Marinalva Rego Barros - Poema


TRILHA



Os caminhos do teu endereço

São cheios de esquinas,

A estrada que conheço

Margeava um rio que partiu

E minha bússola,

Feita de amor antigo,

É hoje inexata.


Peço novas senhas:

Lamparinas na janela

Jasmineiro no portão

E um código secreto

Que só meu coração conheça.


Andarei por tua casa

Com sandálias de algodão

E farei um poema

Terno e pungente,

Como convém a um amor antigo

Bordado de ausências.


Imagem retirada da Internet: Lamparina

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema

Liberdade



Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.



Fonte: Mulheres

Imagem retirada da Internet: Pena

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema

Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.



Fonte: Mulheres

Imagem retirada da Internet: Nus

Francisco Perna Filho - Poema

NATAL




Eu nunca fiz um poema de Natal,

talvez por não sabê-lo,

embora compreenda sua simbologia.

Sei que o Cristo renasce em cada coração,

que as cidades se enchem de luzes coloridas e brilhantes,

que os homens tornam-se mais solidários e felizes.

Eu sei de tudo isso,

mas também sei dos homens empedernidos,

das mulheres maltratadas,

das crianças abusadas,

das trapaças,

e das sórdidas armações palacianas.

Eu sei de tanta coisa,

mas ainda sei tão pouco da vida,

talvez esteja aí a minha dificuldade para compor um poema natalino.

Seria fácil falar de presentes,

desejar votos de felicidades,

falar de abraços e sorrisos,

de manjedouras e presépios,

de um menino que nasce para salvação do mundo.

Talvez fosse simples assim,

mas a verdade se nos impõe cortante,

as cores, apesar indução midiática,

são de outras matizes, de menos brilho e bem doídas,

como no conto de Dostoievski “A Árvore de Natal na Casa do Cristo”,

ou no romance “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini,

ou, quem sabe, no absurdo de "A Metamorfose", de Franz Kafka.

Sei que num poema de Natal os leitores desejam cantatas,

louvores e muita alegria,

não havendo espaço para qualquer pensamento destoante

daquilo quem vem a ser bondade.

Tampouco para palavras que roubem a esperança de centenas de milhares de miseráveis

espalhados nas prisões,

nos campos de trabalho escravo,

nos hospitais e hospícios,

nos cárceres dos regimes totalitários.

Um poema de Natal

não comporta maldade,

estelionato,

usurpação.

Num poema de Natal

todos devem estar felizes,

solícitos e

amigáveis.

Por tudo isso,

é que eu sinto dificuldade em fazer um poema de Natal.

Para o ano que vem,

desejo que as coisas melhorem,

que a verdade consiga vencer os artifícios,

que os olhares possam refletir as almas,

que os homens consigam se dar as mãos,

que as crianças possam confiar nos pais,

e que os velhos tenham dignidade.

Para o ano que vem

eu não prometo um poema de Natal, ainda,

mas estou certo de que serei melhor,

que seremos melhores

em todos os aspectos.

Com tanta coisa para falar,

e o poema que não vem,

para este ano,

aproveito para dizer

que continuo acreditando no homem,

na sua bondade,

na sua criatividade,

no seu amor.

Aproveito para louvar a Deus,

na sua infinina sabedoria e nobreza,

que, apesar da maldade humana,

nunca abandona os seus filhos.

Aproveito para desejar um Feliz Natal!



Imagem retirada da Internet: crianças

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema














A anémona dos dias





Aquele que profanou o mar

E que traiu o arco azul do tempo

Falou da sua vitória


Disse que tinha ultrapassado a lei

Falou da sua liberdade

Falou de si próprio como de um Messias


Porém eu vi no chão suja e calcada

A transparente anêmona dos dias.




In. No Tempo Dividido e Mar Novo, Edições Salamandra, 1985, p. 67

Fonte:Mulheres

Imagem retirada da Internet: Anémona

Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema


















Porque


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Fonte: In.No Tempo Dividido e Mar Novo, Edições Salamandra, 1985, p.79.
Foto by Ana Luar

Hermann Hesse - Poema


Sonhando Contigo



Às vezes quando me deito
e meus olhos se fecham,
com a chuva batendo na cornija
os seus dedos molhados,
tu vens a mim,
esguia corça hesitante,
dos territórios do sonho.
Então andamos ou nadamos ou voamos
por entre bosques, rios, bandos de animais,
estrelas e nuvens com tintas de arco-íris:
tu e eu, a caminho da terra de origem,
rodeados de mil formas e imagens do mundo,
ora na neve, ora ao fogo do sol,
ora afastados, ora muito juntos
e de mãos dadas.

Pela manhã o sono se dissipa,
afunda dentro de mim,
está em mim e já não é mais meu:
começo o dia calado, descontente e irritadiço,
porém algures continuamos a andar,
tu e eu, rodeados de coleções de imagens,
a interrogar-nos entre os encantos da vida
que nos embroma sem saber mentir.


In.Crises, 1928



Imagem retirada da Internet: chuva

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