Raul de Leôni - Poema



Ciganos



Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.


Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.


Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...


Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...


Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.


Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.


Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.


E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.


Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.


Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.


E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.



Fonte: Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: ciganos

Mécia Rodrigues - Ensaio Poético



La Bohème





para Egle Gruppi Turini, minha avó



Alguma coisa lírica soou na minha memória, quando entrei na Barão de Itapetininga, em meio à profusão dos pisca-piscas, à polifonia própria de dezembro e à infinita variedade de quinquilharias pelas vitrinas úmidas e garoentas. As palmeiras do Vale, a enorme árvore de natal ali montada, o Theatro Municipal.
2
Sabonetes em formato de noz. Da Kanitz. Havia as caixas grandes, com três, e a pequenas, com um. As caixas verde-claro, enfeitadas com papel transparente picado. No meio dele se acomodavam as nozes-sabonetes. E também havia as caixas de talco, de madrepérola, com esponjas tão leves que pareciam flutuar. E os chocolates da Kopenhagen.
3
O circo de Moscou, os doces sírios da ladeira Porto Geral, Os três mosqueteiros, O cavaleiro da máscara de ferro, Miguel Strogoff. As fotonovelas dos dias chuvosos, quando a máquina de costura deixava de ser pedalada. A caneta preta, de pena de irídio, do meu avô.
4
Subi até a Sete de Abril e entrei na galeria onde comprávamos, eu e minha mãe, os presentes de natal para minha avó. E, talvez, para reencontrar a ambas, eu procurava o sabonete da Kanitz.
5
A garoa se transformou numa chuva forte, que me obrigou a ficar parada na porta da galeria, na saída da praça Dom José Gaspar. Um punhal pintado na perna direita da minha calça jeans e uma rosa entrelaçada nele. Com essa displicência atravessei natais e invernos rigorosos, mp3 e gramophones, perfumes de pinheiro e todas as tempestades possíveis.
6
A chuva parou. As pessoas que, como eu, estavam por ali, esperando que ela passasse, começaram a se dispersar. E naquela pequena multidão eu via o vulto da minha avó e da minha mãe passando com caixas e caixas de sabonete e chocolates. E as notas claras de uma ária:
7
Al buio non se trova
Ma per fortuna è una notte di luna...
8
— Ah, como eu queria um Nintendo com dois controles e quatro cartuchos, suspirou a voz, ao meu lado, olhando para a vitrina. E depois, para mim. Era uma menina suja e mal vestida, de uns dez anos, cujo rosto brilhava com uma graça irresistível. — Você não queria um Nintendo daqueles? Ela perguntou bem alto. Dei um sorriso forçado. Eu estava atravessando a praça e havia parado um minuto em frente à uma loja de brinquedos, mais para olhar o movimento dos estudantes, costureiras, pequenas vendedoras de fósforos, gatunos, camelôs indo embora, vagabundos, homens de terno e gravata, mulheres cheias de charme.
9
— Você não me respondeu...e a menina cutucou minha perna com o dedo.
— O que eu não respondi?
— Sobre o Nintendo...

10
So bien...le angoscie tue,
Non le vuoi dir
Non le vuoi dir
11
Os corrimãos de ferro e as escadas de mármore da Estação da Luz, a litorina das 21h, um cravo vermelho em um vaso de vidro e a toalha branca de linho do vagão-restaurante. E uma hora depois, a casa da minha avó.
12
— Olha aqui, chatinha, eu disse para a garota suja, o que eu tenho de dinheiro dá pra comprar uma vela bem bonita, milk-shake e batatas fritas do McDonald’s, serve? — Para que a vela? ela perguntou. Fingi que não ouvi.
13
— Os dois de chocolate, falei para a moça do caixa. Peguei o troco e disse à garota: — Vamos sentar nas escadas do Municipal, acender a vela e falar mal dos natais, das pessoas, das injustiças, da falta de dinheiro. — Estão molhadas, disse a menina. — Com esse calor, já secaram.
14
A neve caindo devagar sobre os telhados, um quadro a óleo, a casa de penhores, as cinzas da lareira apagada. Sobe o pano no Teatro Régio de Turim, 1896. Libreto por Giusepi Giacasa e Luigi Flicca, baseado em Scènes de la Vie de Bohème, de Henri Murger.
15
Mal nos sentamos em um dos degraus, vinha vindo um homem cheio de pacotes, que pelo volume, supus serem os caros panetones da Dulca. Levantei e fui até onde ele estava: — Boa-noite, cavalheiro, preciso acender esta vela, o senhor teria um isqueiro para me emprestar? Ele se atrapalhou um pouco, pediu para eu segurar os pacotes — os panetones? — enquanto acendia um zippo. Que mais parecia um lança-chamas.
16
Pisquei para a menina, sentada na escada, segurando os mil-shakes e as batatas. Que, por sua vez, também piscou para mim. O homem me olhou, segurando o zippo aceso: — Você...e pigarreou. Encostei o pavio da vela na chama e sorri: — Eu?
17
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo.
In povertá mia lieta
Scialo da gran signore
Rime ad inni d’ amore.
18
Acendi a vela vermelha, enfeitada com frisos dourados, e o nome da minha avó, escrito nela, brilhou mais do que todas as luzes do centro da cidade.





 In. Jornaleco

Nelson Ascher - Poema


Hölderlin


para Antonio Medina Rodrigues



Luz não se vê tão límpida
quanto, inundando a casa,
aquela que extravasa
fugaz de qualquer lâmpada
que, de repente, exalte-
-se e atinja, por um átimo,
à beira do blecaute
mais último, seu ótimo.
Cega ao fulgor, a orelha
talvez capte de esguelha
um ultra-som que, esgar-
çador como um lamento,
provém do filamento
no afã de se queimar.
 



Imagem retirada da Internet: filamento
In. Jornal de Poesia

Mário Quintana - Poema




O mapa



Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...


(E nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...


Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moca bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)


Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso


Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso...









Imagem retirada da Internet: Porto Alegre

Salgado Maranhão - Poema





DESLIMETES 10
(táxi blues)



eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
         — eu sou a luta.
O que há sido entregue aos urubus,
e de blues
         em
         blues
endominga as quartas-feiras
         — eu sou a luz
sob a sujeira.
(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)
eu sou ferro, eu sou a forra.
E fogo milenar desta caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco às estrelas.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
leito de terra negra
sob a água branca,
seu a lança
a arca do destino sobre os búzios.
e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
eu sou a luz em seu rito de sombras
— esse intocável brilho

Imagem retirada da Internet: blues

Carlos Drummond de Andrade - Poema



Canção da Moça-Fantasma
de Belo Horizonte



Eu sou a Moça-Fantasma
que espera na Rua do Chumbo
o carro da madrugada.
Eu sou branca e longa e fria,
a minha carne é um suspiro
na madrugada da serra.
Eu sou a Moça-Fantasma.
O meu nome era Maria,
Maria-Que-Morreu-Antes.


Sou a vossa namorada
que morreu de apendicite,
no desastre de automóvel
ou suicidou-se na praia
e seus cabelos ficaram
longos na vossa lembrança.
Eu nunca fui deste mundo:
Se beijava, minha boca
dizia de outros planetas
em que os amantes se queimam
num fogo casto e se tornam
estrelas, sem irônia.



Morri sem ter tido tempo
de ser vossa, como as outras.
Não me conformo com isso,
e quando as polícias dormem
em mim e foi-a de mim,
meu espectro itinerante
desce a Serra do Curral,
vai olhando as casas novas,
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa),
pára no Abrigo Ceará,
nao há abrigo. Um perfume
que não conheço me invade:
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado
nos braços das espanholas.
– Oh! deixai-me dormir convosco.


E vai, como não encontro
nenhum dos meus namorados,
que as francesas conquistaram,
e cine beberam todo o uísque
existente no Brasil
(agora dormem embriagados),
espreito os Carros que passam
com choferes que não suspeitam
de minha brancura e fogem.
Os tímidos guardas-civis,
coitados! um quis me prender.
Abri-lhe os braços... Incrédulo,
me apalpou. Não tinha carne
e por cima do vestido
e por baixo do vestido
era a mesma ausência branca,
um só desespero branco...
Podeis ver: o que era corpo
foi comido pelo gato.


