Signos em rotação
Por Francisco Perna Filho
“A minha vida está se desmoronando, e as pessoas estão se divertindo muito com isto. Mas eu não perco a dignidade. Continuo trabalhando.” Li esta declaração de uma jovem atriz brasileira que anda metida numa série de problemas pessoais, fartamente explorados pela mídia. Lembrei-me do que disse o cantor e compositor John Lennon, numa fase da sua vida em que nada parecia dar certo: “Ninguém o ama quando você está por baixo e por fora”.
Não é preciso ser filósofo nem antropólogo para teorizar a respeito do viver e do fenecer. Até mesmo os crápulas, nas suas ínfimas pausas de maledicência, devem fazê-lo. John fez parte da cultura pop em sua época, deu o seu recado e nos legou boa música e mensagens humanitárias que muitos menosprezam ou insistem em não captar. Quando foi baleado na porta do Dakota Hotel, o ex-beatle pagou com a própria vida o preço pela incompreensão e pela intolerância.
Com vocação para a inveja e a crueldade, nós crescemos interessados nos revezes uns dos outros. Não foi assim na infância? Nos embates e estripulias com os vizinhos de rua? Nas disputas disfarçadas e humilhações dentro nas escolas? Zombamos do menino quatro-olhos, da menina dentuça, dos gorduchos e dos orelhas-de-abano. Insistimos nas troças até fazer chorar. Sorrimos do sofrimento alheio com semblantes apalermados, comemorando, intimamente ou de forma indisfarçável, o mal que recaía sobre terceiros. Em matéria de maldade, somos bons demais da conta.
O espetáculo da dor e do fracasso presta-se ao regozijo de muitos. Não é por acaso que as revistas que publicam os escândalos dos famosos vendem aos borbotões, enriquecendo seus editores, alvoroçando a energúmena massa. O febril interesse pelas tragédias é surpreendente, mórbido, digno da imersão de psicólogos e demais estudiosos da mente e do comportamento humanos. Para a maioria de nós é prazeroso assistir às autodestruições. Um cantor viciado. Uma atriz alcoólatra. Um pastor pedófilo. Habitantes do fundo do poço. Palhaços que somos gostamos mesmo é de ver o circo pegar fogo.
Durante a vida crescemos adestrados sob padrões e regras, a fim de nos adaptarmos à convivência social sadia e, digamos, normal. Há muitos vieses. Aprendemos a valorizar o supérfluo como se ele fora o essencial. Com aguçados cinco sentidos, reparamos em defeitos e imperfeições aos quais nos julgamos imunes. Valorizamos com tal exagero as aparências que a vida vai ficando assim superficial e sem sentido. Apegados aos bens materiais, tocamos a vida como se fosse uma viola faltando algumas cordas. O som fere os ouvidos, no entanto, acreditamos fazer um concerto e tanto.
A frivolidade e a devoção ao dinheiro são ensinadas dentro e fora dos lares, por pais ausentes e as maravilhas da tecnologia, naquele esforço colossal para suportar a desunida família e manter as aparências. Não é à toa que a filantropia é ofício de uns poucos abnegados. Gastar o próprio tempo ajudando estranhos parece pouco atrativo. Muitos, julgando-se baluartes da benevolência e do desprendimento, desprendem sim algumas moedas nas mãos miseráveis dos mendigos e pedintes que lotam as portas das igrejas e os semáforos das cidades. Entregamos as quirelas por piedade ou por medo?
Para se sentirem melhores, alguns cidadãos abonados fazem doações vultosas às entidades carentes, como se elas carecessem apenas de dinheiro. Os milionários fanfarrões, que garantem preferir o anonimato, salpicam sobre os desafortunados as migalhas de seus quinhões, ao invés de “desperdiçarem tempo” ouvindo, dando atenção sincera, ensinando, aprendendo a viver.
