Última Parte
FICÇÃO E REALIDADE A NOÇÃO DE CO-AUTORIA
Imerso nessa nova realidade, o indivíduo está livre para ir e vir, subir e descer, transgredir, quebrar os interditos da vida real, trair ou ser traído, morrer ou matar. Como no filme Sem Vestígios (Untraceable) direção de Gregory Hoblit – EUA, 2008, que traz uma trama que ressalta a guerra pela audiência a qualquer preço. A banalização do humano, que transforma o sofrimento alheio em números de audiência, de ibope. Um mundo que, à medida que se virtualiza, mais real e próximo se torna. Um mundo de imagens cada vez mais apelativas, muitas vezes, a depender do gosto do navegante, beirando a escatologia, o absurdo. A vida que imita a própria vida na sua barbárie imaginativa, daquilo que nos fala Debord (2003):
Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienaçã o recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.(Debord, 2003,p.10)
Esta afirmação do autor ilustra bem a sociedade do espetáculo na qual estamos insertos num mundo sem fronteiras, sem escrúpulos, sem nenhum dono, onde a ética passa distante, em que os métodos para se alcançar a audiência chegam aos mais bizarros, como o foram o caso do jornalista americano Daniel Pearl, correspondente do Wall Street Journal, sequestrado e morto (decapitado) no Paquistão, em 2002. O assassinato foi filmado e divulgado no mundo todo pela mídia tradicional e pela internet. Pearl tinha 38 anos e sua mulher, Mariane, estava grávida de sete meses. Outros exemplos foram os ataques suicidas às torres gêmeas; a guerra entre Iraque e Kuait, transmitidas em tempo real, posteriormente a guerra tecnológica dos Estados Unidos e Iraque, culminando com o enforcamento de Saddam Hussein, que também foi mostrada nas duas mídias: tradicional e Internet, e tantas outras barbáries, que se nos revelam em tempo real, e que, de certa maneira, nos fazem partícipes desse perigoso jogo interativo para lá de real, como no filme Sem Vestígios.
Evocar o filme Sem Vestígios é um caminho para discutirmos e buscarmos uma compreensão desses novos tempos, dessa tecnologia – Internet – que a muitos conecta e que a muitos insere. Pois ele nos mostra, a despeito de qualquer falha de roteiro ou julgamento estético, a capacidade humana de não mais se indignar com a violência crescente e globalizada, quando, por meio da rede de computadores, da blogosfera, produzem, em tempo real, o sofrimento dos seus pares, a espetacularização de crimes. Para implementarmos esta discussão, atentemos mais uma vez ao que diz Debord (2003):
A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhes apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte.(Debord,2003,p.19.)
A trama do filme nos mostra uma divisão do FBI dedicada à investigação e condenação de criminosos que atuam através da internet, tendo à frente da divisão do cibercrime, a Agente Especial Jennifer Marsh (Diane Lane) e Griffin Dowd (Colin Hanks). Após investigarem e prenderem inúmeros criminosos virtuais (reais), os agentes se deparam com algo até então inédito: assassinatos transmitidos ao vivo, da forma mais bizarra possível, com a participação massiva dos webtelespectadores, que, pelo número de acessos, determinam a velocidade com que a vítima deve morrer.
O site denominado MATECOMIGO.COM, no primeiro momento lança convites on-line para que os internautas participem do jogo macabro, ou que se tornaria macabro, com a seguinte frase “UMA GATA NUMA RATOEIRA, NÃO É IRÔNICO ?”, e, posteriormente a gata é morta. Os agentes fazem de tudo para rastrear o IP do computador do criminoso, mas não conseguem, o site está hospedado num domínio russo.
Depois de ter matado a gata, um homem é capturado e morto ao vivo, com requintes de crueldades. A vítima foi amordaçada, amarrada pelos punhos e pelas canelas, em pé, com os braços voltados para o alto. No seu peito fora gravado, com alguma coisa cortante, o nome do site MATECOMIGO.COM, à esquerda do vídeo aparecia um contador de acessos e um calibrador químico. Uma caixa que regulava a injeção de fluidos da vítima, os cabos ligados ao computador, e umas bolsas contendo anticoagulante. A droga chama-se Heparina, a dose certa, salva; a errada deixa a vítima hemofílica. Quanto mais acessos, mais dose é injetada e mais rápido ele sangra. Os acessos são muitos e a dose injetada foi de 3.80 cc, o homem morre. A vítima chama-se Hebert Miller, 54, de Sellwood, piloto de avião, trabalhava para Burnside Charter.
