Cecília Meireles - Poema


Lamento do oficial por seu cavalo morto



Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.


Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!


E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?


Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...

Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...

Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!




In Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.

Imagem retirada da Internet: átomo

Cecília Meireles - Poema


Noções



Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera.


Imagem retirada da Internet: Espelho

Ezequiel Theodoro da Silva - Ensaio


A Leitura vai morrendo pelo caminho. Que desgraça!




Soube, hoje, do encerramento das atividades do LEIA BRASIL. Não posso deixar de vir a público para expressar a minha imensa tristeza diante deste acontecimento. Ao mesmo tempo, para demonstrar a minha intranquilidade a respeito do destino da leitura neste país.

Ao longo de minhas lutas por mais e melhores leituras para o povo brasileiro, sempre defendi a necessidade de uma "frente" constituída por uma grande - e diversa - quantidade de entidades (públicas e privadas) voltadas ao estudo e à promoção da leitura. A razão é mais do que óbvia: a vergonhosa, a horripilante paisagem que atualmente resulta dos descuidos e descasos dos governos brasileiros em relação ao desenvolvimento das práticas de leitura.

Em 2010, terceiro milênio, em meio às sociedades de informação e do conhecimento, o Brasil apresenta o terceiro PIOR nível de desigualdade de renda do mundo e um quadro sombrio expressando o número de leitores reais. A ferida do analfabetismo continua estuporada. Os iletrados funcionais representam quase a metade da população do país. A débil e debilitada rede de bibliotecas (públicas e escolares) nem de leve, nem de longe alimenta a promoção da leitura. Isto tudo a despeito dos incessantes - mas descontínuos, burocratizados e depauperados - programas de enfrentamento dessa questão.

Um dos efeitos básicos da leitura é a qualificação, para melhor, das decisões e ações dos indivíduos, robustecendo-lhes a cidadania. Outros países sabem disso e não perdem de vista o decisivo apoio aos trabalhos das entidades que indistintamente preservam e dinamizam os seus bens culturais escritos junto à população. No Brasil, infelizmente, ou se repete o erro de repetir políticas caolhas de apoio ao que não dá e nunca deu certo, ou se vira a cara para assistir, de camarote, talvez cinicamente rindo por dentro, à morte e ao sepultamento de importantes entidades culturais.

O valor do LEIA BRASIL advém da continuidade da iniciativa pioneira de Mário de Andrade de itinerar a leitura por entre escolas e comunidades através de caminhões. Um trabalho com professores e com estudantes de toda a comunidade escolar visitada para descobrir e experimentar algumas delícias do ato de ler. Advém também de um conjunto considerável de publicações (Leituras Compartilhadas, coleções de livros, CDs, DVDs, entrevistas, filmagens, etc.), de um poderoso portal de serviços pela Internet, de significativa participação em eventos nas várias regiões do país, de estudos e pesquisas, etc. Quer dizer, a entidade consolidou, historicamente, um "patrimônio" importantíssimo sobre as dinâmicas e os processos de leitura no Brasil - um patrimônio que seguramente vai pro brejo por falta de um olhar de natureza solidária, profissional, sensível dos organismos de apoio ou de patrocínio.

Não quero discutir e nem condenar as razões que levaram Jason Prado, o idealizador e coordenador do LEIA BRASIL, a essa decisão. Quero, isto sim, evidenciar aos leitores deste texto que a morte de uma entidade representa não apenas a permanência do nosso evidente atraso cultural na área, mas fundamentalmente o imenso desvio dos rumos que nos conduzem à conquista do direito à leitura, o que o fundo e à inversa, significa o alastramento da idiotice - ou muita esperteza cínica - nas esferas responsáveis pela educação e cultura no Brasil. E, por tabela ou como reflexo, o alastramento da idiotice por toda a sociedade.


EZEQUIEL THEODORO DA SILVA
Cidadão brasileiro, "de luto"
Graduado em Língua e Literatura Inglesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1971), Mestre em Educação - Leitura - University of Miami (1973) e Doutor em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1979). Atualmente é professor aposentado - colaborador voluntário da Universidade Estadual de Campinas. Editor do PORTAL LEITURA CRITICA.

