A água viva da poesia
Brasigóis Felício *
“A poesia tem muita serventia. Se ao menos eu soubesse para que...”. Assim auto-ironizou seu ofício o poeta francês Jean Cocteau. Talvez os místicos e os poetas tenham conservado esta abertura para a vivência de sermos criaturas cósmicas e divinas, mesmo vivendo em meio ao caos e ao sofrimento. Sendo a poesia um estado de vida, ou um momento de êxtase, pois segundo uma lenda judaica o homem conheceu o universo no seio materno mas, ao nascer, esqueceu tudo: através da imaginação, que é o seu instinto de relação cósmica, o homem torna a mergulhar na comunhão primordial: “Suaves e inarticulados gritos ressoam, ainda, sem sentido no vazio; mas um belo dia, de repente, eles se transformarão em diálogo. Com o que? Talvez com a chaleira que está fervendo”.
“Para escrever um único verso é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas. É preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voam os pássaros e saber que movimentos fazem as florzinhas quando se abrem de manhã”. Assim escreveu o poeta Rainer Maria Rilke, um que viveu e exprimiu a poesia da vida. De Moçambique, recebo uma coletânea de versos de Clara Soeiro, esposa do jornalista brasileiro Etevaldo Hipólito, que em virtude de seu idealismo, por ensinar, a leitura da língua e da vida, junto ao grande pedagogo e pensador Paulo Freire, teve que sair de seu país natal, indo dar com os costados em Moçambique, onde serve ao povo com sua inteligência e o seu idealismo, que estão bem vivos.
Antes, pensando ser oportuno e necessário que escritores brasileiros e moçambicanos se leiam e se conheçam, Etevaldo Hipólito repassou-me vários livros de autores moçambicanos, a fim de que tenha início este conhecimento, para um possível e já iniciado intercâmbio cultural entre intelectuais, escritores e artistas dos dois países. Chamou-me a atenção a qualidade literária das obras a mim enviadas pela Associação dos Escritores Moçambicanos, com destaque para o Sangue negro, criado pela chama ardente dos versos de Noêmia de Sousa, que lembra, pela força de sua poética, o poeta Castro Alves, em seu vigoroso e clássico Navio negreiro.
O motivo de estar um autor brasileiro a prefaciar obra de uma poetisa moçambicana é, para mim, dos mais lisonjeiros: o pedido de apresentação deu-se, segundo Etevaldo Hipólito, pelo fato de Clara Soeiro (que ainda não conheço pessoalmente) haver lido e relido, várias vezes, meu livro de crônicas Viver é devagar. Ora, isto não é novidade em literatura e arte: o coincidir o gosto artístico, as afinidades, visões de mundo, faz surgirem amizades e estreitarem distâncias, sabendo-se ser a criação artística e literária uma nave que nos possibilita viajar universos, sem sair do lugar. Lendo os textos de Clara Soeiro, chamou-me a atenção sua ligação telúrica com a terra, a sensibilidade com que evoca Ibo, sua ilha mãe, mesmo estando suas ruínas “como os cacos de um espelho partido”.
Sendo a poesia, assim como a crônica, filhas de Cronos, o Senhor do Tempo, hão de ser antenas, a captar a verdade da hora vivida por quem escreve ou faz arte. Seus textos apontam momentos inundados de humanidade, denunciando não só o olhar amoroso da autora sobre a realidade sócio-econômica vivida pelo seu povo, mas também a compaixão, e a indignação dirigida às estruturas que mantêm em funcionamento a máquina infernal, produtora de uma pobreza reprodutiva, para cujo fim não acena com nenhuma esperança. Em Cabritismo a autora incursiona pelo minimalismo, tão ao gosto dos modernistas brasileiros, fazendo uma crítica ferina e contundente à prática da corrupção (denúncia que se aplica a muitos países sub-desenvolvidos, ditos “emergentes”, aí não se excluindo o Brasil).
O cabrito vai comendo muito bem, obrigado, no lugar onde está amarrado, enquanto os outros são apenas “bodes expiatórios”. Bode expiatório é todo aquele que não faz parte de nossa tribo, o que não é companheiro, sendo menos igual do que os outros, por não compartilhar conosco o pão gordo e gostoso de quem está no poder. Um verso de poesia popular, vindo do nordeste brasileiro, explica bem isto : “A vantagem de quem tá no poder/ é judiar de quem tá por baixo”.
No poema Desminagem Clara Soeiro evoca a herança trágica das minas, fruto fatal das guerras e da insanidade humana. Se “minar” um terreno implica em semear a semente da morte e da mutilação, a um dólar por unidade, desminar o mesmo terreno é tarefa entregue aos próprios fabricantes de armas que o minaram, só que eles cobram um mil dólares por cada mina retirada, o que confirma que para certas pessoas ou empresas (mais iguais do que as outras) tanto a guerra quanto a paz representa um excelente negócio de oportunidade. No poema Buracos a autora revela fina ironia poética, finalizando-o com versos de alta voltagem, em forma de nitroglicerina pura. No poema Sétima idade há lamento e litania, enfocando o drama da velhice pobre e desamparada, a viver uma fase da vida nem um pouco feliz, destituída de glamour, longe de ser a “melhor idade”, como se diz da velhice aos que têm condições reais de aproveitar sua paz e serenidade.
Em Um dia de Moluene (Criança de rua desamparada) – uma peça literária de pungente dramaticidade – coloca a autora o foco de seu olhar poético sobre o que no Brasil chamamos de flanelinhas, os vigiadores de carros, pequenos pivetkongs, desafortunados malfeitores mirins (muitos são bem taludos, e até ameaçadores), filhos da exclusão social e do abandono humano, que povoam as ruas das cidades. Isto prova que a exclusão social é endêmica e reprodutiva, na América Latina como na África, dela não estando libertas os países social e economicamente ricos, estes sim, em sua maioria, produtores de exclusão social, de que se livram através de mecanismos imperialistas, de protecionismo econômico, e de jugo financeiro internacional, a que chamam de “ajuda humanitária”, “proteção do FMI”.
Na África como no Brasil (bem como em outros países da América Latina, mais pobres do que o somos) multiplicam-se as hordas de novos pobres, na maré do empobrecimento programado, instituído pelo FMI – e estes novos pobres vêm se juntar aos antigos, gerando uma ciranda infernal, um déficit crescente de dignidade e desenvolvimento humano.
Apesar disto, continuam os poetas e artistas a sonhar, como visionários que são – e Clara Soeiro permite-se manter vivos seus sonhos de criança, preservando a riqueza da imaginação infantil, o bem essencial ao cristalino e legítimo desenvolvimento da mente e da criatividade humanas, que a televisão nos rouba, ao nos tirar o poder da imaginação. A poesia quer continuar sonhar, recusa ser morta pelas frias engrenagens produtoras de injustiças, não quer trair o sonho da alma. Pois sabem os poetas que Deus perdoa os assassinos, mas não os indiferentes!
*Brasigóis Felício é Escritor, Poeta e Jornalista, Membro da Academia de Letras de Goiás, autor de vários livros.
Imagem retirada da Internet: Ilha de Moçambique