Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) - Poema











Fernando Pessoa








Olá, Guardador de Rebanhos


"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"

"Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"

"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."

"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."


In Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.
Imagem retirada da Internet: www.olhares.com O Guardador de Rebanhos


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) - Poema








Fernando Pessoa









Datilografia



Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra…

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.


Imagem retirada da Internet: Máquina de Escrever.

Ruy Espinheira Filho - Poema





Ruy Espinheira Filho

















Soneto do Quintal



para Matilde e Mario,
em Monte Gordo, março de 91





Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro

decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro

de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,

um gato. E essas formigas — três — conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.




Imagem retirada da Internet: Tamarindo.

Memórias - Por Francisco Perna Filho




Francisco Perna Filho







O POETA E A CIDADE - MEMÓRIAS


(...)


Goiânia me traz belas lembranças, porque lá vivi uma boa parte, ou melhor, a maior parte da minha vida. Quem não se lembra do Hotel Presidente, do seu Cine Presidente, onde assisti pela primeira vez ao filme The Wall , Pink Floyd? Quem não se lembra da Galeria do Beto, no setor oeste, com seus barzinhos e lojas? Do Saloon, na República do Líbano. Do Hotel Bandeirante, com seu Piano Bar, palco de grandes acontecimentos sociais? Umuarama Hotel, Samambaia Hotel, Hotel Araguaia, Lord Hotel, todos fazendo parte desta bonita história? Momentos de uma vida, olhares vários de um tempo de encantamento, os belos bailes do Jóquei e do Jaó. Talvez pela distância, fato normal nas nossas fantasias de perpetuação do que é bom.

E a Praça Universitária? coisa igual não havia, ali embalei os meus sonhos, meus amores, a minha boêmia, quando comecei o meu curso de Letras na UCG, agosto de 1984, Época de D. Fernando. Vivíamos ainda a efervescência dos movimentos políticos, participei de algumas passeatas do DCE, juntamente com Denise Carvalho, Donizete, Edvirgens, Claudinho, Sinésio Dioliveira, e tantos outros irmão de luta. Participei do Festival Interno da Universidade Católica – I FIUC, fazendo parte de um pequeno caderno das músicas classificadas, na Gestão Águas de Março. Vivemos as Diretas, Já! Esta cidade sempre acolhedora e efervescente.

Em 1985, estávamos em Brasília ensaiando os primeiros passos de uma Democracia, mas não vimos Tancredo Neves no Poder, voltamos frustrados eu e mais uma centena de colegas da juventude socialista, que, durante dias, no DCE da UFG, nos preparamos para tão magnífico evento: confeccionamos faixas e cartazes. Bons tempos aqueles, apesar da repressão, da covardia e da humilhação.

Não só os ruídos de um belo tempo permanecem, mas a alegria, alguns sinais de uma alegria significativa que ainda resiste a todo o progresso material dos nossos dias. Sempre voltei o meu olhar para estas duas cidades: Miracema e Goiânia, um olhar que perscruta o sentido dos acontecimentos, que, além do barulho ensurdecedor das máquinas, consegue ouvir o longínquo assobiar do vento e o rouco latido do cão abandonado. Um ser que se volta para as marcas do tempo e, com elas, redescobre sua ancestralidade, sonhos e percalços, com elas revive as longas conversas e madrugadas que nunca se repetiam, mas que traziam vontades e transformações.


Imagem retirada da Internet - Viaduto da T-63

Memórias - Por Francisco Perna Filho




Francisco Perna Filho









O POETA E A CIDADE - MEMÓRIAS



(...)


Na década de oitenta, mudei-me para Goiânia. Cheguei lá, em 1981, e fui morar na Rua 03 com Assis Chateaubriand, no Setor Oeste, vizinho da Praça Tamandaré: a explosão jovem daquele tempo. O Setor Oeste era um Bairro Nobre, e continua sendo, mas trazia a doçura de uma cidade pequena, o encanto de suas praças, a tranquilidade de suas ruas, ainda com poucos edifícios. O Fórum e o Palácio da justiça eram apenas armações de concreto, seres do abandono. Bairros como o Jardim América começavam a despontar. Nova Suíça, timidamente se escondia para lá da 85, só depois, com a abertura da T-63, é que ganhou ares de nobreza.