As moças que’ ainda estão vivas
(hão de morrer, ficai certos)
têm medo que eu apareça
e lhes puxe a perna... Engano.
Eu fui moça, Serei moça
deserta, per omnia saecula.
Não quero saber de moças.
Mas os moços me perturbam.
Não sei como libertar-me.


Se o fantasma não sofresse,
se eles ainda me gostassem
e o espiritismo consentisse,
mas eu sei que é proibido
vós sois carne, eu sou vapor.
Um vapor que se dissolve
quando o sol rompe na Serra.


Agora estou consolada,
disse tu do que queria,
subirei àquela nuvem,
serei lâmina gelada,
cintilarei sobre os homens.
Meu reflexo na piscina
da Avenida Paraúna
(estrelas não se compreendem),
ninguém o compreenderá.



In.Sentimento do mundo.2ª ed. Rio de Janeiro: Record,2002,p.23-26.
Imagem retirada da Internet: moça-fantasma

Carlos Drummond de Andrade - Poema

Manuel Bandeira ao violão (Foto do arquivo da revista Manchete, Rio de Janeiro)
ODE NO CINQUENTENÁRIO DO POETA BRASILEIRO





Esse incessante morrer
que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que te esvais.

Debruço-me em teus poemas
e nelo percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo
amoroso e patético.

Tua violenta ternura,
tua infinita polícia,
tua trágica existência
no entanto sem nenhum sulco
exterior – salvo tuas rugas,
tua gravidade simples,
a acidez e o carinho simples
que desbordam em teus retratos,
que capturo em teus poemas,
são razões por que te amamos
e por que nos fazes sofrer…

Certamente não sabias
que nos fazes sofrer.

É didícil explicar
esse sofrimento seco,
sem qualquer lágrima de amor,
sentiment de homens juntos,
que se comunicam sem gesto
e sem palavras se invadem,
se aproximam, se compreendem
e se calam sem orgulho.

Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa,
anunciando que a tua vida passou à toa, à toa.
Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,
diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado.
Não são os carvoeirinhos raquíticos voltando encarapitados nos burros velhos.
Não são os mortos do recife dormindo profundamente na noite.
Nem é tua vida, nem a vida do major veterano da guerra do Paraguai,
a de Bentinho Jararaca
ou a de Christina Georgina Rossetti:
és tu mesmo, é tua poesia,
tua pungengente, inefável poesia,
ferindo as almas, fogo celeste, ao visitá-las;
é o fenômeno poético, de que te constituíste o misterioso portador
e que vem trazer-nos na aurora o sopro quente dos mundos, das armadas exuberantes
e das situaçãoes exemplares que não suspeitávamos.

Por isso sofremos: pela mensagem que nos confias
entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil queixas operárias;

essa insistente mas discreta mensagem
que, aos cinquenta anos, poeta, nos trazes;
e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces
sem uma queixa, no rosto entretanto experiente,
mão firme estendida para o aperto fraterno
- o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens -,
o poeta ainda capaz de amar Esmeraldas embora a alma anoiteça,
o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte
- mas haverá lugar para a poesia?

Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,
o poeta Maiakovski suicidou-se,
o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal…
Em meio a palavras melancólicas,
ouve-se o surdo rumor de combates longínquos
(cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós).
E enquanto homens suspiram, combatem ou simplesmente ganham dinheiro,
ninguém perecebe que o poeta faz cinquenta anos,
que o poeta permanece o mesmo, embora alguma coisa de extraordinário se houvesse passado,
alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos traíram nem as mãos apalparam, susto, emoção, enternecimento,
desejo de dizer: Emanuel, disfarçado na meiguice elática doa abraços,e uma confiança maior no poeta
e um pedido lancinante para que não nos deixe sozinhos nesta cidade em que nos sentimos pequenos à espera dos maiores acontecimentos.

Que o poeta nos encaminhe e nos proteja
e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos e esperança de todos,
os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos disfarces do homem.
Que o poeta Manuel Bandeira escute este apelo de um homem humilde.


In.Sentimento do mundo. 2ªed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.53-56

Imagem retirada da Internet: Manuel Bandeira

Murilo Mendes - Poema



Murilograma para Mallarmé 




No oblíquo exílio que te aplaca
Manténs o báculo da palavra


Signo especioso do Livro
Inabolível teu & da tribo


A qual designas, idêntica
Vitoriosamente à semântica


Os dados lançando súbito
Já tu indígete em decúbito


Na incólume glória te assume
MALLARMÉ sibilino nome



In. Convergência. São Paulo:Duas Cidades, 1970.
Omagem retirada da Internet: Mallarmé

Rubem Braga - Poema


POETA CRISTÃO



A poesia anda mofina, 
Mofina, mas não morreu. 
Foi o anjo que morreu: 
Anjo não se usa mais. 
Ainda se usa estrela 
Se usa estrela demais.

Poeta religioso 
Mocinha não pode ler: 
Pecará em pensamento, 
Que o poeta gosta do Novo, 
Mas pilha seus amoricos 
É no Velho Testamento.

Ai, o Velho Testamento! 
Eu também faço poema, 
Ora essa, quem não faz: 
Boto uma estrela na frente 
E um pouco de mar atrás.

Boto Jesus de permeio 
Que Deus, nos pratos de amor, 
É um excelente recheio. 
E isso bem posto e disposto 
Me vou aos peitos da Amada: 
Sulamita, Sulamita, 
Por ti eu me rompo todo, 
Sou cavalheiro cristão. 
Minh’alma está garantida 
Num rodapé do Tristão 
E o corpo? O corpo é miséria, 
Peguei doença, mas Jorge 
de Lima dá injeção!

O badalo está chamando, 
Bão-ba-la-lão.

Amada, não vai lá não! 
Eu também tenho badalos – 
Bão-ba-la-lão 
Eu sou poeta cristão! 


(Rio, maio, 1940) 

Imagem retirada da Internet: Rubem Braga

Ivan Serguêievitch Turguêniev - Conto


Fichier:Turgenev by Repin.jpg

O ENCONTRO








Um dia de outono, em meados de setembro, eu repousava num bosque de bétulas. O tempo estava in­certo: desde manhã, uma chuva fina alternava com um sol quente. O céu coberto de ligeiras nuvens brancas, clareava por momentos, e deixava entrever uma nesga de azul acariciador como um belo olhar. Imóvel, eu era todo olhos e ouvidos. Por cima de mim as folhas mal se agitavam, e esse pequeno ruído bastaria para precisar a estação. Não era, com efeito, nem a palpitação álacre e risonha da primavera, nem o doce e longo murmúrio do verão, nem o balbucio tímido e frio do outono, mas uma espécie de gorjeio em surdina. Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo momento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia. Por vezes, ela se iluminava, e tudo então parecia de súbito sorrir: os troncos das bétulas esparsas ganhavam reflexos de cetim branco; as folhas caídas rebrilhavam como ouro rutilante; os altos penachos dos fetos, já cobertos dessa tinta cor de uva madura, que eles adquirem no outono, ofereciam aos olhos, por toda parte, a confusão transparente dos seus ramos entrela­çados. Depois, tudo se escurecia de novo, as cores vivas se amorteciam; as bétulas se tornavam de um branco pálido, desse branco de neve caída há pouco, que os mornos raios do sol de inverno ainda não tocaram; e sorrateira, furtiva, uma pequena chuva chilreante caía sobre o bosque. A folhagem ainda verde começava entretanto a amarelecer; aqui e ali uma folha nova já havia adquirido tons vermelhos ou acobreados; era pre­ciso vê-la flamejar, quando um raio de sol atravessava, matizando-a, a rede cerrada da ramagem lavada pelas gotas cintilantes. Nenhum pássaro se fazia ouvir: todos estavam abrigados e silenciosos; somente o abelharuco lançava com intermitência o seu grito argentino e zombeteiro.

