Antonio Carlos Secchin - Poema





De chumbo eram somente dez soldados



De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo,
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento;
mas na lisa planície da alegria
corre o rio feroz do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume de um poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubados
as manhãs, os meninos e os soldados.


In. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
Imagem retirada da Internet: soldadinhos de chumbo

Francisco Perna Filho - Ensaio curto



Via crucis



O ápice do amor é a morte, diz George Bataille no seu livro O Erotismo, pois, segundo ele, para que uns tenham vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thanatos, morte.

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O corpo é vital para o espírito aqui na terra. A terra é o espelho desse corpo quando tudo se acaba. Viver, sofrer, seguir em frente, eis o que o sentimento de vitalidade nos provoca, já que as paredes são apenas ilusões, barreiras materiais para onde correm os homens.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la? Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nosso modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Quantas vidas ainda teremos de viver? Quantas catástrofes teremos de presenciar? Quantos pilantras teremos de eleger para que consigamos entender o verdadeiro sentido da nossa existência? Talvez milhares, porquanto o homem parece não querer enxergar o lastro de destruição por ele deixado.

Pensemos nas guerras, na fome, no tráfico de seres humanos. Pensemos do poder de potência dos negociadores de armas, nos obtusos governos que se alastram pelo mundo afora. Pensemos na exploração sexual de crianças e adolescentes, nos desvios do dinheiro público, nas licitações fraudulentas, nos traficantes de drogas, soldados da destruição.

Muita coisa ruim tem tentado se perpetuar no mundo, mas as almas de boa vontade, os anjos da boa nova têm insistido nas ações que valorizam o ser humano, têm buscado a preservação da vida, a valorização da solidariedade, o amor incondicional entre os povos.

Talvez o que tenhamos feito tenha sido pouco, mas não em vão. Cada olhar de apoio, cada palavra de encorajamento, cada gesto de solidariedade, tudo isso tem uma importância imensurável, tudo isso é capaz de transformar vidas, tanto de quem doa quanto de quem recebe. São gestos como esses que nos dão a dimensão do que é ser verdadeiramente humano, a força de Eros em toda sua plenitude, com toda a sua força, para o reaprendizado de existências.


Imagem retirada da Internet: globo da morte

Francisco Perna Filho - Ensaio curto

medo


Medo, um ato de humanidade

                                                                                               

O medo que carregamos é a memória que trazemos das coisas, sem a experiência, não há evocação, por isso é que as crianças são destemidas, carregam apenas o não revelado e obscuro soluço dos deuses. Amedontrar-se é, pois, sentir-se humano e requer coragem para tal.

Há pouco, senti-me totalmente tomado por uma vontade de falar sobre este tema: o medo das coisas, o que buscamos e tememos, o que tememos e não conseguimos buscar, o que, a duras penas, levamos adiante. A necessidade que temos de chegar sempre em primeiro lugar, amedrontando aqueles que nos seguem, que nos acompanham, aqueles a quem dirigimos, aos nossos in-subordinados.

O medo que nos cerca  é, de todo, a arma que temos contra os corajosos, os ousados, os usados. Por que estamos sempre com um pé atrás, prontos para recuar, para dar o grito de alarme e sair correndo e, às vezes, é isso que nos salva, que nos determina como vencedores, como duradouros. O medo é a égide do historiador, ele não participa das guerras, das lutas; não se envolve nas diatribes, por que ele precisa contar os fatos. Alguém tem de contar a história.

O que move os críticos de todas as áreas é, justamente, o medo. Falo daqueles que temem e não se arriscam, jamais, a ousar nas áreas que criticam, preferem ficar na espreita, com um olhar carregado de teoria a mover-se de um lado para outro apenas a falar do que desconhece. Falo empresário que patenteia o invento alheio e, por “medo”, não revela o autor, morre de ganhar dinheiro em cima dele. Do jornalista que se esconde atrás dos fatos, por pura incompetência, valendo-se das agências de notícias e das cópias do alheio. Do professor de Língua Portuguesa, principalmente das universidades, que ensina regras e mais regras do bom falar e escrever e, por medo, fica escondido nas teorias sem nunca se revelar na escrita.