Imagem retirada da Internet: Ezequiel

Brasigóis Felício - Ensaio

Bardos da goianidade na paulicéia desvairada



Brasigóis Felício


Corria ano da graça de 1983. A dita cuja não estava branda – ao contrário, trotava muito dura. O tempo estava sujeito a chuvas e bordoadas da polícia política – embora fosse tempo de ditadura, governos investiam em cultura. Já no “salve-se quem puder!” da gestão não sei se do Paulo Marins, ou do Paulo Maluf, o governo promoveu um encontro nacional de cultura. A delegação de Goiás, dividida entre o alto e o baixo clero do poetariado, tinha a patota dos incluídos e o exército intelectual de reserva dos eternos excluídos. O alto clero dos intelectuais de gabinete, os dignatários do alto clero da oficialidade cultural tiveram direito a passagem aérea e hospedagem em hotéis cinco estrelas. Os do baixo clero, atirados em um campo de concentração (o Pacaembu) – ainda assim pegando o boi, uma vez que, sendo poetas, poderiam ser acampados em cima do Viaduto do Chá – podendo assim conversar com as estrelas da nossa galáxia, no estilo bilaquiano de ser.

Já o lumpen-poetariado foi de ônibus fretado, tendo o Tagore Biram como chefe e responsável pelos destinos dos bardos que iam bêbados a bordo de trepidante mastodonte. No meio do caminho tinha a pedra da intuição, e a poetisa Yêda Schmaltz, antevendo as vis acomodações que o cardinalato literário reservara ao baixo clero, pressagiou a mala sorte que a rondaria, pelo crime inafiançável de estar ao lado de um bando de bardos bêbados a bordo de uma canoa furada e, aproveitando a parada técnica da nave, pegou sua mala e voltou a seus pagos na boa terrinha boiana. Sorte teve a poetisa. Salva pela intuição feminina, e desgostosa por viajar de terceira classe, não conheceu o que seria o inferno de Dante.

A nomeação de Tagore no encargo de comandante da delegação do lumpen-poetariado foi, por motivos óbvios, motivo de risos no momento mesmo em que era decretada.É que o bardo desfrutava da merecida fama de anarco-comunista, rebelde e amotinado. No tradicional “jantar do escritor”, extinto porque os escribas já não podem dar-se ao luxo de esbanjar, em ajantarados, deu-se um início de pânico no recinto quando o vate levantou-se para ir ao banheiro, “tirar a água do joelho”. O temor coletivo é que ele pedisse a palavra para discursar. Na Paulicéia Desvairada o poetariado goiano foi deixado em um “campo de concentração”. No caso, o Estádio do Pacaembu. Embora distantes da barbárie nazista a hospedagem reservada ao exército dos excluídos era um pouco pior do que a destinada por Videla e Pinochet a seus presos políticos. Salas sinistras, repletas de beliches, apelidadas de alojamento, receberam o poetariado de todos os Estados. Havia gente da literatura, da música, da dança, do folclore e do teatro.

A torre de Babel perdia para as confusões físicas e de línguas que ali se travavam. Já no primeiro dia da estadia a vizinhança chamou a polícia e reclamou da zoada. Gente chegava de madrugada, aos gritos, depois de executar suas funções circenses, artísticas e culturais. Um dos hóspedes do campo de concentração dos poetas lunáticos era pra lá de especial. O quadro nem era dantesco – estava mais para o “Jardim das delícias” de Yerononimus Bosch Hospício algum aceitaria um cliente que, a gritar histericamente, virasse as noites a bater a cabeça na parede: “Eeeeeee! Bum!”. Primeiro os gritos desesperados, depois o estrondo do crânio contra os tijolos. Sem poder dormir –quem dormiria alguém ali, com um barulho daqueles, - a sorte é que já chegávamos de madrugada, bastante obnubilados pelos vapores do álcool? O que seria aquela gritaria, seguida de um estrondo absurdo nos estertores do mundo? Coquetel de drogas? Loucura em estado de liberdade?