Antes de me deter nesse bosque de bétulas, eu tinha atravessado, em companhia do meu cão, uma mata de faias. Confesso não gostar muito dessa árvore, do seu tronco lilás claro e da sua folhagem verde-acinzentada, de aspecto metálico, que se eleva o mais alto possível e se abre nos ares como um leque palpitante; não posso suportar o contínuo balanço dessas feias folhas redondas, desajeitadamente presas aos seus caules intermináveis.. Ela só é bonita em certas tardes de verão, quando, ele-vando-se solitária por cima dos arbustos, se oferece aos raios abrasados do crepúsculo: brilha, então, e rumoreja sob a púrpura dourada que a inunda totalmente, das frondes às raízes. É bonita, também, quando, por um dia de vento sem nuvens, freme e sussurra sobre o fundo azul do céu, cada uma de suas folhas, arrebatadas por esse movimento, parecendo querer arrancar-se, levantar vôo e perder-se ao longe. Mas, em suma, não gosto dessa árvore: razão pela qual, deixando a sua sombra, tinha escolhido para descansar esse pequeno bosque de bétulas, e tinha-me instalado sob uma delas, cujos ramos muito baixos me podiam abrigar da chuva. Enquanto contem­plava o espetáculo que se oferecia ao meu olhar, o sono me envolveu, um sono doce e profundo, que só os caça­dores conhecem.

Não sei quanto tempo durou o meu sono; mas quando abri os olhos, todo o bosque estava inundado de sol; por toda parte, através das folhas palpitantes, o azul resplandecia; uma borrasca tinha afugentado as nuvens; o tempo ficara outra vez sereno; o ar apresentava essa frescura seca e singular que enche o coração de um sentimento de bem-estar e anuncia quase sempre uma bela noite depois de um dia chuvoso.

Ia-me levantar para tentar a sorte mais uma vez, quando "os meus olhos se detiveram sobre uma forma humana imóvel. Era uma jovem camponesa. Sentada a vinte passos de mim, a cabeça pensativamente inclinada, os braços estendidos sobre os joelhos, tinha, numa das mãos semifechadas, um grande ramalhete de flores cam-pestres; cada vez que ela respirava, o ramalhete se elevava docemente sobre o seu colo. Uma blusa muito branca, fechada no pescoço e nos punhos, caía em pregas curtas e suaves sobre o seu talhe. Uma dupla fileira de pérolas amarelas ornavam o seu busto. Era bonita. Os espessos cabelos louros, de um belo matiz cinzento, se separavam em duas grossas trancas, sob um estreito f ichu vermelho, que emoldurava uma fronte de marfim; o queimado dourado, característico das peles delicadas, se destacava no resto do rosto. Eu não conseguia ver-lhe os olhos, que ela conservava baixos, mas distinguia as sobrancelhas delicadas e finas, os longos cílios úmidos; o traço de uma lágrima brilhava ao sol sobre uma das faces e descia até os lábios pálidos. O nariz, um pouco forte, não enfeava o conjunto de seus traços, que eram muito agradáveis: a sua expressão sobretudo me atraía, de tal modo ela revelava doçura, simplicidade, tristeza ingênua, a tristeza de uma criança esmagada por um sofrimento que não chega a compreender. Visivelmente esperava alguém. Um ramo seco estalou no bosque. Ela levantou imediatamente a cabeça e olhou em redor: na sombra transparente, vi brilharem um instante os seus olhos de corça, puros e medrosos. Um longo momento, sem perder de vista o lugar de onde viera o ruído ela escutou: em seguida, voltou a cabeça suspirando, inclinou-se ainda mais e pôs-se lentamente a escolher as suas flores. Os olhos ficaram vermelhos, os lábios tremeram de cortar o coração, uma nova lágrima nasceu sob os grandes cílios, deixando na face um rastro brilhante. Longos minutos transcorreram; a pobre criança não se mexia: por vezes, agitava ansiosamente as mãos, escutava, escutava sempre. Algo mexeu de novo no bosque: ela estremeceu. O ruído se acentuou, se fez ouvir bem próximo, enfim se percebeu claramente um passo curto e decidido. Ela se soergueu, parecendo intimidada; o seu olhar atento se iluminou de esperança. Saída do mato, uma figura de homem apareceu. Os olhos dela se tornaram fixos, o rosto enrubesceu, um sorriso de satisfação lhe desabrochou nos lábios; quis levantar-se, mas tornou a cair, empalideceu, perdeu o jeito. Foi só quando ele chegou ao seu lado que ela pôde levantar um olhar temeroso e quase suplicante.

Do meu esconderijo, eu examinava o personagem com curiosidade: para dizer a verdade, ele me causou boa impressão. Devia ser o criado de quarto favorito de um jovem rico. A sua maneira de vestir revelava pretensões a bom gosto, a uma elegante displicência; trazia, abotoado até o pescoço, um paletó curto, cor de bronze, sem dúvida herança do patrão, uma pequena gravata rosa de pontas lilases, e um boné de veludo negro com galão de ouro, enterrado até os olhos. Impla­cável, o colarinho da camisa branca subia até as orelhas, ocultando-lhe as faces; os punhos engomados cobriam-lhe as mãos até os dedos, dedos vermelhos e disformes, ornados de anéis de ouro e prata, guarnecidos de miosótis em turquesas. A sua figura vermelha, sadia, insolente, era dessas que, segundo as minhas observações, exaspe­ram quase sempre os homens e — ai de nós! — agradam freqüentemente as mulheres. Ele se esforçava por dar aos seus traços vulgares uma expressão de desprezo e de tédio: franzia continuadamente os olhos cinzento-pálidos, já quase imperceptíveis, fazia caretas, abaixava os cantos da boca, fingia bocejar e, com uma falsa desenvoltura, retificava as ondas avermelhadas dos seus "caça-noivas" ou então torcia os raros fios louros que se eriçavam por cima de seus lábios carnudos: em resumo, "posava" odiosamente. Os seus manejos começaram desde que percebeu a jovem camponesa: aproximando-se dela, num andar descuidado, permaneceu de pé um momento, levan­tou os ombros, meteu as mãos nos bolsos do paletó e, depois de lhe ter lançado um olhar negligente, sentou-se no chão.

— Há muito tempo que estás aí? — perguntou-lhe com os olhos distraídos e distantes, bocejando e balan­çando uma das pernas.

A moça não encontrou logo forças para lhe res­ponder.

—     Sim, há muito tempo — murmurou enfim, com uma voz indistinta.

—     Qual! (Tirou o boné, passou majestosamente a mão pela espessa cabeleira frisada a ferro, e que começava baixo na testa, lançou em torno um olhar cheio de dignidade e em seguida tornou a pôr o boné na sua preciosa cabeça.) Eu tinha-me esquecido com­pletamente. E depois, chove, além do mais. (Bocejou outra vez). Estou sobrecarregado de serviço, não consi­go fazer tudo… E o patrão ainda se zanga! Nós partimos amanhã…

—     Amanhã? — articulou a pobre moça com um olhar cheio de terror.

—     Sim amanhã… Vamos, vamos, eu te peço — acrescentou êle num tom aborrecido, vendo-a estreme­cer e abaixar a cabeça — eu te peço, Akulina, não chores, tu bem sabes que eu detesto isso. (Franziu o nariz chato). Senão vou-me embora imediatamente. Que bobagem, choramingar!

—     Não, não, eu não estou chorando — disse ela bem depressa, esforçando-se por engolir as lágrimas. — Então é amanhã que o senhor parte — recomeçou, depois de um momento de silêncio. — Só Deus sabe quando nos reveremos, Vítor Alexandrytch!

—     Reveremos, reveremos! Se não for no ano que vem, será mais tarde. Eu acho que o patrão tem a intenção de trabalhar em Petersburgo — acrescentou ele num tom negligente e algo fanhoso; a não ser que parta­mos para o estrangeiro.

