Francisco Perna Filho - Poema

OS PRIMÁRIOS CAMINHOS DA AUSÊNCIA



Ninguém veio,

e a esperança de um amor incutido

foi se perdendo nas horas.

(Não digo que todo o resto do dia tenha pensado em saudades),

Ninguém veio,

e o poeta,

indefeso,

só pôde acatar e louvar os primários caminhos da ausência.

Não houvesse ausência,

não haveria saudade,

e, por certo, não haveria poema.

Ninguém veio,

e o poeta passou a adiantar-se aos encontros

a contemplar as ausências,

e o poema estava salvo.


In. Revista Poesia Sempre. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009

Imagem retirada da Internet: Solidão



Francisco Perna Filho - Poema



para meu pai






GENEALOGIA



Aprendi a esperar as estações,
como o palhaço que divisa a platéia do picadeiro:
um semblante triste,
um olhar enviesado,
um sacrifício de espera.
Sorrir da própria dor,
até que todos venham
e lotem o vazio de suas almas.
Tudo se consome de alguma forma,
e o que sobra são os bancos vazios das estações,
rodoviárias e aeroportos.
O avô do meu avô,
assim como o meu avô
e o meu pai,
morreu do coração.
Eu fui poupado,
Nasci poeta.


In. Revista Poesia Sempre. Nº 31, ANO 16,Rio de Janeiro: BIBLIOTECA NACIONAL, 2009.

Imagem retirada da Internet: by Rita Angel A Espera

Brasigóis Felício - Crônica

Dizeres de Estamira



Brasigóis Felício



Estamira é uma mulher do povo, catadora em um dos lixões da Baixada fluminense. Dizem que é doida de pedra, mas é de uma lucidez delirante, tem um discurso apocalíptico, o que teria um Nietzsche antes de mergulhar na escuridão, ou de um Glauber Rocha, na fase em que anunciou ao universo ser o General Golbery do Couto e Silva um gênio da raça, ou um Geraldo Vandré, ao propor uma santa como padroeira do Exército.

Mire e veja: louco talvez seja quem assim a diz – e não é feliz. Estamira jura de pés juntos que é melhor não ser um normal, normoticamente encaixotado na vidinha hipócrita e trivial do burguês com 90% de cifras na alma enferrujada.

Pouco e malmente esquentou bancos de escola. Menos ainda leu Clarice Lispector, nem sabe quem ela foi – nem é afeita à leitura de livros, menos ainda tem rompantes de ser leitora ou poetisa. Contudo, uma poesia alucinada brota, em cascata, por sua boca sempre sorridente, a não ser quando fica brava com a humanidade, e dana a lançar faíscas, estalos de Vieira, em frases cortantes como navalha.

Coerência em sua fala catártica e apoplética quase não há – mas perguntar não ofende lógica e acessibilidade à mente cartesiana e superficial também não existe nas obras de James Joyce, de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, Sousândrade, e de certos poetas vanguardistas? Como no discurso viperino, lançado às escuta impossível da cidade vertiginosa, repleto de indignação e raiva, que proferiu no lixão, diante de cineastas que a filmavam: “Existe a lucidez e a ilucidez. A gente aprende alguma coisa de tanto lucidar”.

Mais adiante, assumindo a postura de um Antonio Conselheiro de saias, pregando aos fanáticos insurrectos, antes do trágico e covarde assalto final aos casebres de Canudos: “Vocês não aprenderam nada na escola. Vocês só copiam hipocrisias e mentiras charlatais!”. Não bastando o peso da acusação, dirigida a toda a humanidade, e sem excluir a equipe de cineastas que filmava seu discurso apocalíptico: “Eu não sou como vocês, que são apenas robôs sanguíneos!”.

Para Estamira, “Neste mundo de maldades não tem mais o inocente. O que tem, isto sim, por todo lado, é o esperto ao contrário”. Comovente de se ver é o prazer de Estamira no cozinhar para suas netas, que de vez em quando a visitam, em seu barraco, na favela. Ou a ternura e cuidado com que cuida de seus muitos cães e gatos. Tudo em seu casebre é limpo.

Psiquiatras que lhe passam remédios para amenizar o que chamam de surtos de alucinação, tratam de Estamira como uma delirante, apenas. Não é de se espantar: Lima Barreto, Antonin Artaud, Cruz e Sousa, José Décio Filho, e outros gênios da literatura foram internados como doidos de pedra – sendo que este último escreveu suas melhores obras no hospício, entre uma e outra sessão de eletro-choque.

Para não dizerem que não terminem esta crônica com os dizeres de estamira, vão aqui mais umas faíscas de seu lucidar delirante: “Tempo eterno é tempo infinito, mas tem o além e o além do além. Nenhum cientista foi até o além, quanto menos no além do além. Para mim, tudo o que nasce é nativo, isto é, natal”.

Tudo isto tendo sido dito por Estamira, dou-me ao direito de também, sendo vidente-louco, segundo o pré-conceito dos que não desafinam no coro dos contentes, de lucidar, ao meu jeito de anjo torto: - Muitos dos que estão nas ruas, engaiolados em seus carros, são apenas escravos, disfarçados de libertos. – Vive em ministério de boniteza não o que fala bonito, mas o que escuta e vive bonito. – No teatro dos dias, as pessoas representam, em cenários de violência e destruição, os fantasmas perversos que serão.