Todas as manhãs uma funcionária do governo chegava ao “semi-árido” do lumpen-poetariado, trazendo os tíquetes-alimentação. Tudo para manter viva, e funcionando a contento, aquela tripulação de vadios de luxo, desempregados crônicos, mambembes circenses dispensados de função. “Chegou o tique nervoso!”, gritávamos, eufóricos e ressaqueados. No rastro do “anjo alimentício”, logo chegava, a brigar pelo tique nervoso dos ricos, uma emissária, filha de um dos incluídos. A confraria de felizardos “mais iguais do que os outros”, hospedada em hotel estrelado, com direito a copa livre e outras mil mordomias, não abria mão da maré mansa dos tíquetes. Mal embolsávamos a nossa conta e já partíamos para os bares da vida. Não para almoçar propriamente, que os poetas em geral estão mais para a liquidez, poupando ao estômago a trabalheira de digerir massa de sustança. Um dono de restaurante arrepiou: “É tíquete-alimentação, não vale para bebida”. Tagore, do alto de sua autoridade de chefe da delegação, argumentou: “Neófito taverneiro, muito admiro que o senhor não saiba: alimentação de poeta é cerveja gelada”. E assim, de bar em bar, íamos dando gelada “liquidez” ao que era para ser bóia popular.

Vencido pela dialética poética e etílica do bardo-chefe da anarquia poética, o estalajadeiro ordenou: “Desce cerveja a rodo para essa poetada!”. Como paga a seu gesto diplomático e civilizado fizemos um sarau poético no sagrado recinto de sua casa de pasto. Foi assim durante toda a temporada do Encontro Cultural – que a imprensa sabotava, pois que há muito não via a cor da grana estadual. Toda manhã, tique nervoso para o poetariado, gastava com esmerada e imediata liquidez.

Fizemos da praça paulistana um grande recital. Não houve praça, buteco popular ou de luxo, em que não tenhamos declamado a nossa prosopoéia poética. “Los hombres passam por los hombres como se los hombres fossem apenas hombres”, declamava, andando de um lado para o outro, com sua cara de Poe dos trópicos, o poeta Delermando Vieira.Tagore, com a veia lírica a toda brida, atacava com sua poesia romântica, dessas que são feitas para cantar e papar mulher: ... Valdivino Braz ia de cavalo xucro, atacando a paulicéia desvairada (e a ditadura, que já amolecia, distendida pelo bruxo Golbery do Couto e Silva: “Não monte esse cavalo moço/ que a coisa fica feia/ele empina e escoiceia/corrupia e corcoveia/se o montas, vira o Diabo,/dá pinote/e logo te faz beijar/a poeira do chão./Seu nome é Liberdade, moço!”.

Quanto a mim, no matadouro do tempo, convidava: “Avisem os tristes da cidade/ darei de beber/ de meu sangue violado/ a quem ficar a meu lado/. Darei de comer/ de meu corpo violado/ a quem ficar ao meu lado/. Vamos todos, mutilados, ao matadouro do dia!”.

O restaurante era de meio luxo, desses até bonitinhos, onde se regalam, aos domingos, e nas datas especiais (dia das mães, das sobras e etc), os que não foram excluídos ainda: a sobrevivente classe média média, que luta com unhas e dentes para não cair de vez na vala comum da miséria coletiva. Estávamos até agradando, e éramos vivamente aplaudidos enquanto as poesias tinham colorido romântico – e nisso o Tagore ganhava, disparado, de todo o poetariado ali reunido. A certa altura do recital, porém, como o arsenal de lirismo vagabundo estava já no fundo do tacho, o Valdivino Braz concitou o chefe da expedição (e da tertúlia poética) a fazer uma massagem no Eu romântico das mulheres presentes. O poeta Tagore Biram vacilou, deu-lhe um branco, e não encontrou argumento válido. Se quisesse, poderia apelar (como sempre apelam os poetas) para o soneto da fidelidade, do poetinha Vinícius, mas temeu pelo ato falho que o levaria a, na coroa do soneto celebérrimo, a cometer a sandice de querer que o amor só seja eterno enquanto duro.o.

No vácuo pensante que instalou-se em seu cérebro aturdido pela maratona etílica, só conseguiu dizer, em altos brados, um verso ginecológico: “Gosto de uva, como de chupar viúva”.

Um clima de gelado e geral constrangimento instalou-se no recinto. Ninguém aplaudiu – nem o restante do poetariado, por solidariedade de classe. Quem o fizesse seria expulso a pontapés, do gélido e marmóreo recinto. O recital – ninguém precisou decretar – era melancólica e ginecologicamente findo. Ninguém precisou pedir para parar – nem um versinho de pé quebrado foi gungunado, para quebrar o desastre produzido pelo palpite infeliz do poeta enluarado. Depois de pagar a conta com o “tique-nervoso do Maluf”, pedimos licença para tirar a água do joelho e fomos saindo de fininho, Tínhamos todos a cor de burro fugido. No pálido semblante de cada um dos poetas declamantes, a sem-graceza do bêbado ou do cachorro que peidou na igreja – e dali fomos baixar em outra freguesia, com nossa verve incontida.

