Antônio Cícero - Ensaio
Brasigóis Felício - Ensaio Crítico
O decote de Vênus
por Brasigóis Felício*
Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.
No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.
Imagem: Zacarias Martins
Valdivino Braz - Poema
Valdivino Braz - Poema
ÂMBAR E BLUES
PÊNDULAS LÂMPADAS
BÊBADAS BALADAS BADALADAS
MADRUGADAS NO BAR DOS BARDOS
CAMPÂNULAS E CALÊNDULAS
NOCTÂMBULAS PALABRAS
QUE SE DESDOBRAM
DE SUAS DOBRAS
LÂMINAS
PUSILÂMINES
SONÂMBULAS SÍLABAS
SIBILADAS
TRAGOS AMARGOS
VIDAS PERDIDAS
NAS NOITES DE TUDO
COM AS BAGAS DE SEUS NADAS
VÂNDALAS MARIPOSAS
KAMIKAZES DA LUZ
SOBRE AS MESAS
EM COPOS DE ÂMBAR
E BLUES
Valdivino Braz - Poema
O TRISTE FIM DE JOE BLACK
Joe Black se enrabichou com Suzana,
uma leoa lá em Louisiana,
mas não deu certo com aquela dona,
e se embeiçou por uma loura no Missouri.
Conheceu tudo que havia de bom e de ordinário
em suas belas e louras aventuras.
Agora o seu negócio é roer o osso de tudo isso,
feito um velho cão deitado num canto da calçada,
um sujeito caído de mau jeito à beira do meio-fio,
ou ali de pé a contemplar o rio e a balançar o corpo,
como se fosse o balanço de um relógio no tempo frio.
Com o rosto oculto na sombra de seu chapéu preto,
Joe Black sempre gunguna,
que não quer mais se meter com loura nenhuma.
Prometendo um dia se jogar no rio
de águas tão profundas quanto suas mágoas,
prometendo se jogar por tudo isso,
prometendo se jogar no rio e acabar logo com isso.
Não faça isso. Há quem lhe peça,
mas já sabendo que ele fará exatamente isso.
Pobre Joe Black!
Pobre Joe Black!
Dia virá depois de um tremendo pileque
em que ele fará exatamente isso,
pro fundo do rio com os seus gemidos e resmungos,
pra misturar seu corpo negro com os murmúrios do mundo,
pra correr mundo com a água turva e turbulenta de tudo.
Pobre Joe Black!
Pobre Joe Black!
Valdivino Braz - Poema
Melancholy Blues
B.B. Pinga Made in Brazil num bar azul do Tennessee,
um desses barzinhos chinfrins, como tantos por aí.
B.B. Pinga no King Creole em New Orleans,
onde o Elvis cantou praquele filme Balada Sangrenta.
Também bebi ali pelos bares da Carolina do Sul,
perdi minha alma numa tarde cor de mostarda e magenta,
my soul que se escondeu do sol,
numa bebedeira por causa de Mary Blues.
B.B. Pinga com os negros meus irmãos
dos campos de algodão
e das terras lamacentas do Mississippi,
onde fui perseguido e espancado por membros da Klan.
Quem me dera ser grego e levar a vida na flauta de Pã!
Andei por outras bandas, bebi no Alabama e era só lama,
lodo negro o coração dos brancos
nos sombrios pântanos do Alabama.
É, brother, me embriaguei feito um gambá, se quer saber,
ouvindo B.B. King cantar Nobody loves me but my mother.
Bebi uns tempos com uma prostituta decadente,
que gostava de mim, minimizava-me a dor latente
e consolava minha pobre alma doente.
Let’s go, Baby, eu dizia praquela vadia minha amiga,
que adorava John Lee Hooker e entrou na minha vida.
Tire a blusa, tire o jeans, tire a calcinha, maninha.
Abra seu livro, your pocket bock, com as pétalas do poema.
Mostra, meu amor, a borboleta na flor de suas pernas.
B.B. Pinga até dançar um rock num barzinho de New York,
e lá pelas tantas cantei Tamborim Man com Bob Dylan,
que me presenteou com o seu livro Tarântula.
Lá em Atlanta me jogaram na cara que isso era mentira.
Ainda
e de Eliot, o poeta da terra devastada.
Tive a língua travada pelo nome de J. Alfred Prufrock
e me senti assim um dos homens ocos de Thomas Stearns,
onde se acrescenta o que falta ao próprio Eliot.
É, brother, enchi mesmo a cara em New York,
ouvindo Liza Minelli cantar New York, New York.
Era fim de noite e de repente me lembrei da morte do pássaro,
The Bird, como era chamado o nosso Charlie Parker.
B.B. Pinga até cair morto e virem bater à minha porta
os frios ventos do Norte a me chamar
com a voz negra e gutural do corvo Edgar.
Eram noites geladas
naquele inverno da nossa desesperança.
Eu lia o romance de Steinbeck
e ouvia na rua os gritos de Florence:
Fuck you, Joe Black! No maior pileque,
a velha e doida Florence com o seu chapéu de flores
e os mendigos lá fora,
se esquentando ao fogo dos tambores.
B.B. Pinga feito mosca de bar e me danei.
Me dei mal com o melô da minha melancolia no Barfly,
e me mandei com Robert Johnson praquela encruzilhada.
Topei um solo de viola em duelo com o Diabo,
perdi a parada, bebi uma caixa-d´água de pinga
e te digo, irmão, que a vida é mesmo uma íngua.
Minha vida ao desalento é um velho sax em surdina,
lamento perdido na madrugada,
tocado de uma sacada para os telhados do Brooklin
e do Bronx e do Harlem.
Ó my mother, estou indo, estou voltando pra casa.
Sofro de delírios, ando vendo coisas,
estranhas coisas como um bebê de regresso às tuas entranhas,
o bastardo que sou de um pai negro que se afogou
no lago profundo de teus olhos azulegos, ó mãe.
Estou a caminho,
sozinho com a minha gaitinha de blues a tocar.
De volta ao lar, de volta ao lar,
pois todo caminho é circular.
Andarilho pelos trilhos do destino,
vou indo nesse trem de viajantes clandestinos,
e esse trem a me levar vai me deixar no fim da linha,
de parelha com o riozinho onde tudo começa
e só regressa com o fim do dia a se acabar.
Já não demora mais a hora de chegar, mãezinha.
Mamãe, mamãe, estou aqui.
Estou bem aqui, mamãe.
Cansado de tudo,
não quero mais perambular pelo mundo.
Nunca mais.
Never more.
Nem que eu olhe pra trás.
Nem que eu chore
e me desespere pra voltar.
Nem por amor.
Não quero.
Não quero mais.
O corvo me espanta e me persegue feito alma penada,
querendo que eu pague a conta de tudo com a minha vida.
Tenho pavor do corvo Edgar,
que se acabou de tanto beber,
e no entanto era o grande Edgar Allan Poe,
o grande Allan Poe,
o grande Edgar.
B.B. Pinga num barzinho do meu bairro no Brasil,
ouvindo B.B. King e viajando pelas bandas do Blues,
voltando no tempo sem sair do lugar em pleno ano 2000.
Daí compus o blues da longa história que se ouviu,
um pouco também ao som de John Lee Hooker,
e talvez seja este o mais longo dos blues,
indo de trem até chegar ao Guinness Book.
Imagens retiradas da Internet
Floriano Martins - Poema
Blacktown hospital, bed 23
6.
Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.
In. Campos queimados (Inédito).Fonte: Grupomultifoco. Fotografia retirada da Internet: Floriano Martins
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