O tempo passou, nasceu o Flamboyant: uma revolução arquitetônica e conceitual. A cidade já não era a mesma, começava tomar feição de uma cidade do mundo. Bem mais tarde vieram os outros shoppings, enquanto isso, os bares fervilhavam de gente: D. Quixote, Beb’s, Jotas, Trem Azul, Flor da Pele, na Assis Chateubriand, com o canto de Gilberto Correia e a voz e o toque preciso dos violões do Valtinho e do João Bolívar. O velho Trem Azul, sem falar na Praça da Cirrose, palco de boêmios e paqueras, com destaque para o Bar do Seu Marconi: o Canindé, com seus vendedores de rosas e amendoins, com as curvas modernas das moças e das cervejas, geladas em pé, nos 16 freezers incansáveis. Andando um pouquinho mais, podia-se ouvir a flauta afinada de Gilson Mundin, e, à noite, já bem mais leve, um encontro marcado no Latidude 2000, embalado pela voz do Pádua.

Aquele foi um tempo maravilhoso. De lá para cá, muita coisa mudou, a cidade tomou um ar de Grande Cidade, foi absorvida pelo progresso, pela cobiça. Perdeu a inocência e deixou-se seduzir pelos que vinham de fora e prometiam transformá-la em um lugar mais aprazível. Prometeram urbanizá-la e, por pouco, não a destruíram.

continua amanhã



Goiânia: vista noturna. Imagem retirada da Internet.

Memórias - Por Francisco Perna Filho




Francisco Perna Filho





O POETA E A CIDADE – MEMÓRIAS


As cidades sempre me fascinaram, desde muito cedo, eu tenho um certo encantamento com relação a elas, não importa o tamanho, a simplicidade, o povo que nelas vive. Sendo cidade, já está no meu gosto, e como gosto de ser urbano, sem desprezar, é claro, a vida tranquila do campo.

A cidade da nossa infância sempre nos marca, positiva ou negativamente, dependendo do que ali foi vivido, conquistado ou perdido, das pessoas com as quais convivemos, como fomos ambientados. A minha cidade foi-me muito significativa: Miracema do Norte, na década de 60, era um lugar de mais ou menos 6.000 habitantes, mas, para mim, era uma metrópole, gigantesca: suas ruas longas, intermináveis, estirões no centro do mundo. Os seus becos, os seus postes de madeira: dois fios esticados e uma lâmpada não muito potente, faziam as noites mais amenas e diluíam o olhar brilhante dos vaga-lumes. A luz era gerada num velho motor a óleo dísel que, por horas a fio, mastigava a escuridão, prolongando o ilusório dia das nossas infâncias.

O tempo passou, acostumei-me com os dias longos e tristes: um dia uma festa, noutro, o sino seco da matriz carpia a ausência de mais um que partia, os martelos cadenciados desenhavam os caixões durante toda noite, já que não tínhamos funerárias. A cidade atravessava as estações, o Rio Tocantins banhava a cidade, muitas vezes exagerava no banho e a cidade, quase submersa, chorava escombros e doenças, até recompor-se e firmar-se com seus ventos gerais, no mês de julho.

E ali eu cresci, corri descalço pela piçarra que cobria as ruas, brinquei com barquinhos de papel na enxurrada, colhi frutos silvestres pelo Correntinho e Bica, andei de bicicleta pelas ruas esburacadas, chupei manga e caju no pé, andei por quintas e nadei muitas vezes nas águas imensas do Tocantins. Descobri o sexo com as meninas no fundo quintal, até ser descoberto e levar uma surra de palmatória, ritos de passagem, como a minha primeira comunhão, tudo por curiosidade para experimentar o sabor de uma hóstia. Sempre a cidade como palco.

Fiz o meu primeiro grau na Escola Paroquial Santa Terezinha, dirigida pelos Padres Redentoristas, que mais tarde passou a se chamar Escola Estadual Santa Terezinha, e o segundo grau no Colégio Tocantins, sob a coordenação das irmãs da Assunção.

Continua amanhã


Imagem: Cidade do interior à noite - óleo sobre tela - by Eduardo Cambuí Junior (pintor baiano, auto-didata)

Manuel Bandeira - Poema







Manuel Bandeira







O ÚLTIMO POEMA




Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.



In.Manuel Bandeira — São Paulo: Cosac Naify, 2006, pág. 35.
Foto by Sinésio Dioliveira - Zínia - Todos os direitos reservados.

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