Imagem retirada da Internet: Estamira

Roberto Penedo do Amaral - Ensaio Crítico






GUIMARÃES ROSA

Notas gramscianas sobre o grande sertão: VEREDAS






Roberto Penedo do Amaral







A concepção gramsciana de filosofia justifica as premissas e a conclusão do silogismo que dá título a deste artigo. Pois, para esse grande pensador marxista italiano do século passado, havemos que, em primeiríssimo lugar, buscar superar um preconceito há muito difundido em nossa cultura ocidental de que a filosofia é uma matéria demasiado hermética e que só a alguns eleitos, detentores de um saber ex traordinário, é que estaria destinado o labor com a mesma. Nesse sentido, a polêmica afirmação de Gramsci (1891-1937) de que “(...) todos os homens são ‘filósofos’ (...)” (Gramsci, p. 93) parte de fundamentos outros que uma determinada filosofia clássica teria apresentado como critérios para o estabelecimento de quem é ou não filósofo ou do que é ou não filosofia. No entanto, se a controversa tese de Gramsci não parte de um cânone clássico, também não deixa de circunscrever essa “filosofia espontânea” característica a todo e qualquer ser humano, e, que, segundo ele,

“(...) está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”. (Gramsci, p. 93)

Ao dar a devida atenção aos fundamentos, consubstanciados em enunciados simples, porém, reveladores, de que Gramsci parte para o assentamento de sua assertiva, começamos a perceber a profundidade e a grandeza dos mesmos. Senão, vejamos. A importância que ele dá à linguagem, tratando-a como um conjunto de “noções e conceitos determinados” e não, tão-somente, como “palavras gramaticalmente vazias de conteúdo”, confirmam a compreensão que também temos acerca da mesma, como sendo a verdadeira instauradora e mantenedora de nossa humanidade. Poderíamos afirmar, sem sombra de dúvida, que o ser humano e a humanidade se constituem e dão sentido às suas existências pela linguagem, posto que, através dela, é que se estabelecem os valores, as crenças, as regras, as relações, os saberes. Dessa forma, a linguagem nunca se dá de forma impune, vazia, imparcial, neutra, já que, desde a sua enunciação, está carregada de sentidos, escolhas, opiniões e verdades. Ou, como afirmou Guimarães Rosa, num diálogo com o crítico alemão Günter W. Lorenz, “a linguagem e a vida são uma coisa só” (in Lorenz, p. 339). Nas palavras de Gramsci, “na ‘linguagem’ está contida uma determinada concepção de mundo” (Gramsci, p. 93).

Evidentemente, o questionamento sobre o caráter crítico ou alienado de uma determinada concepção de mundo, manifestada por uma determinada linguagem, pode vir a ser suscitado, — e é salutar que isso ocorra, desde que não se apresente a partir de um ponto de vista intransigente e enviesado; — porém, isso não invalida a complexa capacidade humana de escolher e acreditar em algo que dê sentido à sua própria existência e ao grupo social a que está vinculado.

Diante do quadro apresentado acerca da profundidade e densidade presentes na linguagem humana, não é forçoso que concordemos com Gramsci sobre uma determinada filosofia “espontânea” ser uma característica de todo ser humano, daí a decorrência de todos os homens serem “filósofos”, “ainda que, segundo Gramsci, a seu modo, inconscientemente” (Gramsci, p. 63). Nesse ponto, é importante que tenhamos a clara compreensão do que o pensador italiano nomeia de inconsciente: a ausência, numa pessoa, de uma visão crítica de si e de suas circunstâncias.

Se há um elemento com o qual podemos justificar, amparados pelo traçado gramsciano, a procedência do silogismo que encima esse texto, promovedor do jagunço Riobaldo a filósofo, é justamente o topos da complexidade, da criatividade e da vitalidade da linguagem. Riobaldo é um personagem que transfigura metaforicamente, através de sua narrativa, a crueza, a beleza, os dilemas, as incertezas, enfim, a profundidade mais abissal da complexidade da existência humana. Através de suas “falas”, ele ora revela-se, ora oculta-se em suas virtudes, em suas mazelas, em suas dúvidas, em suas verdades. Em outras palavras, a sua linguagem o torna um humano que escolhe, que age, que indica, que especula, que, enfim, pensa:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia (Grande Sertão: Veredas, p.26).

Nesse pequeno trecho da obra maior rosiana, podemos verificar a riqueza de informações acerca do inventário cultural de Riobaldo. As suas palavras revelam-nos aspectos importantes de sua formação e de sua concepção de mundo. Podemos notar que na sua atividade de jagunço havia pouco tempo para que ele se dedicasse a pensar de forma mais tranqüila e profunda sobre sua existência. Afundado num pragmatismo exacerbado, consumido em mil e uma ações de combate, fugas e travessias longas e exaustivas pelos caminhos e descaminhos do sertão dos Gerais, da Bahia e de Goiás, não lhe era permitido folgar na imaginação e na contemplação. Como ele mesmo diz, quem mói no áspero, não fantasia. Afastado da jagunçagem, situado agora como um fazendeiro bem-sucedido, com o tempo estabelecido e determinado por ele próprio, pode se permitir às especulações humanas e mundanas. É o que Riobaldo tem a oportunidade de fazer com toda ênfase e ousadia, na presença de um interlocutor possuidor de “(...) toda leitura e suma doutoração” (Grande Sertão: Veredas, 2001, p. 30). Eis a sinopse de Grande Sertão: Veredas.

Se ouvirmos a narração de Riobaldo com ouvidos de mercador, ou seja, encarcerados desde a metalinguagem dos compêndios gramaticais, certamente não sairemos do lugar, e poderemos considerar a obra rosiana como uma saga natimorta, já que seu protagonista não teria nada a nos dizer com seu tosco tartamudear sertanejo. Porém, se transcendermos as palavras e, humildemente, procurarmos enxergá-las para além de palavras ocas de um asséptico estado de dicionário e de enciclopédia em que elas deveriam estar, então poderemos vislumbrar, ainda que de forma bruxuleante, os estonteantes vôos e os abissais mergulhos que a linguagem riobaldiana pode nos proporcionar.

No dizer de Gramsci, “se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo” (Gramsci, p. 95).

Nada mais verdadeiro que o caso de Riobaldo. No entanto, se julgarmos que a linguagem de Riobaldo é, paradoxalmente, simples (em seu aspecto gramatical) e complexa (em sua intencionalidade) — e uma brevíssima interpretação da mesma assevera esse veredicto — implica que sua concepção de mundo também o é, o que nos leva a crer, ao contrário de Gramsci, que a complexidade não reside numa determinada concepção de mundo, mas no próprio ser humano, possuidor de uma linguagem também complexa. Vejamos, por exemplo, o que o próprio Riobaldo nos diz sobre sua formação:

“Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia — que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado (Grande Sertão: Veredas, p. 30).

