Alexandre Bonafim - Poema









CELEBRAÇÃO DAS MARÉS


I

Um risco de veleiros em fuga

sempre foi o teu nome.

Arquipélagos de incandescentes pássaros

os teus olhos. Os frutos do sal,

a íris do sol na filigrana das águas,

os cardumes do outono, clamam em teus pulsos

a presença de um fogo vivo,

cicatriz de um oceano em fúria.



Sempre foi o teu nome as marés.

Em cada palavra do teu ser,

navegam barcos de pólen,

peixes de constelações ardentes.

Em cada silêncio dos teus gestos,

nasce o azul dos cavalos marinhos,

movimento dos remos singrando o mistério.



O teu nome sempre foi os promontórios,

as ilhas desvairadas pelo verão.

Sobre tua nudez repousam

a brancura das velas infladas,

a plena luminosidade do meio-dia.



Em teu destino os corais tramaram

a encantação das estrelas marinhas,

a memória dos búzios.

Essa é a convocação das marés:

fazer do teu rosto o destino das ondas,

a areia desfeita nas orlas.



No teu nome o sono das crianças

apascentou a cólera dos naufrágios.


Imagem retirada da Internet: marés

Sinésio Dioliveira - Poema



Meu re-Seio
é encontrá-lo árido pra mim
e meus lábios morrerem de sede.
Sei-o de cor
na ponta da língua.



Imagem retirada da Internet: seio

Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko) - Poema

    Aprendi a viver com simplicidade



    Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,

    a olhar o céu, a fazer minhas orações,

    a passear sozinha até a noite,

    até ter esgotado esta angústia inútil.


    Enquanto no penhasco murmuram as bardanas

    e declina o alaranjado cacho da sorveira,

    componho versos bem alegres

    sobre a vida caduca, caduca e belíssima.

    Volto para casa. Vem lamber a minha mão

    o gato peludo, que ronrona docemente,

    e um fogo resplandecente brilha

    no topo da serraria, à beira do lago.

    Só de vez em quando o silêncio é interrompido

    pelo grito da cegonha pousando no telhado.

    Se vieres bater à minha porta,

    é bem possível que eu sequer te ouça.



Tradução de Lauro Machado Coelho



Anna Akhmátova. Antologia Poética. Seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho.
Porto Alegre: L&PM.
Imagem retirada da Internet: Anna

Affonso Romano de Sant'Anna - Poema


Separação




Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.



Imagem retirada da Internet: separação

Francisco Perna Filho - Poema

[fogofatuo.jpg]

COBRA DE FOGO





Não sabem os homens
que o fogo consome,
assim como a água,
tudo que vê.
Um corredor de fogo,
uma serpente de labaredas,
uma convulsão de calor e amarelidão.
O cerrado treme,
grita,
estrala.
Rapidamente,
é consumido.
Os homens,
endemoniados,
roubam dos deuses o fogo,
e lançam suas chamas,
queimando o seco
que brotaria,
o verde ainda tenro.
Os homens,
sem escrúpulos,
sem culpa,
sem misericórdia,
roubam da natureza a vida.
De um lado,
o rio,
“cobra de vidro”,
singra.
Do outro,
o cerrado,
cobra de fogo,
sangra.
Os homens,
senhores do fogo,
zombam dos deuses,
ao anunciarem a sua incúria,
a sua insensatez,
passeando pelas ruas largas da cidade,
nos seus carros de som.
Os bairros,
doídos de abandono,
com suas ruas engasgadas de fumaça,
gemem desolados.
As casas,
que também gritam,
vomitam a fuligem das queimadas folhas,
o pó que se alastra pelos seus alpendres,
assistidas pelo mormaço desses longos dias.



Palmas, 21 de setembro de 2010

Imagem retirada da Internet: cobra de fogo

Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko) - Poema


LENDO "HAMLET"



I


No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pé
e, por trás dele, brotou um rio azul.
Tu me disseste; "Então
vai para o convento
ou casa-te com um idiota..."
Só os príncipes falam sempre assim.
Mas eu lembro dessas palavras:
deixem que elas flutuem por cem séculos
como um manto de arminho jogado sobre os meus ombros.


II


E como por engano
eu disse: "Tu..."
Iluminou-se a sombra com o sorriso
suave de meu amado.
Esse é o tipo de deslize da língua
que faz com que todo mundo fique te olhando...
Mas eu te amo, como quarenta
meigas irmãs.


Anna Akhmátova. Antologia Poética. Seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre: L&PM.
Imagem retirada da Internet: Anna


Brasigóis Felício - Crônica

A revolução dos catrumanos



O homem é o único animal que, sabendo-se humano, pode se tornar desumano. Supra-sumo sapiente, embora insano e cruel, inclusive em relação aos seus irmãos. Não saber ter “o poder de ser bom”, que é a vacina mais certa contra todas as formas de maldade. “O alto poder existindo para os braços da maior bondade”, conforme intuiu Riobaldo, nos intervalos das travessias doGrande Sertão:Veredas, em que rasgava gerais, em suas lutas jagunceiras, antes de atravessar a terra sinistra e deserta do Liso do Sussuarão.