Todas as mulheres passantes, umas bonitas, e outras nem tanto, passaram a ser nossas musas. Em guardanapos e toalhas de papel deitávamos oceanos de versos. À certa altura do ágape e da versalhada que não parava de desaguar, feito a Niágara, o o patrão-mór da “carniceria” reclamou, em altos brados, depois de se recusar a trocar, pela décima vez, a toalha de mesa: “Chega de poetar! Assim vocês me quebram!”. Tudo em homenagem à Cecília, a namoradinha do Tagore, a única donzela à mesa. Duas dúzias de poetas, sem ter Betriz ou Laura ao alcance da mão, ou da caneta bic, que pudessem imortalizar, à moda de Dante ou Petrarca, tiveram que se contentar em cantar a “beleza imortal” da doce Cecília, musa do poetinha que elegemos como musa coletiva; Cecília dali levando um quilo e meio de poesias em sua homenagem. É bem possível que nossa ingrata Dulcinéia coletiva tenha atirado calhamaço na primeira lata de lixo que encontrou na esquina.

O poetariado brasileiro tomou de assalto o Ibirapuera. Versejadores lunáticos, passadistas e futuristas, ufólogos, ateus, místicos, decadentistas e nefelibatas disputavam os parlatórios declamatórios e a chance augusta de dar o seu recado versífico. O poetariado boianiquim não se fazia de rogado e a todo instante quebrava o protocolo. Um mestre de cerimônia, quebrando a munheca e jogando água fora da bacia anunciou, em voz afeminada, que todos teriam o sumo privilégio de ouvir a voz inspirada e nitente da magistral poetisa Renata Pallotini, herdeira dileta –e em primeiro grau – de Cecília Meirelles, etc. e tal. Dionísio Pereira atropelou o protocolista de plantão e sapecou, no melhor estilo de quem sabe, nas feridas da carne, que tudo é sertão, e o sertão é tudo: “Que pelotinha que nada. Quem vai falar agora é a goianada...”. É soturno, mas digo: a goianada falou. E falou tanto, e de forma tão inspirada (ou destemperada), que no dia seguinte a Folha de São Paulo noticiou, em texto de quase ¼ de página: “goianos quebram o marasmo do encontro”.

Francisco Soares Feitosa - Poema

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Habitação




Nem saberia dizer onde moro exatamente.
Desconfio que habito dentro de meus dentes.
Doutras vezes era a penugem dos canários,
e era ali, naquelas sedas, penugem e cor,
que eu me mudava para minhas mãos,
senão os gatos, o dorso, viajava neles.

E se um pássaro súbito:
não pelo avisto, pelo ouvido porém;
(o som é que é súbito) — e outra vez me mudava,
era só ouvidos.

Para os meus olhos,
eles se esbarraram – sobre todos os horizontes –
em cima da beleza:
clamassem os dentes,
clamassem as mãos, clamassem as oiças,
a pele também clamasse — qual nada! —
haveria de engolfá-la só com os olhos —
anos a fio moro neles.

Um dia morei sobre o peito de minhas mães,
branca e preta, as mães,
(todas verdadeiras)
na mesma medida, agora, assim,
minha banda-fêmea
te regaça:

desta vez
“mulher”,
sou tua “mãe”.
Pousa, amor,
te esbalda na cavilha deste peito-pulso
que pulso de pulsar te estremece:
teus dentes, tua-inteira, toda-tua,
tua cara, teus cabelos, tua pele — tudo — e alma;
deixa-te cair neste infinito-agora.
Terminei de sair dos meus dentes, dos meus olhos,
das minhas oiças também saí;
habito agora apenas esta minha mão;
sou apenas esta mão:
nenhuma diferença entre todas as coisas,
um dia quis pegá-las, mordê-las; mão,
o calor de tuas sedas.

E se dormires
recobrirei respeitosamente a tua nudez,
que é só tua —
pausadamente, pousa
o hálito
na cavilha deste peito largo:
dorme, amor,
sossega,

da
tua
nudez — sossega —
que da aurora,
vigilante
eu tomo conta.