Nas minhas divagações de escritor, e nas incursões silenciosas de um ser vivente, eu me esforço para entender a condição humana no planeta. Tudo parece uma equação complexa e sem um fim que a justifique, aquela mesma sensação que me afligia nas aulas de física e matemática da infância. O professor, criatura boníssima das mais injustiçadas no Brasil, acabava dando uma forcinha e chegávamos a um resultado. A conta era exata e sempre fechava. Mas agora é diferente. Meu antigo professor já nem existe mais, senão em fotografias e na memória dos seus familiares, amigos e ex-alunos, como eu. Quem vai então se apiedar de mim e revelar uma valiosa dica?
Homenagem
É setembro de 1963, tenho 16 anos, e estou batendo à porta de uma grande casa de tijolos no alto da Main Street, em Amherst.
Uma mulher de uniforme branco - criada? enfermeira? - atende. "Alguém importante para mim costumava viver aqui", digo. "Será que é possível visitar a casa?"
A mulher fica intrigada. Falando baixinho, como se tentasse não incomodar o sono de alguém, ela explica que o proprietário está no andar de cima e não pode descer. "Ah, nem precisa incomodar as pessoas. Só quero dar uma olhadinha". Depois de hesitar, ela parece decidir que sou um jovem sério e inofensivo, e permite minha entrada.
Lá entro, o aspecto é vitoriano. Pisos de madeira polida; luz suave e fraca. Uma escadaria curva. À direita uma biblioteca; à esquerda, a sala de visitas. Entro em uma sala, cruzo para a outra, e depois paro contemplando a escadaria, tentando absorver o ambiente. Mas a situação não é confortável. A mulher está me olhando, como que à espera. Olho para o topo das escadas, agradeço e ela me leva à porta.
Emily Dickinson nasceu naquela casa, conhecida como Homestead, em dezembro de 1830, e morreu lá em 15 de maio de 1886. Passou boa parte de sua vida adulta ali, em um quarto no canto do piso superior da casa, escrevendo poemas e cartas durante a noite toda, em uma mesa do tamanho de uma carteira escolar; ela costurava os poemas em fardos, e depois os trancafiava, para que fossem descobertos depois de sua morte.
Porque cresci na Nova Inglaterra, eu conhecia sua vida, ou ao menos a versão romântica corrente ¿suas roupas brancas, sua reclusão. E havia lido muitos de seus 1,8 mil poemas. Eu era um menino amigo dos livros, escrevia versos e não encontrava meu lugar no mundo; tinha problemas com o conceito de autoridade, e estava em busca de heróis. Por herói, quero dizer alguém a quem admirar mas, acima de tudo, alguém com quem pudesse me identificar e de alguma forma quisesse ser. Encontrei o que procurava em Dickinson. Por isso, para mim foi uma grande experiência visitar a casa em que ela viveu, naquela dia.
Como descobri posteriormente, ela é objeto de fascínio, ou adoração, para muita gente, e é por isso que periodicamente retorna a uma posição de destaque na cultura, como é o caso agora. Dickinson é tema de dois livros, o romance intitulado The Secret Life of Emily Dickinson, de Jerome Charyn, e uma nova biografia por Lyndall Gordon, que sairá no próximo mês. E até 13 de junho, o Jardim Botânico de Nova York, no Bronx, abrigará uma elaborada exposição dedicada a ela, com uma recriação do jardim que ela mantinha em Homestead, uma seleção de poemas manuscritos e longas sessões de leitura de seus poemas.
Não surpreende que, depois de décadas de atenção estreita, existam tantas versões de Emily entre as quais escolher.
Embora os estudiosos costumassem concentrar suas atenções no isolamento de Dickinson, no passado, agora ela é vista como alguém que levava uma vida social muito intensa. (Sua correspondência, por exemplo, revela mais de 100 missivistas.) E suas conexões com sua era, por exemplo com a guerra civil norte-americana e a literatura vitoriana, ou o sistema de classes provinciano em que ela nasceu, também são tema de estudo.