—     O senhor me esquecerá, Vítor Alexandrytch — suspirou tristemente Akulina.

—     Mas não, por que haveria de esquecer? Eu não te esquecerei. Apenas, não sejas tola, obedece a teu pai.. . É claro que não te esquecerei.

Ele se estendeu e bocejou de novo.

—     Não se esqueça de mim, Vítor Alexandrytch — tornou ela com voz suplicante. — Eu o amei com todas as minhas forças, pelo senhor eu fiz tudo… Diz que obedeça a meu pai, mas como é que o senhor quer que eu faça isso?…

—     Como? — disse ele com voz cavernosa, estendido de costas, as mãos passadas sob a cabeça.

—     Mas seja sensato, Vítor Alexandrytch, o senhor bem sabe…

Ela se calou.

Vítor brincava com a corrente de aço do relógio.

— Tu não és tola, Akulina — disse ele enfim. Não digas bobagens, portanto. Eu quero o teu bem, compreendes? Sim, tu não és tola, não tens nada de bronca, é verdade; tua mãe também nem sempre o foi, o que não impede que tu não tenhas instrução alguma; é por isso que precisas escutar o que te dizem.

— Eu tenho medo, Vítor Alexandrytch!

—     Ora, que bobagem, minha querida, eis uma bela razão para se ter medo!… Que é que tens aí? — acrescentou ele voltando-se para ela. — Flores?

—     Sim, respondeu Akulina, com ar abatido… — Eu colhi tasnas — replicou ela animando-se. — É bom para os bezerros. E isto é cânhamo da água, bom para curar escrófulas. Veja que flor bonita. Nunca vi uma flor tão bonita assim. Aqui estão violetas e miosótis… Colhi isto para o senhor — ajuntou ela apanhando sob as flores amarelas da tasna, um pequeno ramalhete de violetas presas por um laço de relva. — O senhor as quer?

Vítor estendeu uma mão preguiçosa, tomou as flores, cheirou-as com indiferença e se pôs a virá-las entre os dedos, os olhos no céu* o ar digno e sonhador. Akulina o contemplava… e seu olhar triste estava cheio de ternura, de devoção, de submissão, de amor. Com medo de aborrecê-lo, não ousava chorar, mas os seus olhos lhe diziam adeus e se satisfaziam pela última vez; quanto a ele, sempre estendido como um sultão, aceitava a ado­ração com uma condescendência magnânima. Confesso que o seu rosto rubicundo, onde se lia, através de uma despreocupação afetada, o egoísmo satisfeito e fácil, me inspirava uma indignação profunda. Akulina estava deliciosa nesse instante. Toda a sua alma se revelava confiante e apaixonada, voltando-se para êle num impul­so de amor, enquanto ele. .. ele, tendo deixado cair sobre a relva as violetas e tirado do bolso um pedaço de vidro rodeado de bronze, se esforçava, em vão por fixá-lo ao ôljio; franzia inutilmente o sobrolho, contraía a face e mesmo o nariz; o objeto, porém, lhe caía sempre na mão.

— Que é isto? — perguntou Akulina estupefata.

— Uma luneta — respondeu ele cheio de impor­tância.

—     Para que serve?

—     Para se ver melhor.

—     Deixe-me experimentá-la.

Vítor lhe deu a luneta contra a vontade.

— Toma cuidado, não a quebres!

—     Não tenha medo. (Aproximou timidamente o vidro do olho). Não vejo nada — confessou com inge­nuidade.

—     Fecha o olho — respondeu êle com uma voz irritada de chefe.

Ela fechou o olho diante do qual estava o vidro.

— Não esse boba, o outro! — gritou Vítor; e, sem lhe dar tempo para corrigir o engano, tirou-lhe a luneta.

Akulina enrubesceu, riu nervosamente e se afastou.

—     Parece que isso não é feito para nós!

—     Eu o creio realmente!

—     Ah! Vítor Alexandrytch, que vai ser de mim sem o senhor — recomeçou ela de súbito.

Vítor limpou o vidro com a ponta do paletó e reco­locou-o no bolso.

— Sim, não há dúvida — dignou-se ele enfim a responder; — nos primeiros tempos isso te parecerá duro.

Deu-lhe uma palmada nas costas com ar protetor; ela tomou-lhe docemente a mão e beijou-a.

— É claro, tu és uma boa menina — continuou ele com um sorriso satisfeito — mas que se há de fazer? Julga tu mesma; meu patrão e eu não podemos ficar aqui eternamente; o inverno está para chegar; um inver­no no campo é insuportável, tu o sabes bem quanto eu. Em Petersburgo as coisas são diferentes. Lá há mara­vilhas que não serias capaz de imaginar, nem mesmo em sonhos, minha pobre pequena. Que casas! Que ruas! ‘ E a sociedade, a instrução… É extraordinário!

Akulina o escutava com avidez, os lábios entrea-bertos, como uma criança…

—     Aliás — acrescentou ele, virando-se sobre a relva — para que contar tudo isso ? Tu és perfeitamente inca­paz de compreender.

—     Por que razão, Vítor Adexanclrytch? Eu com­preendi, deixe disso, eu compreendi tudo.

— Vejam só!

Akulina baixou a cabeça.

—     Antes, o senhor não me falava assim, Vítor Alexandrytch — disse ela sem levantar os olhos.

—     Antes … antes … — grunhiu ele de mau humor.

Ambos se calaram.

—     Está na hora de partir — disse Vítor, apoiando-se sobre o cotovelo.

—     Espere ainda um pouco — suplicou Akulina.

—     Esperar que?

—     Espere! — repetiu ela.

Vítor se estendeu de novo e se pôs a assobiar. Akuli­na não tirava os olhos dele. Pude perceber que a sua emoção ia num crescendo; um ligeiro tremor lhe agitava os lábios, as faces pálidas se tornaram rosadas…

—     Vítor Alexandrytch — recomeçou ela enfim, com uma voz martelada — eu juro que o que está fazendo não é direito.

—     Que é que não é direito? — perguntou êle levan-tando-se um pouco, a cabeça voltada para ela, de sobrolho carregado.

—     Sim, não é direito, Vítor Alexandrytch. Podia perfeitamente dizer-me uma palavra gentil antes de me abandonar. Pobre abandonada que sou! Só uma peque­na palavra.

—     Que queres tu que eu te diga?

—     Devia sabê-lo melhor do que eu, Vítor Alexan­drytch. O senhor parte sem me dizer uma palavra… Que foi que eu fiz para merecer isso?

—     Como és engraçada! Que é que eu posso fazer?

—     Só uma pequena palavra!

—     É uma verdadeira lengalenga! — resmungou ele, levantando-se.

—     Não se zangue, Vítor Alexandrytch — apressou-se ela a dizer, retendo as lágrimas com dificuldade.

—     Eu não me zango, mas tu és uma boba … Eu não posso casar contigo, não é verdade? Então que é que tu queres? Vejamos que queres tu?

Ele a encarou fixamente como se esperasse uma resposta.

— Nada … eu não quero, nada — balbuciou ela mal ousando estender para êle as mãos trêmulas. — Mas se me dissesse uma única palavra gentil antes de me abandonar…

E começou a chorar.

—     Bom, já começa o choro — exclamou Vítor pu­xando o boné sobre os olhos.

—     Eu não quero nada — continuou ela, por entre soluços, escondendo o rosto nas mãos. — Mas que vai ser de mim agora, que vai ser de mim, pobre desgraçada? Casar-me-ão com um homem que eu não amo! Pobre de mim!

—     Continua, continua! — murmurou Vítor batendo com os pés no chão.

