Célio Pedreira - Crônica


As dores



Dia vem e o labutar diário dos espasmos a caminhar leitos e corredores largos. Investigar os óbvios para atender aos obscuros, eis a luta mais desigual que conheço. Assim como tentar curar saudade com antiálgicos, como tratar insônias com ópio. O plantão segue suas horas num ranger silêncioso, onde a ciência não aceita só ciência, exige zelo e afeto. Pedir zelo parece perto, mas alcançar afeto é pura arte. Quantas dores necessitam ser invertidas todos os dias?

Pois bem, são 5 horas da madrugada. Um ancião a confessar-me: - Tenho uma agonia no peito, é forte! Parece que tudo por dentro está fechando... a agonia sobe no pescoço, como fosse sufocar... daí minha mão esfria... parece dor mas não sei onde começa, nem onde termina, sei que não estou aguentando! Mas se o dia for amanhecer e o galo cantar, passa (...) Parece uma morrência! A ciência me chama para um estreito. A dor do ancião permanece. Minhas mãos, olhos, ouvidos, nariz e o artifício dos exames não logram esclarecer a agonia em chamas. Alguns paliativos imediatos e recorro aos tratados, aos protocolos, nada... a memória não encontra os atalhos certos para aquela dor.

Volto a procurar os olhos agora fechados do ancião no leito. Dorme. Lembro do galo que teceu um canto e não ouvi. Outras dores me encontram, inclusive as minhas. Resolvo voltar para uma conversa com o ancião já acordado. Está morando só. Não deseja mais as janelas, mantém a porta encostada para não ter o trabalho de abrir ou fechar, o apetite é miúdo, diz. Uma melancolia farta habita meus olhos. Conta mais, peço. É assim desde que, há sete meses, minha companheira de vida se foi... Um silêncio branco nos vestiu. Outra vez procurei o glossário do compêndio e não encontrei a palavra que procurava: Saudade! Levo o ancião para meus passos.


Célio Pedreira é Médico e Poeta, pertence a Academia Tocantinense de Letras. E-mail: Dr.celiopedreira@gmail.com

Imagem retirada da Internet: Busto-Ancião


Manuel Bandeira - Poema


Carta-Poema



Excelentíssimo Prefeito
Senhor Hildebrando de Góis,
Permiti que, rendido o preito
A que fazeis jus por quem sois,


Um poeta já sexagenário,
Que não tem outra aspiração
Senão viver de seu salário
Na sua limpa solidão,


Peça vistoria e visita
A este pátio para onde dá
O apartamento que ele habita
No Castelo há dois anos já.


É um pátio, mas é via pública,
E estando ainda por calçar,
Faz a vergonha da República
Junto à Avenida Beira-Mar!


Indiferentes ao capricho
Das posturas municipais,
A ele jogam todo o seu lixo
Os moradores sem quintais.


Que imundície! Tripas de peixe,
Cascas de fruta e ovo, papéis...
Não é natural que me queixe?
Meu Prefeito, vinde e vereis!


Quando chove, o chão vira lama:
São atoleiros, lodaçais,
Que disputam a palma à fama
Das velhas maremas letais!


A um distinto amigo europeu
Disse eu: — Não é no Paraguai
Que fica o Grande Chaco, este é o
Grande Chaco! Senão, olhai!


Excelentíssimo Prefeito
Hildebrando Araújo de Góis
A quem humilde rendo preito,
Por serdes vós, senhor, quem sois!


Mandai calçar a via pública
Que, sendo um vasto lagamar,
Faz a vergonha da República
Junto à Avenida Beira-Mar!


Fonte: Releituras - In. Manuel Bandeira - Antologia Poética", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2001, pág. 221.

Imagem retirada da Internet: Manuel Bandeira

Manuel Bandeira - Poema



O último poema



Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Fonte:Releituras - Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor", Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.

Imagem retirada da Internet: caderno

Manuel Bandeira - Poema

ARTE DE AMAR




Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.



Imagem retirada da Internet:amar

Francisco Perna Filho - Poema

Um menino nas nuvens


Para João Pedro



o primeiro voo,
e ele, sabendo-se no alto,
inventa anjos
nas nuvens da sua imaginação.

A infância ali,
a inocência de quem descobre o mundo
nas asas de um boing 737.

Apesar do medo de voar,
os seus olhos são só ternura,
quando passeia solto pelas nuvens da sua imaginação.

A vida se refaz
a tarde se alarga,
e eu, agradecido, volto para casa feliz.




Imagem retirada da Internet: Anjos

Brasigóis Felicio - Poema



PÁTRIA BRAZILIS



Os degredados de Portugal

os degradados do Brasil


Os pares de França e do Funchal,

os párias da pátria pedindo aval


As escórias de Portugal

as escoras do Brazil


Os escárnios do Brazil

os canalhas do Brasil


As malícias do Brasil,

as milícias do Brasil


A sociologia do Brasil,

a saciologia do fuzil


Os sabujos de plantão

os palhaços da razão


Os canalhas céu de anil

os calhordas sem buril


Os melindres dos perversos

os fazedores de versos


Convescotes dos ridículos

nas surubas dos pudicos


Os melindres dos patifes

os chiliques dos juízes


Trombas d´água na secura

no país da velha usura


Qaurteladas & pampeiros

lambe-botas de cueiros


O atraso só avança

no Brazil dos Bruzundangas.




Imagem retirada da Internet: Sal & Pimenta

Heleno Godoy - Poema


Um Possível Oráculo




Para aquele que, diante de si (e antes de si) mesmo,

pode contar pares de olhos, mãos, pernas, cabeças

que nem sempre o seguem, que às vezes não lhe

prestam atenção;


Para aquele que se sente esgotado, mas segue em frente;

que se sente traído, mas se recusa a parar e que, se pára,

sente então que a traição é mais ainda sua e que todos

aqueles pares de olhos,


aquelas cabeças tantas vezes deslocadas, aquelas mãos

e pernas que não se aquietam e se impacientam para ir

embora, elas sim, traem a si mesmas, mas não por serem

ruins ou mesmo


tolas, apenas por serem inadequadas, por não terem aprendido

ainda o que vale e o que não vale, o que permanece e é

insubstituível, o que atrai o pássaro ou a abelha para

as flores e a chuva para o chão.


Um dia, saberão.

Oráculo do professor!


Imagem retirada da Internet: Oráculo

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