Francisco Perna Filho - Ensaio Curto


Signos em rotação

Por Francisco Perna Filho


Até bem pouco tempo, professor era aquele que professava algo, tinha o que dizer, valia-se da sua cátedra para incutir conhecimentos, semear o bem, os mais edificantes ensinamentos. Tempo de Mestres, não somente de títulos, mas de fato, e de artes, ser universal, de uma alma grande e profícuo conhecimento.

O que aconteceu com tão valioso ser? Praticamente inexiste. Sobraram poucos e esta geração quase não teve ou tem a oportunidade de conviver com um desses, uma vez que a nossa realidade acadêmica é caótica, já não comporta os grandes mestres: magister, os que aí estão, quase sempre, não passam de oportunistas de um mercado em ascensão, já que não deram certo nas suas profissões originárias, descambaram para uma área, que, à primeira vista, parece tudo acolher, daí a tragédia em que vivemos.

Se por um lado não existem mais os mestres, certamente não há razão para existência de discípulos, muito mais ainda num tempo de muita exaltação midiática e pouco aprofundamento nas questões essenciais, como pensar o outro, a solidariedade, a ética, o meio ambiente, sem falar na nossa rica e preciosa Língua Portuguesa, que de tão maltratada e vilipendiada, perdeu força e prestígio, um exemplo claro disso está nas universidades, mais especificamente nos cursos de comunicação social.

Como vemos, se não há uma valorização da Língua Portuguesa, nem mesmo nos cursos em que ela é de fundamental importância, como jornalismo e publicidade e propaganda, quem dirá nos outros cursos, onde ela “não é tão importante assim.” Mas tudo bem! Dirão uns. - Tudo isso faz parte da modernidade, vivemos na era da imagem, precisamos dominar a técnica, e acabou! Vociferarão outros. Ninguém sentirá falta da Língua, muito menos dos grandes Mestres, uma vez que não se pode sentir falta daquilo que não se conhece.

A realidade é dura e triste, mas o que me dá um dó danado é ninguém fazer nada, é deixar gente tão incompetente, sem conhecimento mínimo das questões básicas, como ensino e aprendizagem, movidos apenas pela vaidade e a ganância do mercado, passar-se por mestre, por dono do saber, conduzir pessoas, destinos, desconsiderando a própria ignorância.

Como dizem: a vida é cíclica, e, por isso, talvez, ainda venhamos, nas gerações pósteras, a reaver os mestres que se foram, reformados no ânimo e no sangue dos vindouros homens de bem, e aí, um outro ser, que também sou eu, numa crônica como esta, não lamentará ausências, mas falará de feitos e bondade, de respeito e solidariedade, tudo isso escrito em bom Português.


*Título tomado de empréstimo ao escritor Mexicano Octávio Paz.


Imagem retirada da Internet: Óculos

Lúcio Alves - Crônica



Fico feliz por te ver assim tão triste



Por Lúcio Alves



“A minha vida está se desmoronando, e as pessoas estão se divertindo muito com isto. Mas eu não perco a dignidade. Continuo trabalhando.” Li esta declaração de uma jovem atriz brasileira que anda metida numa série de problemas pessoais, fartamente explorados pela mídia. Lembrei-me do que disse o cantor e compositor John Lennon, numa fase da sua vida em que nada parecia dar certo: “Ninguém o ama quando você está por baixo e por fora”.

Não é preciso ser filósofo nem antropólogo para teorizar a respeito do viver e do fenecer. Até mesmo os crápulas, nas suas ínfimas pausas de maledicência, devem fazê-lo. John fez parte da cultura pop em sua época, deu o seu recado e nos legou boa música e mensagens humanitárias que muitos menosprezam ou insistem em não captar. Quando foi baleado na porta do Dakota Hotel, o ex-beatle pagou com a própria vida o preço pela incompreensão e pela intolerância.

Com vocação para a inveja e a crueldade, nós crescemos interessados nos revezes uns dos outros. Não foi assim na infância? Nos embates e estripulias com os vizinhos de rua? Nas disputas disfarçadas e humilhações dentro nas escolas? Zombamos do menino quatro-olhos, da menina dentuça, dos gorduchos e dos orelhas-de-abano. Insistimos nas troças até fazer chorar. Sorrimos do sofrimento alheio com semblantes apalermados, comemorando, intimamente ou de forma indisfarçável, o mal que recaía sobre terceiros. Em matéria de maldade, somos bons demais da conta.

O espetáculo da dor e do fracasso presta-se ao regozijo de muitos. Não é por acaso que as revistas que publicam os escândalos dos famosos vendem aos borbotões, enriquecendo seus editores, alvoroçando a energúmena massa. O febril interesse pelas tragédias é surpreendente, mórbido, digno da imersão de psicólogos e demais estudiosos da mente e do comportamento humanos. Para a maioria de nós é prazeroso assistir às autodestruições. Um cantor viciado. Uma atriz alcoólatra. Um pastor pedófilo. Habitantes do fundo do poço. Palhaços que somos gostamos mesmo é de ver o circo pegar fogo.

Durante a vida crescemos adestrados sob padrões e regras, a fim de nos adaptarmos à convivência social sadia e, digamos, normal. Há muitos vieses. Aprendemos a valorizar o supérfluo como se ele fora o essencial. Com aguçados cinco sentidos, reparamos em defeitos e imperfeições aos quais nos julgamos imunes. Valorizamos com tal exagero as aparências que a vida vai ficando assim superficial e sem sentido. Apegados aos bens materiais, tocamos a vida como se fosse uma viola faltando algumas cordas. O som fere os ouvidos, no entanto, acreditamos fazer um concerto e tanto.