—     Se êle me dissesse ao menos uma palavrinha, antes de partir, só uma palavrinha… "Escuta, Akuli­na, eu…"

Mas os soluços impediram-na de continuar; ela se jogou de cara na relva e chorou, chorou desesperada-mente…

Todo o corpo se sacudia; tremores lhe agitavam a nuca. A sua dor, durante muito tempo contida, explodia enfim. Vítor ficou um momento a olhá-la, deu de ombros, afastou-se e partiu a grandes passos. Alguns instantes transcorreram. Akulina serenou um pouco, levantou a cabeça, pôs-se de pé, passeou o olhar em torno, juntou as mãos; quis correr atrás dele, mas as pernas se recusaram, fazendo-a cair de joelhos… Não me contendo mais, precipitei-me para ela; mas apenas me percebeu, as forças lhe voltaram de súbito: deu um pequeno grito e desapareceu atrás das árvores, abandonando as flores espalhadas no chão.

Permaneci ali um momento; depois, reunindo as violetas, saí do bosque. O sol já estava baixo num céu pálido e puro: seus raios pareciam também pálidos, mais frios, esparzindo-se sem brilho num resplendor suave e transparente. Só meia hora nos separava da noite; no entanto, apenas alguns rubores indecisos anun­ciavam o crepúsculo. Através dos colmos amarelados, ressecados, um vento impetuoso chegava a mim, em raja­das; ao longo do bosque, pequenas folhas encarquilhadas fugiam à sua aproximação, turbilhonando pelo caminho. A parte da floresta que erguia a sua muralha em face da planície fremia inteiramente e brilhava com um res­plendor mortecido. Na relva avermelhada, no menor caule, por toda parte, reluziam inumeráveis filandras.


Detive-me… Uma tristeza me invadiu: através do sorriso álacre, ainda cheio de frescura, da natureza em declínio, percebia-se a angústia do inverno próximo. Num vôo desgracioso e pesado, um corvo circunspecto passou por cima de mim, abaixou a cabeça, para me lançar um olhar de lado, aprumou-se e perdeu-se croci-tando além da floresta. Numerosa revoada de pombos, que chegavam em linha reta dos arredores de uma eira, formou subitamente em coluna, depois se abateu e se dispersou prudentemente sobre o restôlho! prova certa do outono! O rolar de uma carroça vazia se fêz ouvir atrás de uma colina desnuda. 

Voltei para casa. Mas a imagem da pobre Akulina me perseguiu durante muitos anos, e conservo ainda as suas violetas, que há muito tempo já murcharam.


Tradução revista de Lauro Escorei.


Imagem retirada da Internet: Turguêniev

Giovanni Papini - conto




HISTÓRIA COMPLETAMENTE ABSURDA



Há quatro dias, estando a escrever com uma ligeira irritação, algumas das páginas mais falsas das minhas memórias, ouvi bater levemente à porta, mas não me levantei nem respondi. As pancadas eram demasiado fracas e não gosto de lidar com tímidos. 

No dia seguinte, à mesma hora, ouvi novamente bater; desta vez, as pancadas eram mais fortes e decididas. Mas também não quis abrir, pois não aprecio absolutamente nada os que se corrigem com demasiada pressa.

No terceiro dia, sempre à mesma hora, as pancadas foram repetidas de forma violenta e antes que pudesse levantar-me vi a porta abrir-se e entrar a medíocre figura de um homem bastante jovem, com o rosto um tanto afogueado e a cabeça coberta por cabelos ruivos e crespos, inclinando-se canhestramente, sem nada dizer. Mal viu uma cadeira, atirou-se-lhe para cima e como eu continuasse de pé indicou-me o cadeirão para que me sentasse. Tendo-lhe obedecido, julguei-me no direito de lhe perguntar quem era, pedindo-lhe num tom nada delicado, que me dissesse o nome e o motivo que o tinha levado a invadir o meu quarto. Mas o homem não se alterou e fez-me imediatamente compreender que, para já, desejava continuar a ser o que até então fora para mim:. um desconhecido.

- O motivo que me trouxe até ao senhor – continuou, sorrindo – está dentro da minha mala e dar-lho-ei a conhecer imediatamente.

Com efeito, apercebi-me de que trazia na mão uma pequena mala de couro amarelo-sujo, com guarnições de latão desgastado pelo uso, a qual abriu dela tirando um livro.

- Este livro – disse pondo-me diante dos olhos um grosso volume forrado a tela com grandes flores de um vermelho ferruginoso – contém uma história imaginária que criei, inventei, redigi e copiei. Em toda a minha vida, apenas escrevi isto e atrevo-me a supor que não lhe desagradará. Até agora apenas o conhecia de nome e só há uns dias uma mulher que o ama me disse que o senhor é um dos poucos homens que não tem medo de si mesmo e o único que teve a coragem de aconselhar a morte a muitos dos seus semelhantes. Por isso, pensei ler-lhe a minha história, que narra a vida de um homem fantástico ao qual acontecem as mais singulares e insólitas aventuras. Depois de a ter ouvido, dir-me-á o que devo fazer. Se a minha história lhe agradar, prometer-me-á tornar-me célebre no prazo de um ano; se não gostar, matar-me-ei dentro de vinte e quatro horas. Diga-me se aceita estas condições e eu começarei.

Compreendi que nada podia fazer senão manter a atitude passiva que tinha assumido até então e indiquei-lhe, com um gesto que não conseguiu ser amável, que o escutaria e faria tudo o que desejava.

- Quem poderá ser – pensava para comigo – a mulher que me ama e que falou de mim a este homem? 

Nunca tivera conhecimento de que uma mulher me amasse e se assim fosse não o teria tolerado, pois não há situação mais incómoda e ridícula que a dos ídolos de um qualquer animal.” O desconhecido arrancou-me a estes pensamentos com um bater de pés, pouco eloquente, mas claro. O livro estava aberto e a minha atenção era considerada necessária.

O homem começou a leitura. As primeira palavras escaparam-se-me; dei mais atenção às seguintes. Depressa apurei o ouvido e senti um leve calafrio nas costas. Dez ou vinte segundos depois o meu rosto ficou vermelho; as pernas moveram-se-me nervosamente; decorridos mais dez segundos, levantei-me. O desconhecido suspendeu a leitura e fitou-me, interrogando-me humildemente dom os olhos. Olhei-o do mesmo modo e inclusivamente com ar de súplica, mas estava demasiado aturdido para o mandar embora. Disse-lhe simplesmente, como qualquer idiota sociável:

- Faça o favor de continuar.

A extraordinária leitura prosseguiu. Não conseguia estar quieto no cadeirão e os calafrios percorriam-me não só as costas, mas também a cabeça e o corpo inteiro. Se tivesse podido ver o meu rosto no espelho talvez me tivesse rido e tudo tivesse passado, pois provavelmente reflectia um espanto abjecto e um indeciso furor. Tentei, por um momento, não continuar a escutar as palavras do calmo leitor, mas só consegui ficar mais confuso; escutei integralmente, palavra por palavra, pausa após pausa, a história que o homem lia com a sua cabeça ruiva inclinada sobre o bem encadernado volume. O que podia ou devia eu fazer numa circunstância tão especial? Agarra o maldito leitor, morder-lhe e atirá-lo para fora do quarto como um inoportuno fantasma?

Porém, por que motivo iria fazer tal coisa? No entanto, aquela leitura produzia-me um inexprimível aborrecimento, uma penosíssima impressão de sonho absurdo e desagradável, sem esperança de poder acordar. Julguei por momentos ir cair num furor convulsivo e vislumbrei na minha imaginação um enfermeiro de uniforme branco que me punha um colete de forças, com infinitas e excessivas precauções. Contudo, finalmente acabou a leitura. Não me lembro de quantas horas durou, mas, ainda mergulhado na minha confusão, reparei que o leitor tinha a voz rouca e a testa húmida de suor. Depois de ter fechado o livro e de o ter guardado na sua mala, o desconhecido fitou-me com ansiedade, embora o seu olhar não tivesse já a ansiedade do princípio. O meu cansaço era tão grande que ele próprio o adivinhou e o seu pasmo aumentou vendo que esfregava um olho e não sabia o que lhe responder. Parecia-me naquela altura que nunca mais poderia voltar a falar e até mesmo as coisas mais simples que me rodeavam se apresentavam aos meus olhos tão estranhas e hostis que quase experimentei uma sensação de repugnância. Tudo isto parece demasiado vil e vergonhoso; penso o mesmo e não tenho qualquer espécie de indulgência para a minha perturbação. Porém, o motivo do meu desequilíbrio era de muito peso: a história que aquele homem tinha lido era a narração pormenorizada e completa de toda a minha vida íntima, interior e exterior. Durante aquele tempo, escutara a minuciosa narrativa, fiel, inexorável de tudo o que sentira, sonhara e fizera desde que vim ao mundo. Se um ser divino, leitor de corações e testemunha invisível, tivesse estado a meu lado desde o meu nascimento e tivesse escrito o que observou dos meus pensamentos e acções, teria redigido uma história perfeitamente igual à que o leitor desconhecido declarava ser imaginária e por ele inventada. As coisas mais pequenas e secretas eram recordadas e nem sequer um sonho ou um amor ou uma vileza oculta, um calculismo ignóbil, escaparam ao escritor. O terrível livro continha até factos e pensamentos que esquecera e que apenas recordara ao escutá-lo.

