecipada

pra que eu nade no rio

ao entardecer

(a essa hora ele me ensina

velhas lições de sedução)


e que eu possa avistar

um ipê roxo

solitário na paisagem

pra enternecer ainda mais

meu coração


A uma artesã sensível

encomendem um colar

discreto e romântico

e escondam de mim

todos os jornais:

corro o risco de distrair-me

com coisas da vida

e dos homens


Por fim,

rezem por mim

meus irmãos.

Rezem muito por mim

neste dia:

careço de todo perdão de Deus

para o festim da minha carne.



Imagem retirada da Internet: corpo

Álvaro Seiça Neves - Poema




Asilo





naquele Asilo de mármore e baba fria
a Morte entrou de passos apressados
sorvendo almas
berraram os maus mas em vão
os ombros
varas pontiagudas alinhadas ao Céu
ventilavam ondulantes
as orelhas cerradas de cera vivida
as têmporas
a testa
os nervos
balas rebentando de solidão
olhavam lancinantes
como guilhotinas de músculos dissecados
o raciocínio era pura irritação
e para todos
a Vida
chegava numa ambulância
mascarada de carro funerário
toda esta ferida era evasão
os tiros das espingardas
sobrevoavam a sala dos rumores
cadeiras de roda empilhadas em silêncio
e enfermeiras formosas
cuspindo descontracção
e para todos
as clarabóias que fendiam
o solo seco do cérebro comum
eram miragem de um deserto moribundo
guilhotinas
varas
e ventiladores
têmporas
testas de ranho
e nervos de cera
cheirando ao podre
ao esqueleto do caixão
a festa da Vida era a cólera da Morte
almofadas e pantufas
por muito que boas
eram apenas Nadas
naquele Asilo de mármore e baba fria
o único calor vinha das mãos apertadas


Imagem retirada da Internet:olhar

Marinalva Rego Barros - Poema


TRILHA



Os caminhos do teu endereço

São cheios de esquinas,

A estrada que conheço

Margeava um rio que partiu

E minha bússola,

Feita de amor antigo,

É hoje inexata.


Peço novas senhas:

Lamparinas na janela

Jasmineiro no portão

E um código secreto

Que só meu coração conheça.


Andarei por tua casa

Com sandálias de algodão

E farei um poema

Terno e pungente,

Como convém a um amor antigo

Bordado de ausências.


Imagem retirada da Internet: Lamparina

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema

Liberdade



Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.



Fonte: Mulheres

Imagem retirada da Internet: Pena

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema

Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.



Fonte: Mulheres

Imagem retirada da Internet: Nus

Francisco Perna Filho - Poema

NATAL




Eu nunca fiz um poema de Natal,

talvez por não sabê-lo,

embora compreenda sua simbologia.

Sei que o Cristo renasce em cada coração,

que as cidades se enchem de luzes coloridas e brilhantes,

que os homens tornam-se mais solidários e felizes.

Eu sei de tudo isso,

mas também sei dos homens empedernidos,

das mulheres maltratadas,

das crianças abusadas,

das trapaças,

e das sórdidas armações palacianas.

Eu sei de tanta coisa,

mas ainda sei tão pouco da vida,

talvez esteja aí a minha dificuldade para compor um poema natalino.

Seria fácil falar de presentes,

desejar votos de felicidades,

falar de abraços e sorrisos,

de manjedouras e presépios,

de um menino que nasce para salvação do mundo.

Talvez fosse simples assim,

mas a verdade se nos impõe cortante,

as cores, apesar indução midiática,

são de outras matizes, de menos brilho e bem doídas,

como no conto de Dostoievski “A Árvore de Natal na Casa do Cristo”,

ou no romance “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini,

ou, quem sabe, no absurdo de "A Metamorfose", de Franz Kafka.

Sei que num poema de Natal os leitores desejam cantatas,

louvores e muita alegria,

não havendo espaço para qualquer pensamento destoante

daquilo quem vem a ser bondade.

Tampouco para palavras que roubem a esperança de centenas de milhares de miseráveis

espalhados nas prisões,

nos campos de trabalho escravo,

nos hospitais e hospícios,

nos cárceres dos regimes totalitários.

Um poema de Natal

não comporta maldade,

estelionato,

usurpação.

Num poema de Natal

todos devem estar felizes,

solícitos e

amigáveis.

Por tudo isso,

é que eu sinto dificuldade em fazer um poema de Natal.

Para o ano que vem,

desejo que as coisas melhorem,

que a verdade consiga vencer os artifícios,

que os olhares possam refletir as almas,

que os homens consigam se dar as mãos,

que as crianças possam confiar nos pais,

e que os velhos tenham dignidade.

Para o ano que vem

eu não prometo um poema de Natal, ainda,

mas estou certo de que serei melhor,

que seremos melhores

em todos os aspectos.

Com tanta coisa para falar,

e o poema que não vem,

para este ano,

aproveito para dizer

que continuo acreditando no homem,

na sua bondade,

na sua criatividade,

no seu amor.

Aproveito para louvar a Deus,

na sua infinina sabedoria e nobreza,

que, apesar da maldade humana,

nunca abandona os seus filhos.

Aproveito para desejar um Feliz Natal!



Imagem retirada da Internet: crianças

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema














A anémona dos dias





Aquele que profanou o mar

E que traiu o arco azul do tempo

Falou da sua vitória


Disse que tinha ultrapassado a lei

Falou da sua liberdade

Falou de si próprio como de um Messias


Porém eu vi no chão suja e calcada

A transparente anêmona dos dias.




In. No Tempo Dividido e Mar Novo, Edições Salamandra, 1985, p. 67

Fonte:Mulheres

Imagem retirada da Internet: Anémona

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