Encarnação de milagre foi Riobaldo (um rio baldo), tão tosco e brejeiro, mas tendo clarões da eternidade, ao perceber que existem “semeados na terra” que não fazem parte da humanidade, pois que tendo nascido como pessoas, não conseguiram tornar-se humanos. Separa-os da humanidade “o não saberem das redes de proibições e alianças que presidem as trocas humanas”, como assinala Katrim Holzermayr Rosenfield, em Desenredando Rosa (Topbooks).

Na visão de Riobaldo (e, por certo, do mago Rosa), “os nascidos da terra crescem como vegetais, e massacram-se mutuamente, saindo e retornando do ventre da mãe”. Qualquer semelhança com a barbárie que, nos campos e cidades, em tempos de guerra ou de paz, em forma de terrorismo político-religioso, ou de criminalidade organizada, avança como a querer destruir os marcos civilizatórios, não é mera coincidência.

A revolução dos catrumanos (ou a barbárie pura e simples) pode ser vista no fundo de um mar magmático de selvageria e barbárie, espécie de horda das ruas, ou levante do absurdo, no país da cordialidade e do jeitinho. Já não dá para não saber que a banalidade do mal, que teve seu auge nos campos de extermínios nazistas, com a chamada “solução final”, retorna com o terrorismo justificado em nome dos direitos humanos.

Os catrumanos, espécie de Aliens vindos dos abismos da mente humana, não do espaço sideral, clandestinos embarcados em naves embarcadas em guerras nas estrelas, pertencem à grei mortal e mortífera dos atacados pela peste emocional do caráter, no dizer de Wilhelm Reich. Ou acabaram por se transformar em mortos vivos, inimigos ferozes de tudo o que vive, no dizer de Pierre Levy, pós-doutor da cybercultura: “Algumas pessoas estão praticamente mortas por dentro. Buscam sugar a vida de pessoas vivas, mas neuróticas, isto é, que projetam a própria luz nos mortos vivos, incapazes que são de reconhecê-los”.

Dentre os Aliens, mortos vivos e morcenigos (vampiros humanos portadores da peste emocional do caráter, a doença mental dos encouraçados, descritos por Reich) há os fanáticos pelo ódio ao diferente. São capazes de planejar e realizar atentados terroristas que levam à morte centenas ou milhares de pessoas inocentes, pelo simples fato de não rezarem pelos dogmas de seu credo religioso. Mas há também os que matam em nome do que chamam de amor.

Matam em nome da pátria, assim como assassinam levando bandeiras de ideais sublimes de salvação do mundo ou da alma. Matam em nome do que chamam de sua “coerência”, para não levar desaforo para casa, para “lavar a honra”, por motivo fútil, de fama ou infâmia – pois que é vasta, e cresce a perder-se de vista, o câncer coletivo da insanidade humana.

No dizer do professor Roberto Romano, “O terrorista, sem receber votos, faz-se poder Legislativo e decreta leis que devem ser atendidas por qualquer pessoa, mesmo que esta a desconheça. O terrorista, sem eleição, faz-se o poder Executivo de modo ditatorial, e arranca bens e recursos de qualquer indivíduo ou grupo; sem mandato legítimo, faz-se o Judiciário, e só ele julga com justiça o mundo e seus habitantes.

Ele também exerce o poder de polícia, chegando a ser, ele também, carrasco...”. Para ele, o ventre da besta autoritária não está vazio com a morte do nazismo e do stalinismo: “Ele está cheio de ódios que ajudam bandidos a arrancar peles e músculos de crianças desvalidas, mulheres frágeis, velhos trêmulos”.

Da mesma espécie de catrumanos são também os bandidos que assaltam carros, aos gritos de “Sai, vagabunda!”, e arrastam uma criança, como inocente Aquiles, até que seu corpo frágil se desfaça... Os que perpetram tamanha atrocidade ainda encontram quem os defenda: “A culpa é dos que moram em cobertura”, insiste em dizer a autoridade que vive a denunciar que os outros nada fizeram, enquanto ele se obstina em não fazer coisa alguma.

Catrumanos, criminosos hediondos, malandros de navalha e de gravata, existem por toda parte, e se multiplicam como praga, sendo alguns justificados em nome de nobres causas, que traem e aviltam, tão logo sejam eleitos e/ou reeleitos como pais da pátria, enquanto, nas palavras proféticas do poeta irlandês W.B. Yeats, “avança sobre a maré escura do sangue, e a simples anarquia desaba sobre a terra”.


Brasigóis Felício é Poeta e Jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.


Imagem retirada da Internet: silhueta

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