A minha confusão e receio provinham desta impecável exactidão e deste inquietante escrúpulo. Nunca vira aquele homem; aquele homem afirmava nunca me ter visto. Eu vivia muito solitário a uma cidade a que ninguém vem se a isso não for forçado pelo destino ou pela necessidade. A nenhum amigo, se é que ainda algum me restava, confiara as minhas aventuras de caçador furtivo, as minhas viagens de salteador de almas, as minhas ambições de pesquisador do inverosímil. Nunca escrever a, nem para mim nem para os outros, uma relação completa e sincera da minha vida e precisamente por aqueles dias estava fabricando fingidas memórias para me ocultar dos homens, inclusivamente após a morte.

Quem, pois, podia ter dito a este visitante tudo o que narrara sem pudor e sem piedade no seu odioso livro forrado de papel antigo de cor ferruginosa? E afirmava ter inventado aquela história e apresentava-me, a mim, a minha vida inteira como se fosse uma história imaginária!

Encontrava-me terrivelmente perturbado e emocionado, mas de uma coisa estava certo: este livro não podia ser divulgado entre os homens. Mesmo que para tal aquele infeliz autor e leitor tivesse que morrer, não podia permitir que a minha vida fosse divulgada e conhecida no mundo, entre todos os meus impessoais inimigos. Esta decisão, que senti firme e sólida, no meu foro íntimo, começou a reanimar-me levemente. O homem continuava a fitar-me com um ar consternado, quase suplicante. Tinham decorrido apenas dois minutos desde que terminara a sua leitura e não parecia compreender o motivo da minha perturbação. Finalmente, consegui falar:

- Desculpe, senhor – perguntei – Assegura que esta história foi verdadeiramente inventada por si?

- Precisamente – respondeu o enigmático leitor, com ar mais tranquilo – pensei-a e imaginei-a durante muitos anos e fui fazendo retoques e alterações na vida do meu herói. No entanto, tudo é fruto da minha imaginação.

As suas palavras incomodavam-me cada vez mais, mas consegui ainda fazer outra pergunta:

- Diga-me, por favor, tem a certeza absoluta de não me ter encontrado antes de hoje? De nunca ter ouvido contar a minha vida a alguém que me conheça?

O desconhecido não pôde conter um sorriso de espanto ao ouvir as minhas palavras.

- Já lhe disse – respondeu – que até há pouco tempo apenas o conhecia de nome e que apenas há uns dias soube que costumava aconselhar a morte, mas nada mais sei sobre o senhor.

A sua condenação estava decidida, sendo necessário que não demorasse a ser executada.

- Continua disposto – perguntei-lhe com solenidade – a manter as condições por si mesmo estabelecidas antes de começar a leitura?

- Sem dúvida – respondeu com um leve tremor na voz -, não tenho outras portas a que bater e esta obra é a minha vida. Sinto que não poderia proceder de outro modo.

- Devo então dizer-lhe – acrescentei com a mesma solenidade, embora temperada por alguma melancolia – que a sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável. O seu herói, como lhe chama, não passa de um enfadonho malandrim que entediará qualquer leitor mais requintado. Não quero ser demasiado cruel acrescentando ainda mais pormenores.

Comprovei que o homem não esperava estas palavras e apercebi-me de que as suas pálpebras se fecharam instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo reconheci que o seu poder sobre mim era equivalente à sua honestidade. Quase imediatamente reabriu os olhos, fitando-me sem medo e sem ódio.

- Quer acompanhar-me até lá fora? – perguntou-me com uma voz demasiado doce para ser natural.

- Com certeza – respondi, e depois de pôr o chapéu saíamos de casa sem falar.

O desconhecido continuava a levar na mão a sua mala de couro amarelo e segui-o, entorpecido, até à margem do rio que corria caudaloso e ruidosamente entre as negras muralhas de pedra, Olhando em redor e certificando-se de que não via ninguém com aspecto de salvador, voltou-se para mim dizendo:

-Desculpe-me se a minha leitura o aborreceu. Julgo que nunca mais incomodarei um ser vivo. Esqueça-se de mim tão depressa quanto possível.

E estas foram as suas últimas palavras, porque saltando agilmente o parapeito, com um rápido impulso, atirou-se ao rio com a sua mala. Debrucei-me para o ver mais uma vez, mas a água já o tinha recebido e coberto. Uma menina tímida e loura apercebera-se do rápido suicídio, mas não pareceu muito espantada e prosseguiu o seu caminho comendo avelãs. Regressei a casa depois de ter feio algumas tentativas inúteis. Mal entrei no meu quarto, estendi-me sobre a cama e adormeci sem muito esforço, abatido e alquebrado pelo inexplicável acontecimento.

Esta manhã acordei muito tarde e com uma estranha sensação. Parecia-me estar já morto e esperar apenas que me viessem sepultar. Tomei imediatamente providências para o meu funeral, fui pessoalmente à agência funerária para que nenhum pormenor seja esquecido. Espero que a todo o momento me tragam o caixão. Sinto pertencer já a outro mundo e todas as coisas que me rodeiam têm o indizível ar de coisas passadas, acabadas, sem qualquer interesse para mim.

Um amigo trouxe-me flores e disse-lhe que podia esperar para as colocar sobre a minha campa. Pareceu-me que sorria, mas os homens sorriem sempre daquilo que não compreendem.



Tradução de Carlos Loures



 In. Riviere Ligure», 1906 - Fonte: Aventar.eu
Imagem retirada do Blog Ecos do Nada

Álvares de Azevedo - Poema


SOLIDÃO






Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio e, no seu leito,
Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se... vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes...
— É doida por amor da noite a filha.

As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório...
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros...
Ó lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração... que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?

Minh'alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária...
Deito-me só e triste sem ter fome
Vendo na mesa a ceia solitária.

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem ceiar comigo!





In. Lira dos vinte anos
Imagem retirada da Internet: lua

Paul-Marie Verlaine - Poema





ARTE POÉTICA




Antes de qualquer coisa, música
e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.

E preciso também que não vás nunca
escolher tuas palavras em ambigüidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso se junta ao Preciso.

São belos olhos atrás dos véus,
é o grande dia trêmulo de meio-dia,
é, através do céu morno de outono,
o azul desordenado das claras estrelas!

Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.

Foge para longe da Piada assassina,
do Espírito cruel e do Riso impuro
que fazem chorar os olhos do Azul
e todo esse alho de baixa cozinha!

Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começaste,
em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?

Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?

Ainda e sempre, música!
Que teu verso seja a coisa volátil
que sente fugir de uma alma em voo
para outros céus e para outras paixões.

que teu verso seja o bom acontecimento
esparso no vento crispado da manhã
que vai florindo a hortelã e o timo…
E tudo o mais é só literatura.



In. TELES, Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983, p.53.
Imagem retirada da Internet: música

Carlos Drummond de Andrade - Poema



A Castidade com que Abria as Coxas


A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.