A teoria feminista e os estudos homossexuais contribuíram para redefinir o perfil de sua personalidade. A figura tímida, passiva e discreta foi transformada em uma presença ativa, forte, desafiadora dos papéis sexuais, uma poeta em pleno controle de sua arte e ambiente e completamente consciente da mecânica de seu mito pessoal.
É verdade que a distância entre fato e ficção continua nebulosa, opondo de um lado a comunicativa Beldade de Homestead e de outro uma maluca agorafóbica. O retrato de Dickinson como uma estudante sexualmente precoce, oferecido no romance de Charyn, é quase completamente fantasioso, com apenas alguns grãos de verdade. O relato biográfico de Gordon sobre Homestead como um ninho de vespas no qual ciúmes e ressentimentos zumbiam sem parar é preciso no que tange aos fatos, mas dramático demais quanto aos efeitos.
A Dickinson que eu conheci e com a qual cresci também me foi revelada por uma dupla de livros. Fui apresentado a ela por um pequeno volume quadrado chamado Famous American Poets, de Laura Benet. Publicado em 1950, o livro consistia de biografias sucintas, cronologicamente ordenadas e determinadamente otimistas de escritores populares, tais como Clement Clarke Moore e Carl Sandburg, e Dickinson estava entre eles. E a Dickinson que o livro mostrava era uma perfeita figura dos anos 50, a começar do retrato usado como ilustração.
Existe apenas uma foto confirmada de Dickinson, um daguerreótipo de quando ela tinha 16 ou 17 anos. A imagem é a de uma menina esbelta, em um vestido escuro que lhe deixava os ombros e pescoço nus. O cabelo está preso para trás e expõe seu rosto largo e pálido. Os olhos muito separados estão voltados para frente, sem um foco determinado. Os lábios estão ligeiramente separados. Ela está sentada, e tem nas mãos um buquê frouxo de amores-perfeitos.
Foi esse o retrato usado no livro de Benet, mas a imagem sofreu retoques radicais. No livro, Dickinson usava um vestido branco com um pescoço rendado. O penteado era mais juvenil, e os traços de seu rosto foram atenuados. A foto havia sido alterada para servir como retrato da autora no primeiro livro de poemas de Dickinson, publicado postumamente. A imagem retocada data de 1890. Os retoques acompanham as alterações que os editores realizam nos poemas, normalizando a pontuação expressiva que ela utilizava, suavizando os ritmos e excluindo certos tipos de versos, especialmente os mais irados ou de conteúdo erótico.
Uma imagem bonitinha era uma jogada de marketing, e Benet a perpetuou 60 anos mais tarde. A biografia de Dickinson que ela oferece é a história de uma jovem bem educada que, depois de uma única decepção amorosa, decide se recolher à sua casa, onde escrevia, plantava flores, dialogava com seu deus calvinista e morreu satisfeita com o seu fado.
Essa imagem de Dickinson era útil para duas eras norte-americanas que tinham muito em comum. Na década de 1890, um país rico enervado pela urbanização, imigração e violência racial contemplava com nostalgia uma versão mais rural, branca e gentil de si mesmo. Dickinson, vendida como uma espécie de figura folclórica rural cujo abandono da vida social indicava rejeição ao mundo moderno, se tornou porta-voz daquele passado.
Na era da guerra fria, ela interpretou papel correlato. Com o avanço da paranóia com relação ao comunismo e à destruição nuclear, e o avanço concomitante do poderio norte-americano, o país voltou a sonhar com o ontem, povoado por pioneiros tementes a Deus. Dickinson, uma figura tão individualista quanto monástica, uma vez mais servia a essa imagem.
Era essa a imagem de Dickinson que eu recebia, mas mesmo então eu percebia que isso pouco tinha em comum com a poesia que ela deixou. Uma edição em três volumes de sua poesia completa, liberta das "melhoras" vitorianas, foi por fim publicada em 1955. A biblioteca de minha cidade tinha uma cópia, e eu a estudei com muita atenção. Descobri lá a poeta melancólica de Benet, mas também outra escritora, mais áspera, intensa, surpreendentemente imprudente, que escrevia sobre abraçar uma bomba, ter medo do próprio corpo e sentir a mente dividida. Em sua versão mais extrema, Dickinson se sentia terrorista: "Se eu tivesse uma arma poderosa Creio que atiraria na humanidade". E com isso descobri minha heroína.