Sentir medo é sentir-se preso e liberto, alegre e triste, fechado e aberto. Sentir medo é ser dúbio, é ser  inconsciente, às vezes inconsequente, porque viver requer pressa e determinação. Uns, aceleram demais e vão-se embora, sem medo, sem ressentimento: “vida louca,vida,vida breve, se eu não posso te levar, quero que você me leve”. Outros, petrificados que estão nas suas prepotências, não enxergam o amanhã, só o agora, o presente que são, para esses, o medo é a força do apego, o delírio da perpetuação.

Quem não tem medo, que atire a primeira bala, o primeiro olhar, como o fazem os pistoleiros que, por medo, atraiçoam; os mandantes que, por covardia, pagam. Os políticos, que seduzem, prometem, e abandonam. Todos medrosos e covardes, revelando o lado pútrido do medo.

Sentir medo é o que nos mantêm calados, é que nos mantêm no emprego, é o que nos faz “ingênuos”, precisamos sentir medo para prosseguir, criar os nossos filhos, conhecer os nossos netos e, se possível protegê-los quando alguém tentar amedrontá-los, como acontece com a minha filhinha, todas as vezes que ela escuta esse grito: oooooolha a  pamonnnnnnnnha!! e corre para os meus braços. É o primeiro exercício de humanidade: sentir medo, um medo instantâneo, infantil, até o próximo e ousado ato. As crianças pertencem aos deuses, nós, ao medo, humanamente ao medo. Até que digam o contrário.


Imagem retirada da Internet: medo

Francisco Perna Filho - Poema




No balanço do vento


Para Adalgisa Nolêto Perna



Eu choro pela minha mãezinha,
que ficou só.
Ela era tantas,
estampava alegria,
um canto de primaveras,
um olhar para lá do rio.
Assim, como está,
hoje, como a flor solitária na roseira,
indo e vindo,
no balanço do vento,
só, sozinha, somente.
Para onde vão os filhos
depois que crescem?
vão para qualquer lado,
canto, ou país,
não importa.
O que importa
é a porta sempre aberta,
o barulho que levam,
e a certeza de que são muitos.
Eu choro pela minha mãezinha,
Só, sozinha, semente.


Imagem retirada da Internet: roseira

Miguel Jorge - Poema



Terra


           
Esta pequena dimensão de vagos horizontes
limita-se à extensão de tua destreza:
tudo está aí guardado
como coisa que nunca existiu
como pedra
como barro
sangue
lei
acontecimentos do dia.

Esta pequena dimensão de vacas paridas
não se dilata com teus braços
nem se torna reino em tua geografia.

Dentro do jogo
é arma poderosa:
um bispo um rei
um peão uma rainha
como qualquer fogo
cercado de novos cruzeiros.
Esta pequena dimensão tem muros
todos sabem por testemunha
e
não lhe foi legada como pertence.
Há procissões de patrões
pálios sem ornamentos
bandeiras sem cores
andores engavetados no tempo.

São de asas estas terras
e voam como o vento
forças que encurtam vidas
tesouro negro
cinturão de balas
dinheiro de coronéis
fedendo a bordéis.

Nesta pequena dimensão
teu corpo de morto é teu trabalho
teu sangue é vinho como regalo
tua sombra armação de espantalho
demônios que bailam nos campos da noite
ombros operários.

Esta pequena dimensão
que se carrega nos olhos
pele dura que o sono cava
entre sonhos
pacto que se cala
viola a morte
campos que semeiam
colheita com gosto de mortalha.


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet:sol terra

Miguel Jorge - Poema







Voz


           
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu divina voz!
Sempre viva quase morta
vigiada falseada
em seu canto primitivo
luminoso som de pétalas
que navega em mar de bocas.
Tua voz
minha voz
nossa voz
ó tu suave voz!
Para os deuses para o nada
fônicas faces moduladas
no silêncio dos cortes
no lamento da esperança
que se faz de espera.