Se julgássemos Riobaldo apenas pelo aspecto gramatical de sua linguagem, certamente não vislumbraríamos as complexas atualidades e potencialidades que ele possui, mas, se nos permitirmos um átimo de paciência e atenção às palavras que esse sertanejo enuncia, em quanta sabedoria penetraremos! Exercitemos, então, um pouco dessa paciência e dessa atenção às suas palavras.

Riobaldo nos diz que navega mal nas “altas ideias”, ou seja, julgando-se um simplório sertanejo não se vê com erudição bastante para discutir certos temas e assuntos que caberiam, sim, segundo ele, a pessoas de “muita leitura e suma doutoração”. Por essa afirmação, ele reconhece e reproduz um lugar comum presente em nossa cultura, o da separação entre os que sabem e os que não sabem e entre os que pensam e planejam e os que executam. Quando afirma que não está analfabeto, que possuiu um mestre e que teve acesso a um currículo mínimo, composto por gramática, as operações, regra de três, geografia e estudo pátrio, Riobaldo revela-nos, também, um outro chavão amplamente difundido e, quiçá, cristalizado no imaginário de tantos outros riobaldos, de que há um lugar específico e privilegiado para o alcance da “suma doutoração”: a escola.

Pensamos, no entanto, que é importante ressaltar, aqui, a necessidade de não absolutizar a vinculação entre processo educacional e escola, para que não reduzamos o sentido amplo e profundo do conceito de educação. Ou seja, o âmbito escolar não é o único e, muitas vezes, nem é o melhor espaço para a formação humana. E nisso,

Riobaldo — “O senhor sabe: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo”(Grande Sertão: Veredas, p.24) — e Gramsci — “Não sou conhecido fora de um círculo bem estreito: o meu nome é estropiado de todos os modos mais inverossímeis: Gramasci, Granusci, Grámisci, Granínsci, Gramásci, até Garamácon, com todos os intermediários mais bizarros” (In: Bosi, 2003, p. 432) — concordam plenamente.”

Mencionemos aqui — é óbvio que com télos diferenciados — uma aproximação interessante entre o olhar de Riobaldo e o ponto de vista gramsciano acerca da importância da instituição escolar. Riobaldo, a partir de sua breve e rudimentar experiência com a escola, passa a perceber a mesma, como uma escala — hierárquica e discriminadora — necessária para o alcance de níveis superiores de conhecimento e distinção social, tratando-a, portanto, poderíamos dizer, com uma visão redentora e salvífica do ser humano (em certo momento da saga riobaldiana, um de seus chefes e companheiros de jagunçagem, Zé Bebelo, vaticina: “O que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão!” (Rosa, 2001, p. 413). Já Gramsci (1999), filósofo, crítico, tendo estudado não só em escola, mas em faculdade, vê na instituição escolar, uma organização cultural possibilitadora da construção de uma concepção de mundo unitária, coerente e homogênea, na busca da superação da cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, atribuindo-lhe, portanto, um papel revolucionário. Sobretudo, pela capacidade que a escola tem de alcançar um enorme contingente de pessoas, durante um período, relativamente, longo.

Talvez seja o caso de dizer que o encontro inaudito, entre Riobaldo e Gramsci, que promovemos nesse artigo, seja, justamente, o encontro do sertanejo e do sumo doutor. Sabemos que Riobaldo tem muito a aprender com Gramsci, resta saber se o pensador italiano tem algo a aprender com o sertanejo “sofismado de ladino”, já que, para este, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Rosa, 2001, p. 326).

Acreditamos que agora seja um momento oportuno para a discussão de uma questão cara ao pensamento gramsciano, a questão da consciência crítica. Tomemos uma interrogação bem elaborada por Gramsci, que dá um bom discernimento de sua preocupação com essa temática:

“(...) é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, ‘participar’ de uma concepção de mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (...), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (Gramsci, p. 94)

Essa contundente inquirição de Gramsci deixa qualquer leitor sensato com uma única alternativa de resposta: é preferível ser o guia de si mesmo, tendo como iluminador de sua trajetória a sua própria consciência crítica. Mas a complexidade que caracteriza o ser humano, que constrói um mundo humano não menos complexo, não é constituída somente pela luz da razão e do esclarecimento, mas é habitada também por neblinas e trevas que obnubilam e turvam a visão de homens e mulheres que buscam realizar suas travessias nesse grande sertão, que é o mundo, através de suas, às vezes claras, às vezes escuras, veredas:

“Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas” (Rosa, 2001, p. 116). O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena (Grande Sertão: Veredas, p. 538).”

Antonio Gramsci, pensador italiano: é preferível ser o guia de si mesmo, tendo como iluminador de sua trajetória a sua própria consciência crítica
Ainda sobre esse claro-e-escuro que envolve as pessoas e o mundo, Riobaldo também nos diz:

“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (Grande Sertão: Veredas, p. 237).

É verdade que Riobaldo não consegue fazer uma sistemática análise das circunstâncias humanas e mundanas que lhes cercam: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza” (Grande Sertão: Veredas, 2001, p. 433). Porém, elas não lhes passam despercebidas, como se ele fosse um autômato. O humano que nele habita irrompe insatisfeito e perplexo, não através de questões logicamente bem formuladas, mas de interrogações metaforicamente especulantes, feitas de espanto e susto, pois o “mundo misturado” habitado por ele, cobra-lhe um arranjo que está para além de sua humana possibilidade. Entretanto, isso não o faz capitular, ele encontra ainda no mais recôndito de si, um novo sentido para o seu mover-se na vida e no mundo: “Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro” (Grande Sertão: Veredas, p. 207) e “o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Grande Sertão: Veredas, p. 80).