O telespectador, webespectador, da sua condição supostamente passiva, passa a interagir com o assassino, por meio dos seus acessos, e passa a ser ativo, tornando-se co-autor dessa narrativa bárbara. Quando falamos em ser passivo, apesar da participação como agente de uma escolha desse mundo fragmentado: Internet, já que os programas e sites são eletivos, é interessante atentar para o conceito de autonomia em Adorno(1995):
O que a psicologia profunda denomina superego, a consciência moral, é substituída no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém, justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação (Adorno,1995,p.124-125).
O pensamento de Adorno (1995) nos remete a vários questionamentos e apresenta-se fundamental neste estudo, pois o conceito de autonomia nos leva a refletir sobre qual é o papel do indivíduo que atua livremente na internet e que percorre várias possibilidades de caminhos, valendo-se de interesses e busca por oportunidades diversas. Uma vez que a nossa discussão busca uma reflexão sobre a cultura fragmentada em oposição à massificação, à cultura de massa, à indústria cultural, estamos diante de uma realidade interessante, principalmente quando discutimos o papel do indivíduo a percorrer livremente as infovias, esse oceano de possibilidades de des/aprendizado, quando o universal se nos apresenta, e a noção de espaço e tempo são subvertidos. Quem acessa um site, o acessa por livre e espontânea vontade, a despeito de qualque link ou hipertexto que o atraia.
No caso do filme, em particular, quando os webespectador se conecta ao cibercriminoso (que também é um criminoso real, já que os crimes são reais e são praticados num espaço físico, que, apesar de “distante”, tornam-se próximos do webespectador), em vez de refletir sobre as consequências do seu clique, apenas tem a ilusão da interatividade “ativa”, porquanto a sua participação é conduzida pelo algoz, sem que tenha capacidade de refletir sobre sua (ir)responsabilidade perante o fato. Desconhece qualquer autonomia, no conceito adorniano, de auto-reflexão, de auto-determinação ou mesmo de não-participação.
Como estamos falando agora de ficção, numa perspectiva de que o sujeito é “destituído” de autonomia nas suas escolhas, revelando-se, apesar da identidade que jura trazer consigo, um sujeito inconsequente ao interagir com seus pares num espaço de dimensões imensuráveis como o é a Internet, conforme mostra o filme Sem Vestígios, principalmente por esse espaço não se configurar mais como pertencente a uma nação específica, cidade ou lugar, cabe evocar aqui o pensamento de Hall (2005), numa compreensão de que a Internet acelerou e nos trouxe o verdadeiro sentido da globalização :
(...)Que impacto tem a última fase da globalização sobre as identidades nacionais? Uma de suas características principais é a “compressão espaço-tempo”, a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância. Stuart (2005, p.69-70).
Como nos fala Stuart (2005), o espetáculo se caracteriza pela instantaneidade do acontecimento, quando os espaços são suprimidos e não mais são empecilhos para que um extremo se aproxime do outro, para que as partes se encontrem, para que os fragmentos se unam, na ilusão de uma identificação coletiva, quando na verdade o ponto de aproximação é apenas o espetáculo, como podemos constatar no filme Sem Verstígios, quando o assassino, usando de recursos extremamente sofisticados, um site com streaming de origem fantasma e irrastreável, convida o mundo para ajudá-lo a matar quem ele quiser e ninguém pode fazer nada para impedi-lo. O que se tem são pessoas que, atendendo ao apelo do criminoso, por curiosidade ou por deleite, atendem ao chamado e tornam-se co-partícipes daquele espetáculo macabro, ou seja, submetem-se ao jogo sem se dar conta da gravidade do ato praticado, como podemos ler em Debord (2003):
O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.(Debord, 2003, p. 12-13)
No filme, muitas outras pessoas são assassinadas, seguindo a mesma dinâmica do jogo, ninguém resiste aos apelos do algoz e assiste impavidamente o dilaceramento de uma sociedade extremamente fragmentada a ruir mais ainda, sem ter como recompor-se dessas tragédias diárias, mostradas ao vivo e em cores para todo mundo.
