Flávio Carneiro - Conto
Célio Pedreira - Poema
Cecília Meireles - Crônica
Morre José Saramago Prêmio Nobel de Literatura
Morre aos 87 anos o escritor português José Saramago
Autor foi laureado com Nobel da Literatura em 1998 e morreu em casa na companhia da família
O escritor faleceu às 13 horas locais (8 horas de Brasília), segundo sua esposa e tradutora, Pilar del Rio. Ainda de acordo com ela, Saramago havia passado uma noite tranquila e, depois de tomar café da manhã com a mulher, começou a passar mal e faleceu em pouco tempo.
O autor recebeu o prêmio máximo da Literatura em 1988. Segundo a premiação, Saramago "nos permitiu mais uma vez apreender uma realidade ilusória por meio de parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia".
Autor de "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e "Ensaio sobre a cegueira", Saramago vivia em Lanzarote desde 1993 com a jornalista espanhola. O escritor foi hospitalizado diversas vezes nos últimos anos, principalmente por conta de problemas respiratórios.
PERFIL DO ESCRITOR
José Saramago nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registro oficial seja do dia 18. Seus pais foram a Lisboa antes dos três anos de idade do escritor. Fez estudos secundários que não pode continuar por dificuldades econômicas.
A popularidade internacional veio em 1982, com “Memorial do Convento”, prestígio que consolidou com obras como “A Balsa de Pedra” (1986), “A segunda vida de Francisco de Assis” (1987), “História do cerco de Lisboa” (1989) e o “Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991).
Em 1993, pelo que dizia ser perseguição religiosa dado o tom polêmico de suas obras, que se chocaram com representantes da Igreja Católica e a proibição da publicação de seus romances em Portugal, Saramago fixou residência em Lanzarote (Ilhas Canárias, Espanha),
Ganhador do Prêmio Camões em 1995, Saramago iniciou no mesmo ano a publicação da trilogia formada por "Ensaio sobre a cegueira”, “Todos os nomes” e “Ensaio sobre a lucidez”. Em 2008, iniciou um blog, “El cuaderno” (o caderno) e no ano passado apresentou seu último romance, “Caim”.
Lista das obras do autor
Fonte: O Estadão
Lygia Fagundes Telles - Conto
José J. Veiga - Conto
José J. Veiga
Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou - não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas - quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. E claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima - até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.
Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer - aliás todos reconhecem - que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica kaol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo - e a máquina fica faiscando como jóia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.
Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.
A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal - por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer sabe a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo?
Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso - aqui para nós - eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu - e creio que também a grande maioria dos munícipes - não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando.
O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos), peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
Brasigóis Felício - Crônica
Ficantes da modernidade
Por Brasigóis Felício*
Ia este bardo um dia desses, pela avenida T-7, e encontro o artista plástico Gomes de Sousa, amigo de muitos janeiros, que há muito eu não tinha o prazer de rever. Sorvia ele a cerveja sem culpa da leveza de viver como filósofo que é (com direito a canudo de universidade). Ia depressa, a caminho de uma fila de banco, mas me dei conta do que eu mesmo escrevi, há tempos: é preciso viver devagar, de olhos atentos no horizonte do agora, pois que amanhã é muito longe, e quando chegar será hoje. Ficantes da modernidade são os que ficam, depois que tudo passa. Assim, bebemos à saúde da vida, sem culpa, mesmo sendo dia bancário.
Falamos de coisas muitas, de nossa vivência comum: a explosão de criatividade artística (e de rebeldia política) das décadas de 70 e 80. Goiás viveu nesta quadra um amadurecer e florescer do trabalho feito por seus pioneiros, vindos de muitas partes, até de outros países, como Frei Confaloni (itália) e Gustav Ritter (Alemanha). Sem falar em D. J. Oliveira, que veio de São Paulo, para montar o cenário de uma peça teatral, e ficou, tornando-se depois pintor-matriz e muralista, fonte de inspiração para muitos, que se tornaram fortes, nutrindo-se de sua força criativa.
Dentre estes, Iza Costa, Siron Franco, Kleber Gouveia, Maria Guilhermina, Ângelo Ktenas e Antonio Poteiro, que vieram a se tornar canônicos. Agostinho e Juca de Lima também figuram na lista dos pioneiros da artes plásticas, vindo Otavinho Arantes e João Bênnio no cinema e teatro, vindo depois Hugo Zorzetti e Marcos Fayad, com notável talento. Como floradas ou galhos desta árvore poderosa e fundadora, surgiram o próprio Gomes de Sousa, M. Cavalcante, Dacruz, Alcione Guimarães, e outros, também importantes, revelados nos concursos para novos valores, da Casa Grande Galeria de Arte, responsável pela primeira grande exposição de esculturas a céu aberto, que teve a avenida Goiás como cenário.
Pairava no ar uma onda criativa intensa, uma energia de liberdade, ressonãncia dos idos libertários de 1968, que agitaram as ruas de Paris, e de outras cidades do mundo. Em Goiás tudo começou com a saga da construção de Brasilia. Ventos de modernidade sopraram da prancheta de Lúcio Costa e Oscar Niemayer. Goiânia, cidade planejada, tinha donaires de modernidade, com sua art deco. Na música, a revolução começou com o maestro Jean Douliez, Belkiss Spenciére Carneiro, liderando a criação do Conservatório de Música; vieram depois Maria Guilhermina, Cleber Gouveia, Ângelo Ktenas, à frente do Instituto de Artes da UFG. Vieram depois os festivais de Música, com destaque para o Comunica-som, Arthur Rezende à frente.
A Casa Grande Galeria de Arte, com Célia Câmara à frente, deu grande contribuição a este impulso criativo, que estendeu-se à literatura: o GEN (Grupo de Escritores Novos) levantando bandeiras de instauração pós-modernista, e a geração que surgiu na década de 70. Da geração pós Gen destacaram-se Gabriel Nascente, Aidenor Aires, Valdivino Braz, Delermando Vieira, Ubirajara Galli, Tagore Biram, Pio Vargas, Edival Lourenço, Antonio José de Moura, Celso Cláudio e outros, poucos. Tudo a fluir em explosão de modernidade criativa, com Siron Franco e Antônio Poteiro – sendo que este, em sua simplicidade de autêntico artista ingênuo, foi talvez o mais moderno dentre todos os nossos modernistas.
Vêm-me à lembrança as rememórias de meu encontro casual com Gomes de Sousa, enquanto escrevo estas linhas no QG de imprensa do Fica – um Festival de vídeo e cinema ambiental, que veio para ficar. Este evento de dimensão internacional é representativo, a meu ver, da maturidade de Goiás, que aprendeu a enxergar e valorizar aquilo que Fica, por ser essencial, depois que passa todo o efêmero e o trivial. Então, de súbito, me dou conta de que nada foi perdido de tudo tanta energia criativa, a crescer com Goiás, em tempos de mudança e de construção do futuro. Em verdade, a modernidade, que veio para ficar, muda o tempo todo, como tudo neste mundo de impermanência, e só morrem os que são esquecidos, e os que desistem de manter vivas as boas lembranças da vida.
Brasigóis Felício é Poeta, autor de uma dezena de livros, e Membro da Academia Goiana de Letras.
Imagem retirada da Internet:erótico
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