E foi então que descobri uma segunda biografia de Dickinson, essa escondida em meio às estantes da biblioteca, Riddle of Emily Dickinson, escrita em 1951 por Rebecca Patterson. A capa mostrava o velho retrato retocado, mas sobre um fundo preto e cercado por folhas de cores exóticas, um estilo meio noir que eu associava a livros de mistério. Quando levei o livro para casa, me surpreendi com o que li.
Como Benet, Patterson atribuía o isolamento e a poesia de Dickinson a um romance frustrado. Mas acreditava que o objeto da paixão fosse uma mulher.
A revelação, verdadeira ou não, foi explosiva para um adolescente que se sabia gay mas ainda estava isolado naquele conhecimento. Como sempre, voltei de imediato à poesia de Dickinson e descobri nela uma dinâmica que havia sentido sem conseguir identificar: uma fluidez de gênero.
Dickinson escreveu na voz de uma mulher, de um homem, de uma menina, de um menino, de alguém que ama e de alguém que é amado. E subitamente ela passou a representar um exemplo de vida. Não apenas por ter vivido excluída mas também, aparentemente, por ter sido uma fora da lei, vivendo à margem, exatamente como eu sentia viver.
Adoro pensar em jovens, especialmente os que não se adaptam bem e não aceitam a vida como lhes é dada, encontrando os poemas de Dickinson, curtos como mensagens do Twitter, pela primeira vez, e depois descobrindo sobre a vida que ela levou tanto tempo atrás. Porque essa vida, pelo menos para um determinado menino, fez com que ser diferente parecesse não apenas aceitável como algo a desejar.
E talvez esses jovens decidam visitá-la, como fiz. Em 1963, Homestead ainda era uma casa particular.
Dois anos mais tarde, o Amherst College a adquiriu e agora ela se tornou museu, visitado por milhares de pessoas a cada ano. Na minha mente, eu também a visito, e muitas vezes. Dickinson continua a significar tanto para mim quanto significava no passado, e talvez mais. E continuo retornando para bater àquela porta.
Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, vocês não viram onde deixei meus óculos? A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, esta receita é nova... Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, fico exausta no calor... Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. Você levou as velas à tia Olívia? , perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.
A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.
Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.
- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...
O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.
Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.
- Tem charme...
Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.
- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.
Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.
Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.
- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.
Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.
- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...
Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.
- Diz que ele se suicida, Marcelo...
- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.
Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.
- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.
Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.
Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.
- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.
Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.
- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.
- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.
- Tem dois buracos em lugar dos olhos.
- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.
Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.
Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.
Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.
- Sofro tanto com o calor...
Madrinha tentava animá-la.
- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.
Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.
- É da idade, querida. É da idade.
- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.
- Ele monta tão bem. Tão elegante.
Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco . Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.
Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.
- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.
Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.
Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.
- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.
Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.
- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.
Madrinha aproximou-se com o castiçal.
- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.
Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.
Sentou-se na beirada da minha cama.
- Estou.
- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.
Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.
- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.
Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.
ALGA MARINHA
Alga marinha lançada ao mar aberto,
navego à deriva — não estou presa a nada.
Quero achar o meu caminho — o do começo —
mas me instalaram nesse arremesso
e não conheço a maré do princípio
que me jogou nesse permanente risco.
Alga marinha nesse amaro mar,
sem pontos cardeais, mapa-múndi
ou estrela-guia, vivo à deriva.
Não conheço meu porto (asseguro)
e um dia só serei verdes cabelos
envolvendo corpos destroçados
que viajaram na maré montante
e chegaram afogados de aurora
à praia maior - de todos os oceanos.
(In.Amaro mar, pág. 37, 1988
Imagem retirada da Internet: Alga marinha
Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21 Urubus sobrevoam...