Riobaldo não é, certamente, e ele tem consciência disso, um sumo doutor. É, assumidamente, um pobre coitado sertanejo. Mas, desconfiemos dessa assunção autocomiserada: pode ser que — e suas enunciações revelam muito disso — o protagonista da saga rosiana esteja apenas tentando esconder o quanto realmente sabe, e nós sabemos que ele sabe muito. Observemos, por exemplo, esses trechos de sua prosa-poética em Grande Sertão: Veredas:

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa (p. 31). Quem desconfia, fica sábio (p. 154). O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p. 31).

De repente, podemos observar, que a aquela auto-piedade se esvai, e vemos um homem reconhecendo seu próprio valor e mérito. Podemos perceber até mesmo uma leve camada de um verniz de orgulho, por ele ser quem é, assim, do jeito que ele é:

“Eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo...” (Grande Sertão: Veredas, p. 24).

Dessa forma, será também um equívoco supor que Riobaldo esteja submetido o tempo todo à opinião e ao ditame alheios, ele também reconhece os perigos de tais injunções e estabelece limites para as mesmas. Disso dá conta, por exemplo, a amizade com o seu Compadre Quelemém, por quem ele tem uma admiração e uma confiança enormes nas discussões de ordem religiosa e espiritual. Quelemém é tido mesmo por Riobaldo, como um grande mestre e conselheiro: “Compadre meu Quelemém é quem muito me consola — Quelemém de Góis” (Grande Sertão: Veredas, p. 25). Mas mesmo com a fraterna amizade e o respeito ao saber de Quelemém, Riobaldo não abre mão de seus próprios critérios:

“Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não substrata. Só que isto a ele não vou expor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio — essa é a regra do rei!” (p. 39), pois, “cada um só vê e entende as coisas dum seu modo” (p. 33).

Talvez possamos nomear essa forma riobaldiana de ser e viver de “folclore”, tal como Gramsci o conceituou, ou seja, “o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir” (Gramsci, p. 93), que matiza todos os homens como filósofos “espontâneos”. Riobaldo é, certamente, um deles. A bizarra constituição de sua formação cultural

— pois,“(...) nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas e estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia (...).” (Gramsci, p. 95) —

faz de Riobaldo um exemplar típico do senso comum. Ou seja, um co-partícipe de uma determinada concepção de mundo de um determinado grupo social que compartilha uma mesma forma de pensar e agir (Gramsci, 1999). Porém, ao exercitar as suas perplexidades em relação às suas circunstâncias, Riobaldo busca, à sua maneira, aquela consciência crítica a que tanto Gramsci nos exorta. Ao fazê-lo, o herói rosiano começa a transcender o nível de um certo conformismo e resignação que lhe perturba o espírito. Quer agora compreender o mundo além de sua aparência, quer desanuviar a neblina que o encobre, pois, para ele, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia” (Grande Sertão: Veredas, p. 80). Nessa travessia, ele vai, aos poucos, alcançando o que Gramsci chamou de

“(...) o núcleo sadio do senso comum que poderia ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente.” (Gramsci, p. 98).

Façamos aqui uma ressalva importantíssima acerca dessa caminhada em direção ao bom senso, a partir do traçado de Riobaldo e da perspectiva gramsciana. Gramsci fala sempre de uma caminhada da superação da bizarrice do senso comum em direção ao seu núcleo sadio, o bom senso, a partir de um fundamento racionalista, ou seja,

“o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças racionais e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos” (Gramsci, p. 98).

Nesse aspecto, há uma retomada por parte de Gramsci, de um cânone fundamental da filosofia clássica: a razão. Para ele, o background organizador do mundo é tecido por um fio racional; para surpreendê-lo e desenredá-lo, o ser humano precisa utilizar-se de sua ratio, iluminadora secular das trevas humanas e mundanas, afogando em si mesmo os impulsos instintivos e violentos e superando as paixões bestiais e elementares (Gramsci, 1999).

Para Riobaldo, o desenredo da meada desse “mundo misturado” é muito mais complicado e, certamente, para essa hercúlea empresa, não é possível fiar-se unicamente na razão. Para a compreensão de um mundo complexo, o ser humano precisa compreender-se também complexo, o que lhe exige reconhecer-se em sua integridade, incluindo-se aí, “a megera cartesiana” (Grande Sertão: Veredas, p. 90). Poderíamos dizer que para o nosso filósofo “espontâneo” do Grande Sertão, a compreensão e o desvelamento do mundo estão subordinados, antes mesmo que à razão, à intuição, à revelação e à inspiração. Vejamos se essas “falas” riobaldianas dão boa confirmação disso:

“Mas Zé Bebelo era projetista, Eu, eu ia por meu constante palpite” (p. 527); “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes” (p. 520); “A vida é um vago variado” (p. 516); “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 511); “A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação — porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada” (p. 477).

E, ainda mais profundamente:

“Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que, para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo que está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e visível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador — sua parte, que antes já foi inventada, num papel... (Grande Sertão: Veredas, p. 500)”

Pode parecer, a princípio, que as proximidades entre o itinerário racional gramsciano e a travessia metafísico-religiosa riobaldiana tenham se separado de vez e agora trafegam em azimutes paralelos, ou seja, por caminhos que jamais se cruzarão outra vez. Pensar assim, é, entretanto, negar o que há de mais abundante e precioso em suas perspectivas: a complexidade. Posto que, se retomarmos o índex gramsciano caracterizador da filosofia “espontânea”, já mencionado nas primeiras páginas desse artigo, veremos que a mesma está presente também

“na religião popular e, conseqüentemente, em todo sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por ‘folclore’”

e, em outro momento, ele declara:

“Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus diversos participa necessariamente de uma intuição do mundo (...)” (Gramsci, p. 95).

Portanto, o fato de Riobaldo crer mais em sua intuição, esperar que o mundo se mostre através de revelações e assentar o seu juízo em manifestações inspiradoras, não o destrona da condição de filósofo “espontâneo”. Por sua vez, e isso já foi mencionado antes, o nosso herói sertanejo não deixa de reconhecer a importância da intelectualidade e da erudição, valores esses que ele também não deixa de exaltar em seu interlocutor invisível:

“Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente!” (Grande Sertão: Veredas, p. 423); “Se vê que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres” (p. 41); “Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir” (p.41).

