Camilo Pessanha - Poema














Inscrição


Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...



In. Clepsidra. Porto: Editora Nova Crítica, p11, 1989.
Imagem retirada da Internet: Lua

Herberto Helder - Poema

















O Amor em Visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele — imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
— Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria!
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.

E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


Imagem retirada da Internet: mulher

Antônio Ramos Rosa - Poema
















Maio de 68


As linhas, mil linhas, novas linhas
do ar que circula
numa língua desligada, de uma fábrica
de ervas violentas, jovens,
nutrindo o pulso e os membros,
água de silêncio, no ar agora,
nas avenidas abertas ao silêncio,
nas pedras sem memória, sem medo,
vitória que se perde na frescura rápida,
princípio irrefragável desvanecido, vindo,
lanço a fronte no ar para a linguagem viva
que respira na espessura fragmentada morta
perseguida no vazio, obscura carga,
peso de um olhar, de uma boca ávida sem passado,
no entusiasmo irreparável da língua por viver
do corpo imediato
no centro - turbilhão - da árvore.
Terra, o solo comum, originário, em que descalços
surgir, ó boca, surgir como só um
de nós,
na praia de um presente aberto,
o vulcão surdo convertido em jorro de ar,
a boca restituída ao corpo, a língua
dada ao ar, ao sopro de um corpo a renascer,
razão livre desde sempre, ignota, desde sempre a única
razão,
anterior chama de ar submersa,
que nos lábios soçobra, agora se levanta,
fronte única, fonte, ovo de tudo o que começa,
rajadas de ar,
árvore de homens num estrépito de folhas de ar nas ruas,
a pedra o sol a terra a chama ávida e nua
a praia sob os passos
a página de mil linhas
a boca as palavras que rompem como água
de um princípio que encontra o seu presente
agora a língua livre e jovem
a língua irrefragável.


In.Nos seus olhos de silêncio. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1970.p.99-100. Fonte: Revista Poesia Sempre. Nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.28, 2007.
Imagem retirada da Internet: Antônio Ramos Rosa


Antônio Ramos Rosa - Poema






Antônio Ramos Rosa






Se não vivo ainda de um país branco e vermelho
ou de uma mulher de um magnífico fruto
se por ela não tremo e por ti não digo
ou não tremo e escrevo
sem uma estrela viva sem uma sombra de amor
é porque saí do teu ventre
e pela interdição de o fender
de o abrir na tua fenda primeira
numa Primavera derradeira
e por ti e por ela poderei viver ainda
e num arco-íris de sombra ou de areia
respirar como um astro subterrâneo
o espaço do mar
o sono de um canto adolescente
ó maravilhoso gemido
de um abandono
sem futuro!

Lisboa, 24/11/06


In. Revista Poesia Sempre. nº 26, Ano 14. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, p.24, 2007.
Imagem retirada da Internet: arco-íris

Brasigóis Felício - Ensaio






Por Brasigóis Felício







A liturgia da caneta




No lançamento do livro “Pescando peixes graúdos em águas goianas”, do poeta Geraldo Pereira, representando a Ube-go, fui chamado a dizer algumas palavras. Disse da diferença que existe entre as pessoas que planejam, alimentam sonhos, e as que se deixam levar como peraus na correnteza: as primeiras têm futuro, enquanto as outros têm destino. Falei da decadência a que se entregam as nações que não escutam as vozes de seus poetas. Ou de estadistas que honram a liturgia dos cargos que exercem, esmerando-se em dar exemplos positivos aos povos que lideram, animando-os com palavras sábias, nobres e belas, e outros, que agem como se fossem animadores de circo, acrobatas de buteco, e piadistas indecorosos, envaidecidos de não lerem livros, e de não gostar dos que os lêem ou escrevem – como diz o senador Mão Santa, ele prefere fazer duas horas de esteira a ler, de um livro, uma página inteira!

A história de Geraldo Pereira, este poeta longilíneo, espandongado e sem jeito, qual um Quixote dos trópicos, é um exemplo a ser exaltado e seguido. Vindo dos gerais da Bahia, à beira do São Francisco, para não morrer de fome, já que o velho Chico anda vasqueiro de peixes (até dos miúdos), veio, batendo alpercatas, pescar em águas goianas – como tantos de sua grei o fizeram, atravessando a Serra Geral, em caminhada heróica e sertaneja, que durava meses. Quando, ao atravessar a serra, os mais cansados perguntavam se Goiânia estava longe, alguém dizia: vamos apertar a alpercata que a capital está ali, bem pertinho. Pois é... pra que... um rapaz tão moço! Assim, como tantos outros heróis anônimos, Geraldo Pereira chegou, se instalou na Vila Nova, pátria da baianidade vindica, e viu que era bom. Viu que poderia ter aqui um futuro melhor do que poderia ter na terra em que nasceu. De bicicleta, pedalando sua magrela pelas ruas de Goiânia, fez-se vereador, mas logo viu que seus ideais estavam além do que a política poderia fazer, a não ser prometer sem cumprir, como a maioria dos políticos o fazem. Bandeou-se então para a poesia, e nesta nave vai muito bem, pescando peixes graúdos, em águas goianas, de mais dois ou três Estados do nordeste, e até em águas de Portugal.

Em uma mesa, bebericando e mordiscando delícias do ágape que o Sesc ofereceu ao poetariado tupiniquim, conversava com o poeta Valdivino Braz e Lamar Lamounier, sobre A caneta dourada, casa de vender e consertar canetas de classe, que houve na Goiânia antiga. Era um requinte ter uma Mon Blanc, uma Park 51. Conferia status e distinção a quem portava uma destas, mesmo sendo analfa de pai e mãe. Quando estragavam, Valbraz era o artífice que dava jeito, chegando até a fabricar peças das cobiçadas jóias, objeto do desejo de colecionadores. Quem matou a beleza e o requinte deste tempo?Quem trouxe a simplicidade barata e objetiva da Bic, que anda de bolso em bolso, sem dono que possa chamar de seu, e sem valer nem de um calango nem o seu pisca-pisca? Pior será quando matarem a arte de escrever.

Que tenha se perdido no tempo o prazer (ou o orgulho besta, admito) de ter uma caneta que seja jóia rara, foi uma perda e tanto. Uma aposentadoria da beleza, um destronar do talento. Collor não sacou de uma Bic para assinar o termo de posse e renúncia da presidência da República. A liturgia do cargo pedia uma Mont Blanc. Mesmo tendo ele feito o que fez, ou permitido que o fizessem. Já outros fazem titica na liturgia do cargo, agindo como Chapolins colorados, fazendo piada de assassinatos políticos, para divertir os irmãos Castro. Tristes, trágicos tempos sem canetas douradas!


Imagem retirada da Internet: Parker

Paulo Leminski - Poema


















Amor


Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.


In.Caprichos & nrelaxos. Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.89.
Imagem retirada da Internet:amor meu grande amor


Ivan Junqueira - Poema














INÊS: O NOME


Inês é nome que se pronuncia
Para instigar ou seduzir prodígios,
é senha que as sibilas balbuciam
ao decifrar enigmas cabalísticos.

É mais do que isto: códice da língua,
raiz da fala, bulbo do lirismo.
É gênese da raça e do suplício,
arché do amor e substância prima.

É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retornar na antítese do epílogo.

E quem disser que Inês é apenas mito
- mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.


In. A rainha arcaica. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.114.
Imagem retirada da Internet: Pedro e Inês

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