Pedro Tierra - Poema





Pedro Tierra





Pseudônimo de Hamilton Pereira, nasceu em Porto Nacional (TO), em 1948. Viveu em seminários e prisões. Por sua militância na Ação Libertadora Nacional (ALN), cumpriu cinco anos de prisão (1972/77) em Goiânia Brasília e São Paulo, sofrendo tortura. Libertado, contribuiu para fundar e organizar Sindicatos de Trabalhadores Rurais. É membro da diretoria executiva do PT desde 1987. Foi secretário de Cultura do Distrito Federal. Desde 2003 é presidente da Fundação Perseu Abramo. Militante informal do MST; participou da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Bibliografia:Poemas do Povo da Noite, Menção Honrosa no Prêmio Casa de Las Américas, em 1977(Sigueme, Salamanca, Espanha, EMI, Milão, Itália, e Livramento, S. Paulo); Missa da Terra sem-males, em parceria com Pedro Casaldáliga e Martin Coplas (Livramento, Tempo e Presença, S. Paulo); Missa dos Quilombos, com Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento (disco da EMI); Água de Rebelião (Vozes); Inventar o Fogo(Goiânia); Zeit der Widrikeiten , antologia (Edition DIÁ, Berlin); Dies Irae (Edição do autor, Goiânia, e MLAL, Roma, Itália).





RECONSTRUÇÃO




Ouvir pacientemente
a voz da terra.
Esta voz que ilude o lábio
e escapa,
entre dentes,
sincopada,
da garganta cerrada
do silêncio.

Ouvir a palavra dura,
a dor cuspida
coração afora,
a Esperança sepultada
coração adentro.

Não calar essa voz
essas mãos,
porque então a Terra
falará pela boca dos vulcões.

E não basta ouvir,
é preciso que a mão
golpeie o leme
e corrija o rumo
mar adentro,
terra adentro,
classe adentro,
raça adentro.


Puerto Cabezas, Nicarágua, XI/1981


In. Inventar o fogo. Pedro Tierra. Goiânia, 1985, p.16.
Imagem retirada da Internet Terra unida

Tahar Ben Jelloun - Poema






Tahar Ben Jelloun









Que meu povo me perdoe



Tu que não sabes ler
pega meus poemas
pega meus livros

Faz deles uma fogueira para aquecer tuas solidões
que cada palavra alimente a tua brasa
que cada sopro se perpetue no céu que se abre

Tu que não sabes escrever
que teu corpo e teu sangue me contem a história do país
fala

Seria ilusão do arco-iris
ser apenas de ti
deste corpo mutilado

Eu lerei os livros ao contrário
para ler melhor um prado de flores sobre teu rosto

Eu falarei a língua do campo e da terra
para entrar na multidão que se rebela

Eu desembarcarei nas feridas da tua memória
e habitarei teu corpo que se cala
Nós anunciaremos juntos a primavera às crianças dos
terrenos baldios

Nós anunciaremos o sol moribundo ao astro que se esvazia
Nós anunciaremos o mudar da vida a montanha anônima
que avança

Enquanto eles despacham os assuntos corriqueiros
dançam sobre o dorso uniforme de homens e de mulheres
riem e comem o fígado das mães de luto
Devolveremos o bicho desfigurado aos arquivos dos
ministérios

A história não tem mais intenção de se mover
ela se agarra às fibras da morte
e preside a sessão de abertura no abatedouro da cidade

Nossa história é um território de chagas que uma primavera
de euforia encerra

Lembra-te
íamos pelos campos semear a esperança
Revolvíamos a cidade como a terra grávida

descobríamos árvores selvagens prontas para perfurar o céu
e milhares de ombros voluntários para levar esse país
aos píncaros do sol

acreditávamos na aurora diamantina
a aurora despontava ao chamado das crianças
a rua dançava em nossos braços
esquecíamos que a luz podia gerar alma estranha
embriagávamo-nos ao fogo para melhor abraçar o brilho do céu

Em seguida a cidade e o céu se descompuseram
o sonho partido vertia seu desgosto nas ruelas desertas

O povo amarrou a esperança na espera
prolonga as sextas-feiras
bebe vinho
fuma kif
come vermes da terra
e pega o sol

Os outros
mãos e sexos corrompidos
apostam nossa memória no pôquer

nossa memória envelhece
nossa memória cochila

Povo
minha cabeça está pesada
ela é carniça
ela fede o verbo
ela cai

Eu a entrego à víbora maldita

nossa loucura
nossa cólera
abraçadas à víbora maldita




In. As cicatrizes do Atlas. Poetas do Mundo. Tahar Ben Jelloun. Organização e tradução: Cláudia Falluh Balduino Ferreira. Brasília: Editora UnB, 2003, p.36-43.
Imagem: Fogueira

Antero de Quental - Poema






Antero de Quental













Com os Mortos



Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.