Minha voz
tua voz
nossa voz
sempre viva meio morta
som e sol de puros nós.

Minha voz
                                       (Yes)
Tua voz
   (Non)
nossa voz plastificada
   (Yesnon)
nauseada coqueteada
com
chicletes e outros etes
vinda do fundo da alma
do fundo da calma
pesando por falar
pesando por calar
sem que ninguém
pudesse senti-la:
“As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.”

Nossa voz
minha voz
esgotada em sua essência
sem clemência
paga dura penitência
de milenar existência.

Tua voz
   (Yes)
Minha voz
   (Non)
Nossa voz
   (Yesnon)


In.Profugus.Goiânia,1990.
Imagem retirada da Internet: voz

Heleno Godoy - Poema


Sem Título



nos espaços de teu corpo
teu nome em todas as pedras
no espanto de teus traços
teu nome em todas as horas
e meu estar incontável
entre pedras por todas as horas
nos pontos de teu corpo
teu fato em todas as tendas
na marca de teus braços
teu fato em todos os lados
e meu estar incontável
entre tendas por todos os lados

nas amarras de teu medo
teu contra em todas as feras
no vazio de teus laços
teu contra em todos os cantos
e meu estar incontável
entre feras por todos os cantos

nos confins de tua fuga
teu normal em todas as vagas
no desejo de tua volta
teu normal em todos os dias
e meu estar incontável
entre vagas por todos os dias



In. Fábula Fingida. Rio de Janeiro, 1985.
Imagem retirada da Internet: Eu e as minhas poetas

Heleno Godoy - Poema



Sem Título



Há uma flor branca no vaso
sobre a mesa da sala.
Há um vaso com violetas, que nunca
brotam, sobre a muralha, a pequena
muralha na cozinha.

Tem brotado alguma coisa
a mais de nós nesta casa.
Tem brotado uma desconfiança
um dia; uma certeza em outro.
Tem brotado amor, sim, tem.
Tem brotado amor também.


 In. A Casa - Goiânia, 1992. 
Imagem retirada da Internet: violetas

Katherine Mansfield - Conto



A casa de bonecas





Quando a boa e velha sra. Hay voltou à cidade, depois de passar uns dias com os Burnells, mandou para as meninas uma casa de bonecas. Era tão grande que o entregador e Pat levaram-na só até o quintal e lá ela ficou, apoiada em dois caixotes de madeira, ao lado da despensa. Não haveria problemas; era verão. E o cheiro de tinta talvez já tivesse desaparecido na hora de levá-la para dentro. Pois, francamente, o cheiro de tinta que vinha da casa de bonecas (“Que gentileza da sra. Hay; extremamente gentil e generosa!”), sim, aquele cheiro de tinta era suficiente para deixar qualquer pessoa seriamente doente, na opinião da tia Beryl. Mesmo antes de tirar a aniagem. E quando isso aconteceu...

Lá estava a casa de bonecas, verde espinafre, escuro e viscoso, com toques de um amarelo brilhante. Suas duas chaminezinhas falsas, coladas no telhado, eram pintadas de vermelho e branco, e a porta, num reluzente verniz amarelo, parecia um pedaço de caramelo. Quatro janelas, janelas de verdade, eram divididas em vidraças por uma larga faixa verde. Havia ainda um pequeno alpendre, pintado de amarelo, com grandes gotas de tinta seca pendentes das bordas. 

Mas era uma casinha perfeita, perfeita! Quem se importaria com o cheiro? Era parte da alegria, parte da novidade.

“Abram depressa!”

O gancho na lateral estava bem preso. Pat forçou-o com seu canivete e toda a fachada da casa se abriu e – pronto, via-se, de uma vez, a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha e dois quartos. É assim que uma casa deve abrir! Por que todas as casas não se abrem desse jeito? É muito mais excitante do que ficar espiando por uma fresta da porta um mísero vestíbulo com uma chapeleira e dois guarda-chuvas! É isso – não é mesmo? – que a gente quer saber a respeito de uma casa no momento em que põe a mão na aldrava da porta. Talvez seja assim que Deus abra as casas na calada da noite quando Ele faz Sua ronda tranqüila com um anjo...