Fortaleza, noite alta, 06.02.1999


Imagem retirada da Internet: Galeria Rubens Cavalcanti da Silva - Nudez


Caio Porfírio Carneiro - Conto


A vingança




Ele andava lentamente à minha frente. Aproximei-me.

Emparelhamo-nos. Sorri:

- Bom dia.

- Bom dia.

O bom dia dele foi de susto e curiosidade. Voltei a sorrir:

- O senhor não me conhece. Mas devo conhecê-lo.

- De onde?

- Depois lhe digo.

Chuvinha miúda e nós dois sem guarda-chuva. Poucas pessoas passavam por nós. A igreja ali em frente, a banca de jornais e revistas tampando-me um pouco a visão da fachada. Meu desprezo por aquele homem ampliava-se:

- Vai comprar jornais ou vai rezar?

- Vou rezar.

- Acompanho.

- Mas quem é você? Não estou reconhecendo.

Os olhos dele eram apertados, como de míope, mas não usava óculos. A calvície luzidia, onde rebrilhavam pingos de chuva.

- Não importa agora. Não vai rezar? Eu o acompanho. Rezar é bom. Alivia. Não é mesmo?

Olhava-me com rapidez. Apressou o passo. Apressei o meu. E emparelhados chegamos à igreja. Dei-lhe passagem, que a porta era estreita:

- Faça o favor.

Ele se ajoelhou próximo ao altar, olhos meio fechados fitos na cruz enorme, a cabeça de Cristo bambeada para a esquerda. Procurava afastar-se de mim, visivelmente incomodado, e eu pregado nele. As suas mãos, cruzadas, tremiam, e os lábios caídos balbuciavam palavras em direção à cruz.

A raiva não me cessou. Cresceu. Não me contive, cochichei-lhe ao ouvido:

- Você me paga, canalha. Vai ver.

Pela primeira vez abriu desmesuradamente os olhos, pestanejando muito, e eu me fui, o eco dos meus passos reboando na nave quase deserta, duas-três cabeças dispersas e contritas.

Na rua, sol nos olhos, que a chuva se fôra, desorientei-me um pouco. Depois, suando muito, andei de cá para lá, de lá para cá, concentrando-me, inutilmente, para descobrir quem seria aquele homem, a fim de vingar-me dele.

Desalentado, voltei para casa.



Fonte: Jornal de Poesia

Imagem retirada da Internet: Mãos

Gerardo Mello Mourão - Poema




SUÍTE DO COURO - 1
CHÃO DO PAÍS




Do alto destes céus aeronáuticos o poeta
contempla o chão da capitania - província, país,
[país hereditário, digamos -
Onça, leopardo seria - é um boi ou boi - fora boi -
Couro duro esticado - malhas malhadas
Secando ao sol ao vento à solidão.

De couro é aquele chão aquela chã
Couro estendido em varas
Pontudos marmeleiros vão secando também -
O couro estende
Suas manchas de pêlo sobre
Matos magros de campina caatinga tabuleiro
Ravinas e barrancos - sobre
Serranias de antigos nomes.

De olhos secos uns viventes de couro
Cabra novilhas éguas e outras pessoas
Caminham sobre
Chão de couro entre cinza e carvão
De apagadas coivaras.

A mancha ao longe água seria - poço
De rio adormecido - miragem de areia seca
Crescida à lágrima nos olhos:

Esperança de súbitos sertões por onde
Urram saudosos bois nos alagados
E na memória de seus pastos bons.

Em maranhões emaranhados
No chão de couro pelas paraíbas
Piauís pernanbucos siarahs até
As bahias malhadas onde

Seca ao sol o couro cru: - ali
Sobre couro marcado a ferro de algum santo ou paróquia
No lombo do chão uns fantasmas passeiam.

Das alagoas de Tanque d'Arca ao sergipe antigo
Até Geremoabo até
O Raso da Catarina. Talvez ladeiras de outros lados
Mombaças Araripes Contendas Borboremas até
Neste país nosso - de couro nosso - toda esta
América nossa - Argentinos e Chiles, Paraguais -
América de couro e couro
De cada um de nós
Nicaráguas e Texas e Méxicos além.




Imagem retirada da Internet: gibão
In.Algumas Partituras. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.13-14.

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