Como eu havia prometido, hoje prosseguiremos falando da poesia de
Raul Bopp. Para homenageá-lo, segue uma nota introdutória ao poema épico
Cobra Norato, de Raul Bopp, escrito por Antônio Houaiss, em 1972, que destaca a maestria de Bopp e a beleza poética desse poema cosmogônico, que, segundo ele, é o verdadeiro poema épico brasileiro. Boa Leitura!
Por Antônio Houaiss
O poema de Cobra Norato - nas suas versões textuais públicas, de 1931, 1947, 1951, 1954, 1956, 1967, 1969 (incluído no livro Putirum) e 1973 (esta) - inicia-se pelos versos
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim
e termina, na versão de 1931, por
- Então adeus Cumpadre
Fico lê esperando
na boca da terra das febres do Sem-fim
enquanto na versão de 1969 (ou antes, não cotejei) termina por:
- Pois então até breve, compadre
fico lê esperando
atrás das serras do Sem-fim
Num caso como no outro está-se no mesmo caso - a geografia de Cobra Norato é das terras do Sem-fim: está-se em face de um espaço ignoto, que inicia ou termina em um sem-fim e termina ou inicia noutro sem-fim, tendo de permeio o sem-fim. Por isso, Cobra Norato e o Compadre, conversando entre si, conversando com entes ou seres ou coisas antropomorfizados, de sua passagem, são dois permanentes viandantes do sem-fim (melhor seria - como topônimo mítico - Sem-Fim), desde que o poema se enceta até que termina, ficando Cobra Norato adentro dessas terras e o Compadre no limiar delas, "na boca de terra das febres do Sem-fim" ou "atrás de serras do "Sem fim" - o que dá no memso, pela imensidão das mesmas.
Mas o Sem-fim tem um nome - que se caracteriza por tudo o que dentro lhe acontece: seu nome é a Amazônia, por suas águas, suas florestas, suas terras caídas, sua fecundidade, sua efervescência de vida, sua pululação de morte.
Essa geografia - que desde meados do século XIX começou a ser matéria da ensaística brasileira e estrangeira, culminada com nomes retumbantes quais os de Euclides da Cunha e Alberto Rangel - só incidentemente vinha sendo objeto da "arte literária" em sentido restrito. Mais ainda, entrando na "literatura", fê-lo pela porta da ficção, tornando-se "poética" através do gaúcho Raul Bopp.
Gaúcho ou menos gaúcho, isso parece incidente irrelevante para o caso: relevante é o fato de que sua era uma alma andarilha, perquiridora das paragens do mundo, viajora e viageira. Sua era, também, essa maneira sintética de ver o mundo, configurando-o verbalmente com umas poucas pinceladas essenciais e dando-o aos nossos olhos ouvidentes. Sua era, ainda, a adesão de vê-lo e dizê-lo fora dos cânones que o grupo de 1922 quisera quebrar então e ainda vigora, paralelo, numa proliferação escritora que está longe de ter sido vencida ou proscrita da república das letras. Sua era, por fim, a compreensão ou intuição ou intelecção ou percepção do que o universo amazônico, de que ele se deixara penetrar, não podia por ele ser verbalizado senão através de uma forma de representação oral - a chamada linguagem poética. Mas cantar a terra, mesmo sendo a do Sem-fim? Sim, se penetrada dos seus mistérios.
Bopp viu-os nos seus mitos, lendas, abusões, crenças - na sua cosmogonia. Iria ele, assim, qual Hesíodo ou Ovídio redivivos, dar a chave de explicação desse universo? Didaticamente?
Transfiguradamente. A fecundidade, para a vida e para a morte, ele viu-a sempre na sua Amazônia. Viu-a por certo, também, como sexo, humano, masculino, feminino. Viu-a provavelmente na sua própria carne - e perpassou a andação pelo Sem-fim à busca de sua Penélope, fiadeira e bordadeira não, mas filha da rainha Luzia.
(...)
Amanhã continuaremos.
In. Cobra Norato e outros poemas. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.