Antero de Quental, in "Sonetos. Porto: Livr. Portuense, 1886, p. 116.
Imagem: Soneto

Francisco Perna Filho - Poema







Francisco Perna Filho







Este poema, da forma como eu o publico agora, é a primeira versão de "Gênesis: uma visão lúdica", que faz parte do meu segundo livro: As Mobílias da Tarde, Goiânia: Perna&Leite, 2006. Esta publicação é dedicada à Dona Adalgisa Nolêto Perna, minha Querida Mãe, pelos 78 anos completados hoje, 01 de novembro de 2009.





GÊNESIS



Era uma vez...
bem depois do verbo
que tudo principiou.
As casas já estavam prontas
e os homens encaracolados
contavam histórias,
faziam filhos até,
por pura inocência,
já que não existia salário-família.

Os filhos cresceram
tecendo histórias
de bichos
de matas
e rios.
Tiveram filhos,
fizeram redes,
trouxeram peixes,
saciaram a fome,
e se tornaram nômades.

Ruas prontas,
casas mal-arrumadas,
meninos vermelhos de barro
aprendiam a assobiar.
Assim os dias passaram,
mulheres pariram,
muita gente partiu,
nasceu aí a saudade.

Muitas luas,
Muitos sóis.
Ruas,
meninos,
destinos.
Olhos projetaram almas,
revelaram cheiros
e se perderam nas lentes de contato.

Uma outra vez,
que não aquela
do começo da história,
chegou Joaquim.
Joaquim no jegue,
trazia frutas no jacá.
Ásperas frutas,
tempos difíceis.
Joaquim olhou o tempo,
sentiu o clima,
amargou o sol.

Após Joaquim,
veio Das Dores,
trazia uma bacia grande
e uma fome descomunal.
As mulheres da cidade
sentiram ódio,
e, pela primeira vez,
jogaram pedras.
Nasceu aí a desconfiança.

Depois das primeiras pedras,
vieram os aviões,
os aeroportos.
E assim, como num átimo,
os pássaros tiveram de dividir o céu,
e o voo capitalizado
fez com que os homens planassem
nas ilusórias pontes espaciais.
Nasceu aí o futuro,
e a mulher plástica
inventou o programa.

Com o programa,
veio o amor virtual,
porquanto os computadores
habitaram os lares insones,
foi quando a camisinha perdeu a originalidade,
nascendo aí a indiferença.

Homens,
carros,
pensamentos.
Tudo revelado
e compactado em chips.
As janelas,
vilarejos,
cederam lugar
a prédios de apartamentos.
Perdeu-se aí a vizinhança.
Dessa forma,
nasceu o verso livre
e o poeta, pela primeira vez, caçou do metro
na sua comunhão com a máquina.

Além do metro,
outras medidas foram impostas,
nasceu assim o contribuinte.
E, por medida de segurança,
a tortura,
a repressão.
E o homem,
Joaquim do Jegue,
lá do começo da história,
foi o primeiro a entrar
na Era Espacial.

O menino toma pé no rio,
toma pé do rio
e sonha.
O menino é João,
que no enjoo do banzeiro
tomba.
O menino bota fé no sonho,
machuca o pé no tombo
e some.

Depois de João,
veio Francisco:
belo nome,
bom rapaz.
Aturdido com o silêncio sono,
sonhou com João
e se afogou.

Muitas luas,
intensas lágrimas,
velas e procissões.
Pedro veio de canoa:
belo canto,
boas remadas.
Engarranchou-se numa raiz de sarã,
virou madeira.

Depois de João,
Francisco
e Pedro,
vieram as virgens,
as beatas,
as prostitutas.
Louvaram o rio,
lavaram roupas,
choraram ausências.



Imagem retirada da Internet: Babel

Carlos Willian Leite - Poema





Carlos Willian Leite



Carlos Willian Leite é natural de Iporá - Goiás, Jornalista, editor do Opção Cultural, de Goiânia - GO. É fundador e Editor da Revista Eletrônica Bula. Escreveu: As Intempéries do Vento, Prêmio Bolsa de Publicação Cora Coralina, do Governo de Goiás, em 1999, e Noves fora: nada, Goiânia Perna&Leite Editores, 2006, do qual faz parte o poema a seguir:



Educação Sentimental
*

Para Tainá Corrêa


pode ser que eu te compre
a 5ª avenida
e todo o açucar
que existe na vida

pode ser que eu te roube
um mar de sucrilhos
e a química perfeita
de todos os brilhos

faiçalville 9 da manhã
o quarto seco o corpo adrede

eu indo rumo ao epicentro
perdido em uma rua do centro
pensava na tua boca
e tinha sede

e quantos deuses invento
no minuto em que conspiro
se quer saber se te respiro
basta olhar-me por dentro

te vejo nuvem
lua-cheia
fantasia
âmbar
nightingale
flor-de-vidro

te vejo única
tpm
meio dia

algo mais:
um catálogo de evidências
pela láctea via

em todos os lugares são 11:59

um relógio cronometra o tempo
algum ponteiro a minha sede move

depois enxergo você atravessando
cidade para encontrar comigo

e se me quer assim meio assim mesmo

na aridez do estio

então venha

seja um peixe

prove as águas do meu rio




*Título tomado de emprestimo a Gustave Flaubert


In.Noves fora: nada. Goiânia: Perna&Leite Editores, 2006, p.101-111.
Imagem: Olho

Carlos Drummond de Andrade - Poema








Carlos Drummond de Andrade










Amor, pois que é palavra essencial



Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa externa região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.



In.O amor natural. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1992. p.5.
Imagem: Cupid and Psyche

Lacordaire Vieira - Conto





Lacordaire Vieira








Lacordaire Vieira é natural de Guapó, Goiás. Nasceu em 1946, foi criado em São Luís de Montes Belos. Mudou para Goiânia em 1965, onde reside até hoje. É Mestre em Letras e Lingüística pela UFG, é professor, literato e lingüista. Com o livro O Corpo, ganhou o Prêmio Bolsa de Publicações Cora Coralina Categoria Geral. Publicou textos também para a imprensa local. É autor das seguintes obras: Detalhes em Preto e Branco (contos, 1995), A Voz dos Vivos (contos, 1997), O conto Sociológico Urbano (ensaio, 1999), Os Níveis de Análise Lingüística (ensaio, 2003), Os Riscos da Língua (ensaio, 2003), O Corpo (contos, 2004).





FORMIGAMENTO





- O próximo - anunciou a recpcionista do Dr. Isaac.

As pessoas se olham sem saber quem é o próximo, mas a dúvida se dissipa em seguida com a chamada pelo nome:

-Miúcha! Quem é Miúcha?
-Sou eu, meu bem!
-Pode entrar!

Miúcha se levanta com o assombro de todos pela beleza global de sua altura e entra pela porta semi-aberta do consultório.
Dr. Isaac, cabeça baixa, examina-lhe a ficha: "Miúcha Miúra, brasileira, goiana, goianiense, 22 anos, Setor Oeste, modelo fotográfico."

- É a primeira vez?
- Como assim?
- O enjôo... quando começou?
- Há um mês mais ou menos...
- Desde que você trabalha na Agência?
- Há uns dois meses...
- Você já tinha sentido essas ânsias de vômitos antes?
- Do jeito de agora, não...
- Como é o seu trabalho?
- Difícil, doutor...muito difícil!
- Quantas horas por dia?
- Umas doze horas. Entro às dez da manhã e às vezes fico até meia-noite, uma hora...
- O que você faz?
- Tudo!
- Tudo como?
- É!...Todo tipo de fotografia...Todo tipo de pose. Nua! ...seminua!... madame... sensual... de todo jeito.
- Você fica tensa?
- Às vezes..
- Sente-se aí! (Indica-lhe uma caminha alta e branca com uma escadinha ao lado)
- Tire a blusa (Apalpa-lhe o pulso, mede a pressão)
- Deita! (Põe luvas brancas, pressiona a barriga e os seios).
- Dói?
- Não!
- E aqui?
- Também não!...
- Pode levantar (Senta-se novamente atrás da mesa com tampão de vidro e continua a consulta).
- Como são suas fezes?
- As minhas fezes?...
- É!... Se são amarelas, escuras? ...
- Amareladas...Acho que são amareladas... Nunca observei bem...
- Suas fezes ficam no fundo ou flutuam no vaso?
- Um pouco em cima... e um pouco embaixo... As primeiras que saem ficam em cima...
- Têm mau cheiro?
- Tem vez que tem... Mas não é sempre não...
- À noite, sente uma coceira no ânus?
- Outro dia, parece que percebi um formigamentozinho...
- Está bem! Faça esses exames, tome o lombrigueiro e volte na próxima semana (Passa-lhe o pedido e a receita, e anuncia para a recepcionista o fim da consulta).
- O próximo!
- O próximo! - repete a secretária abrindo-lhe a porta. (Ainda no ar, um suave sabor de perfume loiro...)



In. Detalhes em |Preto e Branco. Lacordaire Vieira. Goiânia:Editora da UCG, 1995, p.73-75
Imagem: Loira

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