Para concluir essa discussão, que teve como mote o inusitado e curioso silogismo cunhado por nós (“Todos os homens são filósofos. Riobaldo é homem. Logo, Riobaldo é filósofo”), partiremos da seguinte citação de Gramsci:

“O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise” (Gramsci, p. 94).

A nosso ver não é possível iniciar nenhum processo de elaboração crítica sem o defrontar-se nosso com uma dúvida, com uma perplexidade, com um estranhamento, com um espanto. Da suscitação, em nós, dessa dúvida, dessa perplexidade, desse estranhamento, desse espanto, surgem inumeráveis perguntas, questionamentos, inquirições, interrogações. As perguntas, os questionamentos, as inquirições, as interrogações que fazemos aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, nos conduzem ao querer conhecer o desconhecido, a querer desvelar o Real para além do que já sabíamos sobre ele. Em outras palavras, nós queremos encontrar a Verdade. No entanto, uma vez acercados dessa Verdade, eis que sentimos, num outro determinado momento, que ela já não nos satisfaz, então, nós recomeçamos o ciclo que nos fez duvidar da verdade, que nos faz fazer novas perguntas, que nos impôe o querer conhecer algo mais, que nos faz desvelar mais profundamente o Real, que nos faz encontrar outra Verdade. Como diria Riobaldo,

“o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão terminadas — mas elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão.” (Rosa, 2001, p. 39).

É o exercício da busca do autoconhecimento estabelecido pelo imperativo do “Conhece-te a ti mesmo” socrático (eis aí, outro cânone da filosofia clássica presente em Gramsci). Pois é a esse exercício que Riobaldo se lança durante toda a sua travessia pelo Grande Sertão, buscando a compreensão de si mesmo e do mundo que habita, pois, ele crê que, para “muita coisa importante falta nome” (Rosa, 2001, p. 125):

“E amor é isso: o que bem-quer e mal faz? (Rosa, 2001, p. 566) Quem sabe, tudo o que já está escrito tem constante reforma — mas que a gente não sabe em que rumo está — em bem ou mal, todo-o-tempo reformando? (Rosa, 2001, p. 559) Se a vida coisas assim às horas arranja, então que segurança de si é que a gente tem? (Rosa, 2001, p. 498) Ou são os tempos, travessia da gente? (Rosa, 2001, p. 418) Mas coragem não é meio destino? (Rosa, 2001, p. 415) O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? (Rosa, 2001, p. 373) O que era isso que, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? (Rosa, 2001, p. 370) Mas, me diga o senhor: a vida não é uma cousa terrível? (Rosa, 2001, p. 323) Homem foi feito para o sozinho? (Rosa, 2001, p. 202)

Então, se considerarmos que a consciência crítica inicia-se por uma dúvida, que conduz a uma pergunta que nos cala fundo, o espírito de Riobaldo está prenhe delas. Assim como um bom filósofo, ele tem muitas perplexidades e pouquíssimas certezas. Isso o torna um guia de si mesmo, apesar de sua caleidoscópica forma de aceder ao mundo. Como ele mesmo declara, “vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.” (Rosa, 2001, p. 429).


Referências bibliográficas

BOSI, Alfredo. Cartas de Gramsci. In: BOSI, Alfredo. Céu, Inferno: Ensaios de Crítica Literária e Ideológica. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003.

GRAMSCI, Antonio. “Introdução ao Estudo da Filosofia”. In: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999 (volume I). (Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; co-edição Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira.)

LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: Panorama de uma Literatura do Futuro. São Paulo: EPU, 1973. (Tradução de Fredy de Souza Rodrigues e Rosemary Costhek Abílio.)

ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, 3ª ed. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Nova Fronteira e Editora da UFMG, 2003.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. (Apresentação de Paulo Rónai.)


Este texto foi originalmente publicado no Jornal Opção de Goiânia
Os grifos são deste editor.




ROBERTO ANTONIO PENEDO DO AMARAL é mestre e doutor em educação brasileira pela UFG e professor da Fundação Universidade do Tocantins - Unitins. Correio eletrônico: penedo.amaral@gmail.com


Imagem retirada da Internet: Grande Sertão

Deu na Folha de São Paulo:


Morre artista chinês Wu Guanzhong, 90




The Ancient City of Jiaohe by Wu Guanzhong





São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2010


Wu Guanzhong, morto na última sexta, é considerado um dos pais da arte moderna chinesa. Sua obra, que mistura técnicas ocidentais e orientais, tem se valorizado nos últimos anos. Neste mês, uma de suas pinturas, uma paisagem, foi arrematada por US$ 8,4 milhões num leilão em Pequim.


Untitled (River houses) by Wu Guanzhong
Untitled (River houses) by Wu Guanzhong




Wistaria by Wu Guanzhong

Wistaria by Wu Guanzhong


Fonte: Folha de São Paulo.

Imagens retirada da Internet:



MEMÓRIA - Entrevista com o Poeta Ruy Espinheira Filho


“Uma poesia sem lirismo não passa de artesanato”



Com a morte de Carlos Drummond de Andrade, a poesia brasileira passou a ser dominada pela figura de João Cabral de Mello Neto. O coração racionalista de Drummond deu lugar à educação pela pedra de Cabral. E a crítica, influenciada pelo concretismo dos irmãos Campos, sempre privilegiou o João Cabral do verso seco, plástico, ao João Cabral de Morte e Vida Severina, um dos mais pungentes libelos da literatura brasileira. O próprio João Cabral acabou estimulando essa preferência.

Ao contrário de João Cabral, o poeta baiano Rui Espinheira Filho não tem medo do lirismo. Ele sustenta que poesia sem lirismo não é poesia, mas artesanato. Autor do livro de poesia Memória da Chuva, que foi adotado no vestibular da Universidade Federal de Goiás, Rui Espinheira Filho é jornalista e ensaísta, além de poeta. Como ensaísta publicou Forma e Alumbramento: Poética e Poesia em Manuel Bandeira (José Olympio Editora, 238 páginas, 33 reais), e Tumulto de Amor e Outros Tumultos (Editora Record, 368 páginas, 41,90 reais). A Editora Record também acaba de lançar sua Poesia Reunida e Inéditos (320 páginas, 40,90 reais).