“Ooooh!” As meninas Burnell davam a impressão de estar fora de si. Era muito maravilhoso; era demais para elas. Elas nunca tinham visto nada parecido em suas vidas. Todos os cômodos tinham papel de parede. Havia quadros, pintados sobre o papel, até com molduras douradas.

Um tapete vermelho cobria todo o assoalho, com exceção da cozinha; lá havia cadeiras e poltronas forradas de veludo vermelho, na sala de estar, e verde, na sala de jantar; mesas, camas, com roupa de cama de verdade, um berço, uma lareira, um fogão, um armário de cozinha com pratinhos minúsculos e uma grande jarra. Mas o que Kezia gostou mais do que tudo, o que a impressionou demais, foi o lampião. Estava no centro da mesa da sala de jantar, um requintado lampião cor de âmbar, com cúpula branca. Tinha tudo para ser aceso, embora, é claro, não se pudesse fazê-lo. Mas havia alguma coisa dentro que parecia querosene e que mexia quando você chacoalhava.

As bonecas do pai e da mãe, estiradas, duras, como se tivessem desmaiado na sala de estar, e as duas criancinhas dormindo no andar de cima, eram realmente grandes demais para a casa de bonecas. Não combinavam com a casa. Mas o lampião era perfeito. Parecia sorrir para Kezia e dizer: “Eu moro aqui”. O lampião era de verdade.

As meninas Burnell andaram o mais rápido que podiam para chegar à escola na manhã seguinte. Estavam loucas para contar a todas as colegas, para descrever, para – bem – vangloriar-se de sua casa de bonecas antes que o sino tocasse.

“Quem vai contar sou eu”, disse Isabel, “porque sou mais velha. Depois vocês falam. Mas eu falo primeiro”.

Não havia como contestar. Isabel era mandona, mas sempre tinha razão, e Lottie e Kezia sabiam muito bem os poderes da primogenitura. Rasparam pelos canteiros de botões-de-ouro na beira da estrada e não disseram nada.

“E sou eu quem vai escolher as meninas que vão ver primeiro. A mamãe disse que eu posso.”

Pois tinha sido combinado que enquanto a casa de bonecas permanecesse no quintal, elas poderiam convidar as amigas da escola, duas de cada vez, para irem vê-la. Não poderiam ficar para o chá, é claro, nem circular por dentro de casa. Mas só ficar comportadamente no quintal, enquanto Isabel mostrava todas aquelas maravilhas e Lottie e Kezia assumiam um ar de contentamento...

Mas por mais que se apressassem, quando chegaram à cerca do pátio dos meninos o sino tinha começado a tocar. Elas apenas tiveram tempo de tirar o chapéu e entrar na fila antes que sua classe fosse chamada.

Não faz mal. Isabel tentou compensar o fato fazendo-se de importante e misteriosa e, cobrindo a boca com a mão, cochichou para as meninas que estavam perto dela: “Tenho uma coisa para contar no recreio”.

O recreio chegou e Isabel foi cercada. As meninas da classe dela quase brigavam para abraçá-la, para andar com ela, lisonjeá-la, ser sua melhor amiga. Ela juntou em torno de si uma corte e tanto sob os grandes pinheiros ao lado do pátio. Acotovelando-se, rindo ao mesmo tempo, as meninas se amontoavam. E as únicas que não entraram na roda foram as duas que sempre eram excluídas, as pequenas Kelveys. Elas sabiam que não deviam se aproximar das Burnells.

O fato era que a escola freqüentada pelas meninas Burnell não era em absoluto o lugar que seus pais teriam escolhido caso houvesse qualquer outra opção. Mas não havia. Era a única escola num raio de quilômetros. Em conseqüência, todas as crianças da vizinhança, as filhinhas do juiz, as filhas do médico, do dono da mercearia, do leiteiro, eram forçadas a se misturar. Isso para não falar que havia igual número de meninos grosseiros e malcriados. Mas a linha tinha que ser traçada de algum modo. E foi traçada nas Kelveys.