In.O Amor Natural. 1992.
Imagem: Gustav Klimt - Mulher sentada de coxas abertas

Tzvetan Todorov - Entrevista


 
                                   Entrevista originalmente publicada na  Revista Bravo.


Nascido em 1939 em Sófia, na Bulgária, e naturalizado francês, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov é um dos mais importantes pensadores do século 20. Traduzida para mais de 25 idiomas, sua obra inspira críticos literários, historiadores e estudiosos do fenômeno cultural do mundo todo. Em seu mais recente livro publicado no Brasil, A Literatura em Perigo, Todorov faz um mea culpa raro entre intelectuais. Ele diz que estudos literários como os seus, cheios de "ismos", afastaram os jovens da leitura de obras originais - dando lugar ao culto estéril da teoria. De Paris, ele falou a BRAVO! por telefone:



BRAVO!: Gostaria que o sr. falasse sobre o seu primeiro contato com a literatura quando criança, e como ela se transformou em uma paixão.

Tzvetan Todorov: Eu cresci na Bulgária durante a Segunda Guerra, quando quase ninguém vivia em Sófia, sob constante bombardeio. A maior parte da população vivia fora da capital, em apartamentos divididos por várias famílias. Dentro da coletividade em que habitávamos, havia um especialista em literatura. Foi ele que me ensinou a ler, antes que eu atingisse a idade escolar. Ele me incentivou a praticar a leitura nos livros infantis, e logo comecei a gostar dos contos populares. Apreciava especialmente as histórias dos irmãos Grimm e As Mil e Uma Noites. Essas obras faziam minha alegria. Eu já tinha um sentimento do enriquecimento pessoal que o contato com a ficção podia proporcionar.

Por que o contato com a ficção é tão importante?
Os livros acumulam a sabedoria que os povos de toda a Terra adquiriram ao longo dos séculos. É improvável que a minha vida individual, em tão poucos anos, possa ter tanta riqueza quanto a soma de vidas representada pelos livros. Não se trata de substituir a experiência pela literatura, mas multiplicar uma pela outra. Não lemos para nos tornar especialistas em teoria literária, mas para aprender mais sobre a existência humana. Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às idéias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade.

E como fazer para que as crianças e os jovens tenham acesso a esse conhecimento tão importante?
A escola e a família têm um papel importante. As crianças não têm idéia da riqueza que podem encontrar em um livro, simplesmente porque eles ainda não conhecem os livros. Deveríamos então ser iniciados por professores e pais nessa parte tão essencial de nossa existência, que é o contato com a grande literatura. Infelizmente, não é bem assim que as coisas acontecem.

Por quê? 

Quando nós professores não sabemos muito bem como fazer para despertar o interesse dos alunos pela literatura, recorremos a um método mecânico, que consiste em resumir o que foi elaborado por críticos e teóricos. É mais fácil fazer isso do que exigir a leitura dos livros, que possibilitaria uma compreensão própria das obras. Eu deploro essa atitude de ensinar teoria em vez de ir diretamente aos romances, por que penso que para amar a literatura - e acredito que a escola deveria ensinar os alunos a amar a literatura - o professor deve mostrar aos alunos a que ponto os livros podem ser esclarecedores para eles próprios, ajudando-os a compreender o mundo em que vivem.
Ao comentar esse assunto no livro, o sr. fala em "abuso de autoridade". Poderia explicar melhor?
É um abuso de autoridade na medida em que é o professor quem decide mostrar aos alunos o que é importante, com base em um programa definido previamente pelo Ministério da Educação. E isso é sempre uma decisão arbitrária. Não temos o direito de reduzir a riqueza da literatura. O bom crítico - e também o bom professor - deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita.

Como conciliar esse desejo de liberdade num sistema em que o professor tem que atribuir notas, como ocorre no Brasil e na França?

Acredito que o essencial é escolher obras literárias que sejam, por sua complexidade e temas, acessíveis à faixa etária a que se destinam. Cabe ao professor mostrar o que esses livros têm de enriquecedor para os alunos, levando em consideração a realidade deles. O importante é não ter medo de estabelecer pontos em comum entre o presente dos alunos e do sentido dos livros.

O escritor italiano Umberto Eco fala que o livro, ao lado da cadeira, é o objeto de design mais perfeito criado pela humanidade. Num momento em que se questiona isso, o senhor vê futuro para o livro?

É verdade que hoje lemos muito diante da tela, mas não acho que o livro vá desaparecer. Ele estabelece uma relação de possessão e de interiorização que nós não podemos estabelecer com algo tão imaterial quanto o texto na tela do computador. Claro que eu mesmo, quando busco uma referência, o faço facilmente diante da tela. Mas se eu desejo me embrenhar em um livro, se eu quiser me render a seu interior, é preciso que seja com o objeto "livro". A isso ele se presta maravilhosamente. 

O LIVRO
A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov. Difel, 96 págs., R$ 25.


Imagem retirada da Internet: Todorov

Hélio Pólvora - Conto

Do Outro Lado do Rio




— Ei, senhor.

Sentado na popa de sua canoa, um remador fazia-me sinais há algum tempo.

— Ei.

— Quer atravessar?

— Não sei ainda. Mais tarde.

— O outro lado do rio é bonito.

— É bonito ou está bonito?

Ele não entendeu, ou então não quis estabelecer diferença. Para que? Miudezas. Olhava-me com ar absorto e com a paciência de quem lida com viajantes indecisos. Vi que uma barba rala e alourada cobria-lhe o rosto, e que tinha o nariz curvo. A cabeça encoberta por um chapéu de palha mostrava apenas a sombra dos olhos. Visto de perfil, parecia velho, mas ainda robusto, e com um jeito afiado de ave de rapina pousada num galho.

Continuei a olhar o rio, que parecia estancado, sem correnteza, mas movimentava de leve as águas, de forma a escorrer de forma quase imperceptível. A água não estava escura ou baça, nem clara. Parecia água nova, trazida das cabeceiras onde decerto chovera. Mas não estava barrenta. Mesmo sem transparência, transmitia uma superfície de espelho.

— Está assim há dias — disse o remador.

— O quê?

— A água do rio. Costuma ser clara, fina. Choveu, o leito subiu e a correnteza parou.

— O senhor é canoeiro há muito tempo?

— Desde menino.

Puxou mais o chapéu sobre os olhos, como a proteger-se de uma luz cegante, e recordou que, antes da ponte, a travessia era feita em canoas chamadas besouros. Alongadas, com duas tábuas atravessadas à guisa de bancos, algumas tinham motor de popa. O motor chiava, por isso deram-lhes o nome de besouros. Atravessava-se o rio recebendo na roupa salpicos de água. Às vezes a superfície do rio rolava grossa, como um tapete sujo a distender-se, e nesse caso as canoas oscilavam, emborcavam. Quem não soubesse nadar, afogava-se.

— O senhor socorreu algum viajante?

— Não fui feito para essas coisas — respondeu em tom seco.

O sol voltara a luzir por entre gotículas da água suspensas. Um arco-íris foi-se delineando do outro lado do rio, ao longo da encosta verdejante que cobria o litoral. Em baixo, numa enseada indistinta, os pilares da ponte. Não se via movimento na ponte, talvez por causa da distância. Apurei os olhos. Nada, sequer um vulto, nenhum automóvel.

— Ninguém atravessa pela ponte? — arrisquei.

— É uma travessia muito direta, que depende da vontade de cada um. No fundo, meu senhor, ninguém gosta de atravessar.

Não entendi então porque as autoridades mandaram construir a ponte, e porque, havendo ponte, canoas e barqueiros ainda aguardassem viajantes fortuitos.

— Há dois caminhos — o remador voltou a falar, como se me adivinhasse os pensamentos. — As pessoas preferem vir para cá, como se não esperassem encontrar este cais antigo, estas canoas, esta solidão. Chegam e, então, já que aqui se encontram, atravessam. O caminho da ponte é uma escolha deliberada, como eu já lhe disse.

Cala-se, olha o marulhar das águas no casco da canoa. O sol aumenta de intensidade, vejo que o arco-íris do outro lado se vai dissipando. Mas a água nada reflete, é um espelho embaciado.

