e meus lábios morrerem de sede.
Sinésio Dioliveira - Poema
e meus lábios morrerem de sede.
Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko) - Poema
Aprendi a viver com simplicidade
Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.
Affonso Romano de Sant'Anna - Poema
Francisco Perna Filho - Poema
Não sabem os homens
que o fogo consome,
assim como a água,
tudo que vê.
Um corredor de fogo,
uma serpente de labaredas,
uma convulsão de calor e amarelidão.
O cerrado treme,
grita,
estrala.
Rapidamente,
é consumido.
Os homens,
endemoniados,
roubam dos deuses o fogo,
e lançam suas chamas,
queimando o seco
que brotaria,
o verde ainda tenro.
Os homens,
sem escrúpulos,
sem culpa,
sem misericórdia,
roubam da natureza a vida.
De um lado,
o rio,
“cobra de vidro”,
singra.
Do outro,
o cerrado,
cobra de fogo,
sangra.
Os homens,
senhores do fogo,
zombam dos deuses,
ao anunciarem a sua incúria,
a sua insensatez,
passeando pelas ruas largas da cidade,
nos seus carros de som.
Os bairros,
doídos de abandono,
com suas ruas engasgadas de fumaça,
gemem desolados.
As casas,
que também gritam,
vomitam a fuligem das queimadas folhas,
o pó que se alastra pelos seus alpendres,
assistidas pelo mormaço desses longos dias.
Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko) - Poema
Brasigóis Felício - Crônica
A revolução dos catrumanos
O homem é o único animal que, sabendo-se humano, pode se tornar desumano. Supra-sumo sapiente, embora insano e cruel, inclusive em relação aos seus irmãos. Não saber ter “o poder de ser bom”, que é a vacina mais certa contra todas as formas de maldade. “O alto poder existindo para os braços da maior bondade”, conforme intuiu Riobaldo, nos intervalos das travessias doGrande Sertão:Veredas, em que rasgava gerais, em suas lutas jagunceiras, antes de atravessar a terra sinistra e deserta do Liso do Sussuarão.
Encarnação de milagre foi Riobaldo (um rio baldo), tão tosco e brejeiro, mas tendo clarões da eternidade, ao perceber que existem “semeados na terra” que não fazem parte da humanidade, pois que tendo nascido como pessoas, não conseguiram tornar-se humanos. Separa-os da humanidade “o não saberem das redes de proibições e alianças que presidem as trocas humanas”, como assinala Katrim Holzermayr Rosenfield, em Desenredando Rosa (Topbooks).
Na visão de Riobaldo (e, por certo, do mago Rosa), “os nascidos da terra crescem como vegetais, e massacram-se mutuamente, saindo e retornando do ventre da mãe”. Qualquer semelhança com a barbárie que, nos campos e cidades, em tempos de guerra ou de paz, em forma de terrorismo político-religioso, ou de criminalidade organizada, avança como a querer destruir os marcos civilizatórios, não é mera coincidência.
A revolução dos catrumanos (ou a barbárie pura e simples) pode ser vista no fundo de um mar magmático de selvageria e barbárie, espécie de horda das ruas, ou levante do absurdo, no país da cordialidade e do jeitinho. Já não dá para não saber que a banalidade do mal, que teve seu auge nos campos de extermínios nazistas, com a chamada “solução final”, retorna com o terrorismo justificado em nome dos direitos humanos.
Os catrumanos, espécie de Aliens vindos dos abismos da mente humana, não do espaço sideral, clandestinos embarcados em naves embarcadas em guerras nas estrelas, pertencem à grei mortal e mortífera dos atacados pela peste emocional do caráter, no dizer de Wilhelm Reich. Ou acabaram por se transformar em mortos vivos, inimigos ferozes de tudo o que vive, no dizer de Pierre Levy, pós-doutor da cybercultura: “Algumas pessoas estão praticamente mortas por dentro. Buscam sugar a vida de pessoas vivas, mas neuróticas, isto é, que projetam a própria luz nos mortos vivos, incapazes que são de reconhecê-los”.
Dentre os Aliens, mortos vivos e morcenigos (vampiros humanos portadores da peste emocional do caráter, a doença mental dos encouraçados, descritos por Reich) há os fanáticos pelo ódio ao diferente. São capazes de planejar e realizar atentados terroristas que levam à morte centenas ou milhares de pessoas inocentes, pelo simples fato de não rezarem pelos dogmas de seu credo religioso. Mas há também os que matam em nome do que chamam de amor.
Matam em nome da pátria, assim como assassinam levando bandeiras de ideais sublimes de salvação do mundo ou da alma. Matam em nome do que chamam de sua “coerência”, para não levar desaforo para casa, para “lavar a honra”, por motivo fútil, de fama ou infâmia – pois que é vasta, e cresce a perder-se de vista, o câncer coletivo da insanidade humana.
No dizer do professor Roberto Romano, “O terrorista, sem receber votos, faz-se poder Legislativo e decreta leis que devem ser atendidas por qualquer pessoa, mesmo que esta a desconheça. O terrorista, sem eleição, faz-se o poder Executivo de modo ditatorial, e arranca bens e recursos de qualquer indivíduo ou grupo; sem mandato legítimo, faz-se o Judiciário, e só ele julga com justiça o mundo e seus habitantes.
Ele também exerce o poder de polícia, chegando a ser, ele também, carrasco...”. Para ele, o ventre da besta autoritária não está vazio com a morte do nazismo e do stalinismo: “Ele está cheio de ódios que ajudam bandidos a arrancar peles e músculos de crianças desvalidas, mulheres frágeis, velhos trêmulos”.
Da mesma espécie de catrumanos são também os bandidos que assaltam carros, aos gritos de “Sai, vagabunda!”, e arrastam uma criança, como inocente Aquiles, até que seu corpo frágil se desfaça... Os que perpetram tamanha atrocidade ainda encontram quem os defenda: “A culpa é dos que moram em cobertura”, insiste em dizer a autoridade que vive a denunciar que os outros nada fizeram, enquanto ele se obstina em não fazer coisa alguma.
Catrumanos, criminosos hediondos, malandros de navalha e de gravata, existem por toda parte, e se multiplicam como praga, sendo alguns justificados em nome de nobres causas, que traem e aviltam, tão logo sejam eleitos e/ou reeleitos como pais da pátria, enquanto, nas palavras proféticas do poeta irlandês W.B. Yeats, “avança sobre a maré escura do sangue, e a simples anarquia desaba sobre a terra”.
Paulo Henriques Brito - Poema
elogio do mal
1
A uma certa distância
todas as formas são boas.
Em cada coisa, um desvão;
em cada desvão não há nada.
À mão direita, a explicação
perfeita das coisas. À esquerda,
a certeza do inútil de tudo.
Ter duas mãos é muito pouco.
Por isso, por isso os nomes,
os nomes que embebem o mundo,
e os verbos se fazem carne,
e os adjetivos bárbaros.
2
O mundo se gasta aos poucos.
A coisa se basta a si mesma,
mas não basta ao que pensa
um mundo atulhado de coisas
que se apagam sem pudor,
que se deixam dissipar
como quem não quer nada.
Existir é muito pouco.
Por isso, por isso os nomes,
os nomes que se engastam nas coisas
e sugam o sangue de tudo
e sobrevivem ao bagaço
e negam a tudo o direito
de só durar o que é duro,
e roubam do mundo a paz
de não querer dizer nada.
3
Bendita a boca,
essa ferida funda e má.
Imagem retirada da Internet:mãos
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