Muitas meninas, incluindo as Burnells, não tinham permissão nem de conversar com elas. Passavam pelas Kelveys com o nariz empinado e, como eram elas que estabeleciam os parâmetros no que se referia a padrões de comportamento, as Kelveys eram repelidas por todo mundo. Até mesmo a professora se dirigia a elas com uma entonação especial e reservava um sorriso especial para as outras meninas quando LilKelvey se aproximava de sua mesa com um ramalhete de flores de aparência lastimavelmente vulgar. Elas eram filhas de uma lavadeira muito enérgica e trabalhadora, que durante o dia ia de casa em casa. Só isso já era terrível. Mas onde estava o sr. Kelvey? Ninguém sabia com certeza. Mas todo mundo dizia que estava preso. Assim, elas eram filhas de uma lavadeira e de um presidiário. Que bela companhia para as outras meninas! Sem falar
na aparência.

Era difícil entender por que a sra. Kelvey as fazia chamar tanto a atenção. A verdade é que elas se vestiam com “trapos” que as pessoas para quem sua mãe trabalhava lhe davam. Lil, por exemplo, que era uma menina robusta, feiosa, sardenta, ia para a escola com um vestido feito com uma toalha de mesa de sarja verde da casa dos Burnells, com mangas de veludo vermelho da cortina dos Logans. Seu chapéu, empoleirado no alto da ampla testa, era um chapéu de mulher adulta, outrora propriedade da srta. Lecky, a funcionária do correio. A aba era revirada, na parte de trás, e era enfeitado com uma grande fita escarlate. Que figura! Era impossível não rir. E sua irmãzinha, Else, usava um vestido branco e comprido, mais parecido com uma camisola, e um par de botas de menino.

Mas qualquer coisa que a nossa Else vestisse ficaria estranho. Era uma pequerrucha com o cabelo cortado rente, de olhos enormes e solenes – uma corujinha branca. Ninguém nunca tinha visto ela sorrir; ela quase nunca falava. Vivia agarrada em Lil, segurando firme na barra da saia da irmã. Onde Lil ia, Else ia atrás. No recreio, na estrada que ia e vinha da escola, Lil ia na frente e Else vinha atrás, grudada nela. Somente quando queria algo ou quando perdia o fôlego, a nossa Else dava um puxão e Lil parava e se virava. As meninas Kelvey sempre se entendiam.

Agora elas rondavam por fora; não se podia impedi-las de ouvir. Quando as meninas se viraram com desdém, Lil, como sempre, deu um sorriso desenxabido, acanhado, mas a nossa Else apenas ficou olhando. E a voz de Isabel, cheia de orgulho, continuou contando. O tapete provocou grande sensação, como também as camas, com roupa de cama de verdade, e o fogão, que tinha até a porta do forno. Quando ela terminou, Kezia começou.

“Você se esqueceu do lampião, Isabel.”

“Ah, sim”, disse Isabel, “e tem também um lampião bem pequeno, feito de vidro amarelo, com uma cúpula branca, em cima da mesa da sala de jantar. Parece um lampião de verdade”.

“O lampião é o melhor de tudo”, exclamou Kezia. Ela achou que Isabel não estava valorizando suficientemente o pequeno lampião. Mas ninguém prestou a mínima atenção. Isabel estava escolhendo as duas que voltariam com elas aquela tarde para ver a casa de bonecas. Escolheu Emmie Cole e Lena Logan. Mas quando as outras ficaram sabendo que todas teriam uma oportunidade, foram só gentilezas para Isabel. Uma a uma, passaram o braço em torno da cintura de Isabel e afastaram-se com ela. Todas tinham um segredo para contar a ela. “Isabel é minha amiga.”

Somente as pequenas Kelvey foram embora esquecidas; não havia mais nada para elas ouvirem. Dias se passaram, e quanto mais meninas viam a casa de bonecas, mais sua fama se espalhava. Virou o assunto do momento, uma febre. A única pergunta que se fazia era: “Você já viu a casa de bonecas das Burnells? Oh, não é uma graça?”, “Você ainda não viu? Oh, é demais!”.