— Deve ser bonito do outro lado — eu digo.

O remador se agita, seus olhos faíscam sob a aba do chapéu.

— Pode ter certeza, senhor. É um espetáculo.

Um espetáculo. Fico a saborear esta palavra, como quem a mastiga. E, estendendo a vista até o outro lado, encho os olhos com uma encosta ligeiramente escarpada. Está verde, varrida pelo sol, e brilha, brilha como se fosse um vitral do qual se coassem muitas cores, as cores do arco-íris, o verde e o amarelo em predomínio. Um bosque extenso e profundo, sem clareiras, de árvores irmanadas que devem formar uma alfombra com a sua copa generosa. No chão, naturalmente folhas secas, imagino que folhas outonais, ferrugentas, a formarem tapete macio. Olhos d´água, troncos secos que se oferecem como bancos, pedras limosas em que descansar os olhos, lagos de água límpida. E suponho que frutos. O vento espalha a fragrância de suas polpas, o odor de seus líquidos. É, o remador tem razão, deve ser convidativo o outro lado. Deve ser bom.

— Muitos viajantes não voltam para o continente — diz o remador. — Preferem ficar naquela ilha comprida. Alguns pedem que eu espere, querem dar um passeio pelas praias desertas e limpas, querem sentir o perfume das trilhas, saber se vão dar em uma aldeia. Outros mais decididos vão logo dizendo, antes que eu encoste a canoa: ”Não me espere, remador. Eu vou ficar”. Estou acostumado a todas as reações. Sou observador, entende?

Sei que é. Ele se antecipa aos meus pensamentos, adivinha o desenrolar lento das minhas idéias. Um interlocutor desses, eu penso, é um bem na vida. Em geral não nos ouvem. As pessoas fingem escutar, mas em verdade escutam a si próprias, e o fazem por educação, a pensar no que vão dizer, no que desejam ouvir, ou no que pretendem induzir o outro a dizer para que tenham afinal a confirmação da resposta. Ah, é preciso saber escutar, é preciso saber ter ouvidos e fazer com que eles se apurem para ouvir nos momentos certos. Aquele remador tem o instinto da conversa mútua, do diálogo. Com ele o monólogo da vida cessaria, a trituração interior que gera angústias se desfaria em pó com que aspergir e esconjurar todos os nossos espaços vagos.

— A ilha tem nome?

— Não. É apenas o Outro Lado.

— O Outro Lado?

— Sim, senhor. O Outro Lado do Rio.

Duas touceiras de erva sumarenta, muito verde, desciam pelo rio, vagarosas. Sem correnteza levariam horas a chegar a alguma praia, porque os rios sempre despejam suas águas no mar, em outro rio ou num lago. Há sempre uma praia, haverá sempre uma margem em que naufragar ou secar ao sol.

— Baronesas — diz o barqueiro.

— Têm um ar distinto.

— E cobras dentro das touceiras — prossegue o barqueiro. Vira-se, dá uma cusparada no rio. A voz trai um tom de desgosto. Olha as baronesas arrancadas de barrancos, rio acima, na estação das chuvas, e completa: — Vai ser uma longa viagem.

— A não ser que vente — eu digo.

— É, a menos que venha vento forte.

— Acha que vai ventar?

— Não. Hoje o dia escurece cedo, mas sem chuva e sem vento.

— Tem certeza?

— Tenho. É a experiência. O cheiro do vento a gente pega no ar.

Dou alguns passos pela margem de terra nua, sem ervas, com pedregulhos. Ninguém mais, somente eu e o canoeiro, que, com sua calma, parece estar ali à minha espera. Melhor, à minha disposição. O tempo não o incomoda, é como se ele tivesse todo o tempo de uma vida galática, de uma eternidade. Não sou dado a enigmas, mas de súbito me vem a impressão de que marcamos um encontro ali naquela margem deserta, e que ele está ali com a sua canoa para me prestar um serviço, para levar-me à outra margem. Mas como saberia que eu, nas minhas andanças às vezes sem rumo, contemplativo, imerso em meditações, iria dar ali, naquele antigo cais de um tempo em que havia uma chusma de canoeiros e viajantes ávidos por escarpas verdes do outro lado do rio turvo?

— Está com medo? —pergunta o canoeiro.

— Medo? De que? De quem?

— Não sei. Talvez medo do senhor mesmo. Ou de mim.

— O senhor não me fez mal.

— Nem farei. Estou aqui somente para levá-lo, se quiser atravessar. Se sentir que chegou a sua hora de atravessar.

— Como vou saber? Nunca tenho certeza de nada. Certeza somente a de estar vivo

— Ainda bem. Tem pelo menos esta, que explica o medo.

— Como assim?

— O senhor sabe que está vivo e isso lhe dá medo. Estar vivo é bom, mas o bem não dura. Nada na vida está em repouso permanente, nem mesmo as pedras, que um dia se transformam em pó.

— E qual seria o estado perfeito, o bem-estar supremo?

— O não-ser. Aquela noite escura, de uma escuridão total, sem desejos, sem necessidades.

— Uhm... Alguém já disse isso com outras palavras. Creio que foi Schopenhauer, um filósofo pessimista. Não se deve temer o não-ser, porque dele viemos. Ao existir, vemos então que o não-ser tem suas vantagens. Estar vivo é um problema. A vida seria, nesse caso, o medo crescente de algo melhor. Estou certo?

— Para mim, está. O maior sinal de cultura consiste em perder o medo. É preciso atravessar, atravessar sempre.

Começo a examinar melhor o remador. Humilde, mal vestido, pés no chão, e, no entanto, idéias profundas. Quem o teria ensinado a filosofar? Quem o teria aproximado de mistérios?

Do outro lado do rio o litoral escarpado adquire uma tonalidade enfermiça de poente. Cores desmaiadas, com a luminosidade mortiça de velas. Mas seriam muitas velas juntas, e todas acesas, e por isso ali não se fazia noite, a luz resistia às trevas, tangia a noite, que já começava a tombar, para o lado de cá, onde estávamos o remador e eu. E a noite, desdobrando a sua capa sobre o rio, enlutava definitivamente os restos de um dia a apagar-se.

O remador protege o pescoço com a gola aberta do casaco. Dou um passo hesitante, talvez movido pela necessidade de fazer um movimento, na direção da canoa. Ainda não sei se vou atravessar o rio.

— Resolveu atravessar ? — pergunta o remador, com um, sorriso que me parece irônico.

— Acho que sim. Afinal, do outro lado há luz.

— Os poentes são sempre longos na Ilha do Outro Lado.

Sento-me na tábua do meio da canoa. O remador entra na água rasa e dirige-se à margem. Com certeza vai impelir a canoa para longe da areia, para o fundo, antes de tomar do remo e iniciar a travessia.

A noite cai depressa, como se alguém no alto soltasse as dobras de uma cortina escura. A canoa oscila, a água bate nos costados e na proa, em baques fofos, um vento morno, com um toque de frio, me percorre o corpo, deixa uma sensação de carícia. As mãos coçam. Estão ocupadas com o remo, na verdade empunham o remo, sou eu, afinal, quem rema nesta canoa — o único a remar. O canoeiro ficou em terra, seu perfil recurvo absorvido pelo silêncio, pelas trevas.

Eu remo de coração leve para o âmago da noite ou para o facho de luz, não sei bem. A luz que me parecia brotar da Ilha do Outro Lado brilha agora no antigo cais onde embarquei. E as trevas do velho cais caem sobre a Ilha, lhe acentuam a silhueta esguia.

Para onde vou? Perdi a minha última certeza. Sei apenas que é preciso remar. Devo estar no meio do rio, o medo vem de novo e me sufoca o peito. Ignoro qual a margem certa, não sei mais como voltar nem aonde ir. Estou remando para a noite definitiva ou para o lívido alvorecer?


In. Contos da Noite Fechada, 2004.

Imagem retirada da Internet: canoa

Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...