Nesta entrevista concedida ao Opção Cultural e à revista eletrônica Bula (www.revistabula.com), o escritor Rui Espinheira Filho fala da literatura em geral e de sua obra em particular. Revela os meandros de sua relação com a palavra e defende a emoção na poesia. Participam da entrevista os escritores Carlos William, Francisco Perna, João Aquino e Sinésio Dioliveira.



Francisco Perna Filho — Numa entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão, em 1990, o sr. disse: “Ser escritor vivendo no Nordeste não é brincadeira. Digo vivendo porque, ao contrário de muitos, nunca saí da Bahia. Se para autores do eixo Rio-São Paulo é difícil, pois sei que é, imagine para quem vive fora do principal circuito literário — sem contatos, sem editoras, sem divulgação”. A Internet mudou essa realidade?

Ruy Espinheira Filho — A Internet aproximou todo mundo, é claro. E facilitou muito para o escritor, porque acabou com a necessidade de se ficar tirando cópias para enviar ao editor: hoje falamos por correio eletrônico, através dele enviamos livros de poemas, romances etc. Como também recebemos rapidamente recusas de publicação... E há ainda a vasta divulgação de revistas como a própria revista Bula. Não há dúvida: a Internet expõe autor e obra como nunca se viu antes. Acho tudo isso muito positivo, apesar das muitas tolices que às vezes nos assaltam o monitor...

João Aquino Batista — Em Tumulto de Amor e Outros Tumultos: Criação e Arte em Mário de Andrade, você quer “repor em discussão o pensador Mário de Andrade”. O seu objetivo foi alcançado? Mário de Andrade tem o reconhecimento que merece?

Ruy Espinheira Filho — Acho que os que leram meu livro tiveram uma boa surpresa, pois o pensador Mário de Andrade é admirável. Ele tem, em certas áreas, o reconhecimento que merece, mas precisa ser bem mais divulgado, pois o conhecimento das suas idéias nos enriquece muito — e nos livra (sobretudo os poetas) de embarcar em canoas furadas de modas formalistas que não passam de outros parnasianismos — como a Geração de 45, o concretismo, a poesia práxis e que tais. Ler Mário de Andrade é se vacinar contra essas pobrezas.

Carlos Willian Leite — Quem é o grande crítico brasileiro em sua opinião?

Ruy Espinheira Filho — Quem é o grande crítico brasileiro? Tivemos muitos de alta categoria, como o próprio Mário, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Sérgio Milliet. Hoje, há o Antonio Candido, o Wilson Martins, o Alfredo Bosi, entre outros. Na nova geração, eu destacaria Miguel Sanches Neto, que tem ainda a vantagem de ser também poeta, contista e romancista. Vantagem porque — como já dizia o Mário, com o qual concordam Candido e Bosi — o melhor crítico é o artista, porque faz sua crítica de dentro.

Carlos Willian Leite — E o grande poeta?

Ruy Espinheira Filho — O grande poeta? Acho que não há um que seja absoluto. Drummond é grande por certos momentos, noutros momentos Bandeira é maior, noutros é Jorge de Lima, Cecília, João Cabral... Mas às vezes eu prefiro ler os sonetos de Mario Quintana e de Carlos Pena Filho — ou autores de hoje, que prefiro não citar para não provocar ciúmes...

João Aquino Batista — Você é avesso aos concretistas e outras tendências poéticas do gênero. No fazer literário do Brasil, atualmente, dá para perceber a gestação ou a consolidação de alguma tendência que possa durar?

Ruy Espinheira Filho — O que pode durar não é nenhuma tendência — mas a qualidade. Ficamos buscando modismos, fazendo truquezinhos, projetando escolinhas — esquecidos de que a poesia é arte, isto é, expressão da alma humana. Lemos Homero, Dante e Shakespeare, por exemplo, porque eles falam da nossa condição, nós nos reconhecemos neles. Era por isso que Mário dizia ser Homero e Dante poetas modernos. E são mesmo. Acusaram Bandeira de ser poeta insignificante por ser muito subjetivo. Ora, pergunto eu: que arte não é subjetiva? Que artista não fala de si mesmo? Até João Cabral, com suas conhecidas idiossincrasias, acabou reconhecendo que, tentando falar das coisas, falava mesmo era de si próprio. Abordo tais assuntos tanto no livro sobre o Mário, Tumulto de Amor e Outros Tumultos (Record, 2001), quanto no que publiquei sobre Bandeira — Forma e Alumbramento: Poética e Poesia em Manuel Bandeira (José Olympio/ABL, 2004). Enfim, o artista cria — com o que ele é. Se não for grande coisa, aí vai ser concretista, construtivista etc... Quer dizer: se revelará não-artista, não-poeta.

Francisco Perna Filho — Em 1988, o seu livro Memória da Chuva, Prêmio Ribeiro Couto, da UBE, foi adotado no vestibular da Universidade Federal de Goiás. Qual foi a importância dessa adoção para o sr.? A partir daí, mudou alguma coisa na sua literatura?