Uma passagem do filme muito interessante, para não dizer macabra, é quando ao investigar o passado do assassino, a agente do FBI descobre que o pai dele se suicidara com um tiro, em cima da ponte principal da cidade, despencando lá de cima, batendo a cabeça na marquise do restaurante que ficava logo abaixo, despedaçando o cérebro, o qual foi encaminhado para o legista, enquanto que os óculos do suicida ficaram intactos e foram achados por um funcionário do restaurante, que os colocara à venda on-line, que, para a surpresa de todos, fora vendido em tempo recorde. Acrescente-se a isso o fato de que a televisão, cujo repórter cobriu essa tragédia (o suicídio), e que também fora vítima dele (o terceiro a ser assassinado com transmissão ao vivo pela Internet) - na época transmitiu a cena do suicídio em tempo real e, depois, reprisou-a várias vezes para compensar a perda de audiência que vinha sofrendo.
A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. (Debord,2003, p.18. )
O pensamento de Debord (2003) mais uma vez nos ajuda a pensar estes novos tempos, tempos de fragmentação, tanto da cultura como do ser humano, quando as pessoas imersas nos seus desejos, nos seus dramas, segmentadas nos seus gostos, caminham em várias direções, às vezes conduzidas por forças que desconhecem, são colocadas nos mesmos espaços, sejam eles reais ou virtuais, não porque têm os mesmos gostos, mas pelo fato de alimentarem no espetáculo que presenciam a ilusão da potência que lhes falta, configuram-se como parte de um todo que não existe, são apenas seres fragmentados que marcham em busca de uma identidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os tempos são outros, todos nós o sabemos, mas com eles caminhamos, somos conduzidos, esperneamos, resistimos, nos indignamos, mas não tem jeito, o futuro está aqui, diante dos nos olhos, na ponta dos nossos dedos, nas nossas digitais, na nossa Iris, sentimos os seus efeitos, também somos futuro.
Vivemos a era digital, as tecnologias pululam, dão as cartas, os homens a elas se unem, fazem delas a extensão dos seus corpos, como disse Marshall McLuhan, ficam fascinados com tamanha transformação e facilidades, mas também se inquietam com os abusos, pirataria, roubos e crimes de toda ordem, como já previra em 1995 Nicholas Negroponte:
Na próximas década, veremos casos de abuso de propriedade intelectual e de invasão de nossa privacidade. Enfrentaremos o vandalismo digital, a pirataria de software e o roubo de dados. E, pior do que isso: testemunharemos a perda de muitos empregos para sistemas totalmente automatizados, que em breve vão mudar o local de trabalho dos colarinhos-brancos na mesma medida em que transformaram a paisagem nas fábricas. A noção do emprego vitalício numa única empresa já começou a desaparecer (Negroponte, 2003, p.215).
Negromonte estava certo, assim como no filme Sem Vestígios em que bandidos invadem páginas e computadores alheios e conseguem acionar dispositivos que matam. Na vida real, é cada vez mais ousada a atitude dos hackers, como os que agora invadiram site do Pentágono e roubaram projeto do avião F-35 Lightning II, avaliado em US$ 300 bi, segundo o Wall Street Journal, Ex-oficiais do governo americano disseram que os ataques partiram da China, mas que não poderiam precisar a identidade dos hackers. Com tudo isso, estamos vivendo uma época em que a ficção se repete no nosso cotidiano, em que virtual e real se fundem, se completam, como acreditou e acredita Nicholas Negroponte:“A vida digital é outra coisa. Não estamos esperando por uma qualquer invenção. Ela está aí. Agora. E quase genética em sua natureza, pois cada geração vai se tornar mais digital do que a anterior.” E assim como ele, também acredito nestes novos tempos, comungo desta nova era, mas sempre atento para não sucumbir nas armadilhas dessas largas bandas da digitalidade.
BIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ANDERSON, Cris. A Cauda Longa. Do mercado de massa para o mercado de nicho.Tradução: Afonso Celso da Cunha Serra. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 2006.
DEBORD,Guy. A Sociedade Espetáculo.http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html. 2003
DINES, Alberto. Daily Me versus Daily We.Sitio:http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=530IMQ001. Acessado em:24/3/2009, às 10h23.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 10ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
NEGROPONTE, Nicholas. A vida Digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PALACIOS, Marcos. Medindo qualidade em jornais online: novos parâmetros e novos desafios. II Simpósio da ABCiber (Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. Sitio: http://cencib.org/simposioabciber/conferencias.htm. acessado em: 24/03/2009, às 10h34
Imagem: Celito Medeiros http://www.mensageirosdoamorbrasil.com.br/cirandas/teusolhos/OlhosAzeviche.jpg