Sophia de Mello Breyner Andresen - Poema


















Porque


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



Fonte: In.No Tempo Dividido e Mar Novo, Edições Salamandra, 1985, p.79.
Foto by Ana Luar

Hermann Hesse - Poema


Sonhando Contigo



Às vezes quando me deito
e meus olhos se fecham,
com a chuva batendo na cornija
os seus dedos molhados,
tu vens a mim,
esguia corça hesitante,
dos territórios do sonho.
Então andamos ou nadamos ou voamos
por entre bosques, rios, bandos de animais,
estrelas e nuvens com tintas de arco-íris:
tu e eu, a caminho da terra de origem,
rodeados de mil formas e imagens do mundo,
ora na neve, ora ao fogo do sol,
ora afastados, ora muito juntos
e de mãos dadas.

Pela manhã o sono se dissipa,
afunda dentro de mim,
está em mim e já não é mais meu:
começo o dia calado, descontente e irritadiço,
porém algures continuamos a andar,
tu e eu, rodeados de coleções de imagens,
a interrogar-nos entre os encantos da vida
que nos embroma sem saber mentir.


In.Crises, 1928



Imagem retirada da Internet: chuva

Hermann Hesse - Poema


Rabisco na Areia





Que encantamento e beleza
sejam brisa e calafrio,
que o delicioso e bom
tenha escassa duração
- fogo de artifício, flor,
nuvem, bolha de sabão,
riso de criança, olhar
de mulher no espelho, e tantas
outras coisas fabulosas
que, mal se descobrem, somem –
disso, com pena, sabemos.
Ao que é permanente e fixo
não queremos tanto bem:
gemas de gélido fogo,
ouros de pesado brilho,
por não falar nas estrelas
que tão altas não parecem
transitórias como nós
e não calam fundo na alma.
Não: parece que o melhor,
mais digno de amor, se inclina
para o fim, beirando a morte,
e o que mais encanta – notas
de música, que ao nascerem
já fogem, se desvanecem –
são brisas, são águas, caças
feridas de leve mágoa,
que nem pelo tempo de uma
batida de coração
deixam-se reter, prender.
Som após som, mal se tocam,
já se esvaem, vão-se embora.
Nosso coração assim
leal e fraternalmente
se entrega ao fugaz, ao vivo,
não ao seguro e durável.
Cansa-nos o permanente
- rochas, mundo estelar, jóias –
a nós, transmutantes, almas
de ar e bolhas de sabão,
cingidos ao tempo, efêmeros
a quem o orvalho na rosa,
o idílio de um passarinho,
o fim de um painel de nuvens,
fulgor de neve, arco-íris,
borboleta que esvoaça,
eco de riso que só
de passagem nos alcança,
pode valer uma festa
ou razão de dor. Amamos
o que é semelhante a nós,
e entendemos os rabiscos
que o vento deixa na areia.



Tradução de Geir Campos


In. Andares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1961p.215.
Imagem retirada da Internet: Hermann Hesse

Hermann Hesse - Poema


Andares




Como emurchece toda flor, e toda idade
juvenil cede à senil – cada andar da vida
floresce, qual a sabedoria e a virtude,
a seu tempo, e não há de durar para sempre.

A cada chamado da vida o coração
deve estar pronto para a despedida e para
novo começo, com ânimo e sem lamúrias,
aberto sempre para novos compromissos.
Dentro de cada começar mora um encanto
que nos dá forças e nos ajuda a viver.

Devemos ir contentes, de um lugar a outro,
sem apegar-nos a nenhum como a uma pátria:
não nos quer atados, o espírito do mundo
- quer que cresçamos, subindo andar por andar.
Mal a um tipo de vida nos acomodamos
e habituamos, cerca-nos o abatimento.

Só quem se dispõe a partir e a ir em frente
pode escapar à rotina paralisante.
É bem possível que a hora da morte ainda
de novos planos ponha-nos na direção:
para nós, não tem fim o chamado da vida...
Saúda, pois, e despede-te, coração!




Imagem retirada da Internet: Hermann Hesse

Hermann Hesse - Poema



















O POETA E SEU TEMPO







Fiel a imagens eternas, firme na contemplação,
tu estás pronto para o ato e para o sacrifício;
falta-te ainda, no entanto, um tempo desassombrado
de ofício e púlpito, confiança e autoridade.

Há de bastar-te, num posto perdido,
ante o deboche do mundo, compenetrado da fama que tens,
renunciando ao brilho e aos prazeres do mundo,
guardar aqueles tesouros que não azinhavram nunca.

Não te faz mal a zombaria das feiras,
enquanto ouves a voz sagrada, ao menos:
se ela entre incertezas cala, te sentes um renegado
do próprio coração – feito um bobo na terra.

Pois é melhor, por uma realização futura,
servir sofrendo, ser sacrificado,
do que ter grandeza e reino pela traição
ao sentido do teu sofrer – tua missão.


Tradução de Geir Campos



In. Andares ( Antologia Poética). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p.156.
Imagem retirada da Internet: Hermann Hesse

Hermann Hesse - Poema


DEGRAUS





Assim como as flores murcham
E a juventude cede à velhice,
Também os degraus da Vida,
A sabedoria e a virtude, a seu tempo,
Florescem e não duram eternamente.
A cada apelo da vida deve o coração
Estar pronto a despedir-se e a começar de novo,
Para, com coragem e sem lágrimas se
Dar a outras novas ligações. Em todo
O começo reside um encanto que nos
Protege e ajuda a viver

Serenos transpunhamos o espaço após espaço,
Não nos prendendo a nenhum elo, a um lar;
Sermos corrente ou parada não quer o
espírito do mundo
Mas de degrau em degrau elevar-nos e aumentar-nos.
Apenas nos habituamos a um círculo de vida,
Íntimos, ameaça-nos o torpor;
Só aquele que está pronto a partir e parte
Se furtará à paralisia dos hábitos.

Talvez também a hora da morte
Nos lance, jovens, para novos espaços,
O apelo da Vida nunca tem fim ...
Vamos, Coração, despede-te e cura-te!



In. O jogo das contas de vidro. Tradução de Carlos Leite.
Imagem retirada da Internet: Degraus

Wender Montenegro - Poema

Mea culpa ou Profissão de fé



ao poeta Francisco Carvalho



Semear poeiras e andrajos de esperas

dissecar os ossos das metáforas

acender espantalhos no amarelo das espigas.


Decantar o silêncio que sustenta o cais

ostentar um colar de metonímias

despir a voz da louca, cuja febre anuncia

um evangelho apócrifo.


Caminhar sob pedras como por milagre

ouvir a foz rouca dos rios da infância

borrifar no azul as flores do arco-íris.


Pintar um verão vazio de andorinhas

se encharcar de sol e devaneios

hastear um lenço sujo de saudade

ajustar os ponteiros na cópula dos pardais.


Imagem retirada da Internet: cais

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