Ruy Espinheira Filho — A adoção de Memória da Chuva como leitura para o vestibular da Universidade Federal de Goiás foi uma grata surpresa. Isto fez com que as vendas disparassem e ele chegasse logo à terceira edição. Aliás, Memória da Chuva é um dos meus livros mais aventurosos e venturosos. Foi editado pela dedicação do Alexei Bueno, a quem eu não conhecia pessoalmente. Não fosse ele, não sairia das oficinas da Nova Fronteira. Nem mesmo teria ido para lá, pois só o enviei a pedido do Alexei, que trabalhava na Nova Fronteira como editor. E não foi fácil, ele brigou muito pelo livro. E repito: nem nos conhecíamos pessoalmente, só através de cartas e trocas de publicações. Além da adoção universitária, Memória da Chuva concorreu com mais de 400 livros de poemas e acabou entre os três finalistas do Prêmio Nestlé, em 1997. Também foi finalista do Jabuti, no mesmo ano. Foi também esse livro que fez com que o romancista Antônio Torres achasse que eu já estava na hora de ter uma editora grande — e me apresentou a Luciana Villas-Boas, da Record. Pouco tempo depois saía pela Record minha poesia reunida (que fora incluída num programa da Biblioteca Nacional, graças aos bons serviços de amigos como o Ivan Junqueira), como viria a sair o livro sobre Mário. Com tais publicações, é claro que me tornei mais conhecido. Agora está saindo um volume intitulado Elegia de Agosto e Outros Poemas, pela Bertrand Brasil, devendo ser lançado na Bienal do Rio, em maio. São composições escritas entre 1996 e 2004.

Francisco Perna Filho — Depois de Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud, pode se falar em originalidade em poesia?

Ruy Espinheira Filho — Claro que se pode falar em originalidade após Rimbaud! Afinal, originalidade é questão de qualidade. O artista — o que merece este nome — é sempre original. E a originalidade absoluta não existe: apenas pegamos a herança da tradição e procuramos dar a ela nossa colaboração. Os que procuram ser originais a todo custo não perceberam que não se pode fazer mais do que isso. Afinal como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol... Em essência, não há mesmo. Mas o homem continua criando e, assim, consegue insuflar na vida algo de sua originalidade de indivíduo. Depois de Rimbaud tivemos muita gente “original” — como Yeats, Eliot, Fernando Pessoa, Auden, Bandeira, Drummond, para só ficarmos nestes.

Francisco Perna Filho — O senhor por tem uma profunda formação humanística: é jornalista, mestre em ciências sociais e doutor em literatura. Partindo dessa formação, qual a leitura que faz da obra de Afonso Henriques de Lima Barreto (prosa) e João da Cruz e Sousa (poesia)?

Rui Espinheira Filho — Lima Barreto foi um dos autores que deixaram claro não ter a literatura nada a ver com aquele “sorriso da sociedade” do Afrânio Peixoto. Ele foi longe na alma humana, criando uma obra densa, sofrida e extremamente crítica. Todos nós lhe devemos muito. Quanto a Cruz e Sousa, sou seu admirador desde a adolescência — e uma das minhas maiores emoções foi receber, em 1981, um prêmio com seu nome — o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Sousa, de Santa Catarina. A meu ver, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens foram os únicos grandes poetas da fase que se costuma chamar simbolista. Mas não os vejo presos a fase alguma: são poetas admiráveis em qualquer tempo.Volto a eles constantemente, e sempre com encantamento.

Carlos Willian Leite — Tem acompanhado a produção intelectual universitária?

Ruy Espinheira Filho — Tenho feito algum acompanhamento da produção universitária. Às vezes deparo com um trabalho interessante — como o ensaio Longe Daqui, Aqui Mesmo, de Sérgio de Castro Pinto, sobre a poética de Mário Quintana, obra de muita sensibilidade e na qual o autor desvela a mediocridade da crítica oficial em relação a Quintana. Lembro também Da Inutilidade da Poesia, de Antonio Brasileiro, e João Cabral: A Poesia do Menos, de Antônio Carlos Secchin. De um modo geral, porém, acho os textos universitários bastante chatos, pedantes.

João Aquino Batista — Quais as conseqüências do que você denomina “ecos do parnasianismo”?

Ruy Espinheira Filho — Os tais “ecos do parnasianismo” geraram as vanguardas reacionárias (porque formalistas) que foram a geração de 45, o concretismo e similares. Quero crer que já estão perdendo a força, só subsistindo em alguns bolsões de miséria intelectual e lírica.

Carlos Willian Leite — A angústia à moda de Harold Bloom é inevitável?

Ruy Espinheira Filho — No meu livro sobre Mário eu abordei a tal angústia da influência — mostrando que os poetas brasileiros não costumam sofrer dela, tanto que reconhecem abertamente as influências, confissão que surge às vezes até nos próprios poemas. Drummond diz: “Esses poetas são meus”. Bandeira, nas memórias, escreve que suas influências são incontáveis. Tudo isso sem trauma. O que é compreensível, porque não há ninguém isento de influências.

Francisco Perna Filho — O que é fundamental numa obra literária?

Ruy Espinheira Filho — O fundamental na obra literária é ela própria. A arte não é meio para coisa alguma — é o seu próprio fim. Desta forma, o fundamental é que a arte seja mesmo... arte.

João Aquino Batista — Você admite a influência de vários escritores e poetas. A poesia é isso: uma eterna retomada e reburilada do já feito?

Ruy Espinheira Filho — Sim: o que o artista faz é dar sua colaboração à herança que recebe. Não é refazer: é fazer, utilizando essa herança, trabalhando sobre ela, com ela, porque ninguém faz arte no vazio. Repetindo o poeta, nenhum homem é uma ilha.

Carlos Willian Leite — O senhor disse em entrevista que o lirismo estava renascendo no Brasil. O Affonso Romano de Sant’anna disse que o que existe, são resquícios de um lirismo envergonhado. Quem está com a razão?

Ruy Espinheira Filho — É, há casos de lirismo envergonhado. João Cabral sofria disso, mas acabou sendo um grande poeta lírico. Na maioria das vezes, porém, o que há mesmo é falta de lirismo. Agora, os que são líricos estão exercendo seus talentos. Felizmente, porque poesia sem lirismo é apenas artesanato, não se cumpre, não é poesia.

Sinésio Dioliveira — Se as coisas não tivessem substantivos para nomeá-las, você acha que ainda assim existiriam os poetas?

Ruy Espinheira Filho — A poesia será, simplesmente, a nomeação das coisas? Acho que é mais, bem mais: é expressão da alma humana. De nossa grandezas e vilezas, esperanças e desesperos, da nossa perplexidade diante do mundo e da vida. Não é truquezinho de gabinete: é gemido, é grito, é súplica, é afirmação, é busca de alguma compreensão, de alguma iluminação nas trevas do nosso cotidiano.