A frivolidade e a devoção ao dinheiro são ensinadas dentro e fora dos lares, por pais ausentes e as maravilhas da tecnologia, naquele esforço colossal para suportar a desunida família e manter as aparências. Não é à toa que a filantropia é ofício de uns poucos abnegados. Gastar o próprio tempo ajudando estranhos parece pouco atrativo. Muitos, julgando-se baluartes da benevolência e do desprendimento, desprendem sim algumas moedas nas mãos miseráveis dos mendigos e pedintes que lotam as portas das igrejas e os semáforos das cidades. Entregamos as quirelas por piedade ou por medo?

Para se sentirem melhores, alguns cidadãos abonados fazem doações vultosas às entidades carentes, como se elas carecessem apenas de dinheiro. Os milionários fanfarrões, que garantem preferir o anonimato, salpicam sobre os desafortunados as migalhas de seus quinhões, ao invés de “desperdiçarem tempo” ouvindo, dando atenção sincera, ensinando, aprendendo a viver.

Nas minhas divagações de escritor, e nas incursões silenciosas de um ser vivente, eu me esforço para entender a condição humana no planeta. Tudo parece uma equação complexa e sem um fim que a justifique, aquela mesma sensação que me afligia nas aulas de física e matemática da infância. O professor, criatura boníssima das mais injustiçadas no Brasil, acabava dando uma forcinha e chegávamos a um resultado. A conta era exata e sempre fechava. Mas agora é diferente. Meu antigo professor já nem existe mais, senão em fotografias e na memória dos seus familiares, amigos e ex-alunos, como eu. Quem vai então se apiedar de mim e revelar uma valiosa dica?


Homenagem


Com a publicação desta crônica O Banzeiro Textual presta uma homenagem póstuma ao Escritor, Poeta, Jornalista, Artista Plástico e Advogado, Lúcio Alves de Lima, falecido no dia 12 de maio de 2010, em Palmas, onde era funcionário público Federal: Auditor do Trabalho. Infelizmente, só fiquei sabendo da sua passagem hoje, 18 de maio de 2010. Lúcio Alves de Lima, tradutor de "O Tambor", de Gunther Grass, publicado pela Editora Nova Fronteira, era o que podemos chamar "um sujeito genial", inteligência ímpar, capaz de discutir qualquer assunto com desenvoltura e profundidade. Lúcio era um cidadão do mundo, viveu na Europa, foi um Flanêur, frequentou rodas intelectuais, conviveu com nomes importantes da pintura e da literatura universais. Na Alemanha, cursou, por dois anos, Medicina. Mudou-se para Inglaterra, depois, para Portugal, quando escreveu para diversos Jornais. Falava cinco idiomas: Inglês, Francês, Alemão, Italiano e Espanhol. Uma alma inquieta, inconformada com as mazelas humanas, com os desmandos na administração pública; impaciente com a mediocridade que ronda o meio intelectual e artístico. A você, Caro Lúcio, o meu reconhecimento e a minha homenagem.



Foto by Jornal O Girassol

Ode de Ricardo Reis - Fernando Pessoa





















Ode


Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.


Imagem retirada da Internet: Fernando Pessoa


Emily Dickinson Por Holland Cotter - Ensaio

The New York Times
Fonte: Portal Terra -

14 de maio de 2010 15h59

Imagem retirada da Internet: Emly Dickinson

Lygia Fagundes Telles - Conto


As cerejas


Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, vocês não viram onde deixei meus óculos? A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, esta receita é nova... Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, fico exausta no calor... Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. Você levou as velas à tia Olívia? , perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.

- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!
Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.

- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...

O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.

- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?
- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...

Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.

- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?
Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos . Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.

- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!
Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.

- Tem charme...

Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.

- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.

Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.

- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?
- Só na folhinha.

Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.

- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.

Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.

- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...

Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?
Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.

Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.

- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?
Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.

- Diz que ele se suicida, Marcelo...

- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.

Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.

- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.

Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.

Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.

- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.

Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.

- Ela é bonita, não?
Ele bocejou.

- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.

- Vulgar?
Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.

- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.

- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!
Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.

- Tem dois buracos em lugar dos olhos.

- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.

Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.

Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.

Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.

- Sofro tanto com o calor...

Madrinha tentava animá-la.

- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.

Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.

- Você acha que vai chover?
- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.

- É da idade, querida. É da idade.

- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.

- Ele monta tão bem. Tão elegante.

Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco . Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.

Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.

- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.

Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.

- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!
Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.

Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.

- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.

Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.

- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.

- E Marcelo?
- Não sei, deve estar dormindo também.

Madrinha aproximou-se com o castiçal.

- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!
Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.

- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.

Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:
- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.

Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.

Sentou-se na beirada da minha cama.

- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?
Prendi a respiração para não sentir seu perfume.

- Estou.

- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?
Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.

- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.

- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!
- Comprarei outras.

Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.

- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.

Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.

- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?
Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.


In. Oito Contos de Amor.São Paulo: Ática, 2001, p.15-23.
Imagem retirada da Internet: cerejas

Lançamento do meu livro - Poemas

Darcy França Denófrio - Poema












ALGA MARINHA


Alga marinha lançada ao mar aberto,

navego à deriva — não estou presa a nada.

Quero achar o meu caminho — o do começo —
mas me instalaram nesse arremesso
e não conheço a maré do princípio
que me jogou nesse permanente risco.

Alga marinha nesse amaro mar,
sem pontos cardeais, mapa-múndi
ou estrela-guia, vivo à deriva.

Não conheço meu porto (asseguro)
e um dia só serei verdes cabelos
envolvendo corpos destroçados

que viajaram na maré montante
e chegaram afogados de aurora
à praia maior - de todos os oceanos.


(In.Amaro mar, pág. 37, 1988

Imagem retirada da Internet: Alga marinha

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