Francisco Perna Filho — Fernando Pessoa pronunciou o seguinte: “Quen não vê bem uma palavra, não pode ver bem uma alma”. (A Língua Portuguesa - Companhia das Letras, 1999) O Senhor concorda com ele?

Ruy Espinheira Filho — Fernando Pessoa era um gênio e dizia coisas geniais. Creio que ele tem razão, pois a palavra é caminho. Se somos cegos a ela, não encontramos o caminho - e nos perdemos da alma.

Sinésio Dioliveira — Esse fingimento de que fala o poeta Fernando Pessoa no poema Autopsicografia, você acha que ele está presente em todos os poemas que o poeta faz?

Ruy Espinheira Filho — Esse fingimento pessoano deve ser considerado com cuidado, porque é um fingimento de uma dor que o poeta “deveras sente”. Acontece que a arte não é uma confissão direta, não tem compromisso nem com sinceridade nem com verdade, consideradas moralmente. A verdade da arte é meramente estética. Se a arte é autêntica, ela é verdadeira, é sincera, não importa que “finja” para atingir seus fins. Mesmo porque esse fingimento é apenas um “meio” para o artista expressar sua verdade, sua sinceridade. Enfim, é um falso fingimento, porque, como está dito, a dor que ele finge - “deveras sente”. O problema é que o pessoal costuma citar apenas o primeiro verso do poema - que tem doze. Como já disse, esse “fingimento” é algo especial, não o fingimento da mentira, da adulteração. É o “fingimento” que produz a obra de arte - e, como obra de arte, é verdade pura.

João Aquino Batista — O discurso poético engajado e ideológico tem algum valor literário ou depende muito de quem o faz, aliás, como todo discurso?

Ruy Espinheira Filho — O engajamento pode, sim, produzir obras de valor artístico, como vários poemas políticos de Drummond. Agora, o dado ideológico por si não tem nenhum valor estético. O valor ético não produz valor estético. Como dizia o mesmo Drummond, “de boas intenções não nascem necessariamente bons versos”.

Sinésio Dioliveira — Entre os dois ingredientes razão e emoção, qual deles você acha que ajuda mais na lapidação estética do poema?

Ruy Espinheira Filho — Não há poesia sem emoção. Palavras de Borges: “É sobretudo a emoção que importa”. Mas é claro que poesia é também uma construção, por isso a razão é chamada a participar com seu trabalho de artesanato. Para se fazer um poema, dois fatores têm que atuar: o sopro lírico (a emoção) e a técnica (a razão). Com apenas um desses fatores não se consegue nada.

Carlos Willian Leite — Para quem daria um Nobel de poesia, se ele existisse?

Ruy Espinheira Filho — A quem daria um Nobel de poesia? Confesso não estar agora preparado para tão alta tarefa.

João Aquino Batista — A morte, como a síntese das perdas, o amedronta ou encanta?

Ruy Espinheira Filho — A morte não me encanta nada, não vou gostar de morrer. Mas, como terei de morrer, sou obrigado a conviver com ela, a idéia da morte. Que, aliás, está presente em muitos dos meus poemas - e cada vez mais... Mas também não chego a viver amedrontado com o inevitável: os assombros da vida já tomam quase todo o meu tempo.

Sinésio Dioliveira — A poesia está nas coisas ou no modo de reparar para elas?

Ruy Espinheira Filho — Não houvesse o ser humano, não haveria poesia. Porque os animais, que ainda vivem no paraíso que perdemos, não precisam de arte para enfrentar a vida: eles vivem, apenas. Não precisam de arte, nem de filosofia, nem de deuses, são animais superiores. E, segundo Borges, que citei há pouco, são eternos, pois não têm consciência do tempo sucessivo. Voltando ao princípio: somos nós que pomos poesia no mundo, na vida. E não só os poetas, pois a poesia é um dom de toda a humanidade. Não fosse assim, não haveria poetas - a não ser para escrever para outros poetas. Os poetas são os operários da poesia, os construtores de poemas, mas a sensibilidade poética é da espécie humana.


Imagem retirada da Internet: Ruy Espinheira

Jordanna Duarte - Poema


A música que me toca






Vibra em mim uma música que ecoa desde muito cedo
Que ressoa desde antes, muito antes do caminho aberto

Vibra em mim uma música que preenchia aquelas manhãs
De sol calmo, de jardim amplo, de pés de mangueira

Vibra em mim uma música que aprendeu desde cedo
Como andar pelo caminho pautado
A subir e descer entre espaços e linhas

Vibra.
Como não haveria de vibrar?
Se está em mim
Se não consigo caminhar senão por sons e silêncios.

Vibra em mim uma música
De acordes despontando, abrindo trincheiras de para sempre
Para sempre em mim
Acordando

Ressoa, ecoa, reverbera nos meus cantos
Nos meus silêncios partidos de pausas
Mínimas
Às vezes, agitato, tempo giusto
Mas sempre em mim
Vibrando

Naquele quintal, onde o vento se fazia música
Onde era possível, mesmo antes de conhecer o caminho,
Girar num tempo que já existia desde antes

Naquelas manhãs, descobrindo a feitura da escrita entre as mangueiras
Nas tardes que sonorizavam a solidão
De se descobrir entre intervalos, o preto e o branco do marfim

No prédio de tijolinhos à vista que guardava os segredos
Os medos do vir-a-ser
Naquela cauda imensa que se apresentava para a criança

Nos fins de frases, na necessidade das respirações que incitavam o encontro
O terno reencontro
Entre o que vibrava fora e dentro
Um caminho ondulado, simultâneo, independente de mãos
Que uniam o dentro e o fora de mim
Para sempre em mim
Ressoando
Ecoando o encontro de mim

Como não haveria de vibrar?
Se vibra dentro
Se toca a alma
Se já está desde antes, muito antes do caminho aberto

Hoje, um caminho que me trilha
Que me presenteia
Que vive em mim
Para mim
Dentro de mim


Imagem retirada da Internet: Piano

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