Até a hora do lanche era dedicada a falar da casa. As meninas sentavam-se debaixo dos pinheiros, comendo seus sanduíches de carne de carneiro e grandes fatias de pão de milho com manteiga. Enquanto isso, como sempre, tão perto quanto podiam, lá estavam também as meninas Kelvey, Else agarrada com Lil, ouvindo também, enquanto mastigavam seus sanduíches de geléia, embrulhados em papel de jornal, todo empapado com grandes manchas vermelhas.

“Mamãe”, disse Kezia, “posso convidar as Kelveys só uma vez?”.

“De jeito nenhum, Kezia.”

“Mas por que não?”

“Vamos mudar de assunto, Kezia; você sabe muito bem por que não.”

Finalmente todas viram a casa, com exceção delas. Naquele dia as meninas estavam um tanto sem assunto. Era a hora do lanche. Estavam sentadas sob os pinheiros e de repente, enquanto olhavam as Kelveys comendo seus sanduíches, à parte como sempre, sempre ouvindo, decidiram ser cruéis. Emmie Cole começou a cochichar.

“Quando crescer, Lil Kelvey vai ser uma criada.”

“Oh, que horror!”, exclamou Isabel Burnell, piscando para Emmie.

Emmie retribuiu a piscada de um jeito muito maldoso e concordou com Isabel como vira sua mãe
fazer em ocasiões assim.

“É verdade – é verdade – é verdade”, disse.

Então os olhinhos de Lena Logan brilharam. “Será que pergunto a ela?”, murmurou.

“Duvido”, disse Jessie May.

“Eu não tenho medo”, declarou Lena. De repente ela deu uma risada e se pôs a dançar diante das outras meninas. “Olhem! Olhem! Olhem para mim agora!”, disse Lena. E deslizando, flutuando, puxando um pé, escondendo o riso com a mão, Lena aproximou-se das meninas Kelvey.

Lil ergueu os olhos do lanche. Embrulhou rapidamente o resto. A nossa Else parou de mastigar. E agora?

“É verdade que você vai ser uma criada quando crescer, Lil Kelvey?”, perguntou Lena, com voz
estridente.

Silêncio mortal. Em vez de responder, Lil apenas deu aquele seu sorriso desenxabido e acanhado. Não pareceu se incomodar nem um pouco com a pergunta. Que fiasco para Lena! As meninas começaram a dar risos abafados. Lena não ia engolir aquilo. Pôs as mãos na cintura; e disparou.

“Pois é, seu pai está na cadeia!”, caçoou com desprezo.

Isso foi uma coisa tão espantosa de dizer que as meninas saíram de lá correndo, profundamente excitadas, loucas de alegria. Uma delas encontrou uma corda comprida e elas começaram a pulá-la. E nunca pularam tão alto, nunca correram para cá e para lá com tamanha rapidez, nem fizeram coisas tão ousadas como naquele dia.

No final da tarde Pat veio buscar as meninas Burnell com a charrete e elas se dirigiram para casa. Havia visitas. Isabel e Lottie, que gostavam de visitas, subiram para o quarto a fim de mudar de avental. Mas Kezia encaminhou-se furtivamente para os fundos da casa. Lá não havia ninguém e ela trepou nos grandes portões brancos do quintal e se pôs a balançar. Então, olhando para a estrada, viu dois pequenos pontos, que se tornavam cada vez maiores e caminhavam em sua direção. Agora conseguia perceber que um vinha na frente e o outro logo atrás. Agora dava para ver que eram as meninas Kelvey. Kezia parou de se balançar. Desceu do portão como se fosse sair correndo, mas hesitou. As Kelveys chegaram mais perto; ao lado delas caminhavam suas sombras, muito compridas, estendendo-se através da estrada com as cabeças nos botões-de-ouro. Kezia voltou a trepar no portão; tinha tomado uma decisão; balançou-se.

“Olá”, disse para as meninas Kelveys que passavam.

Elas ficaram tão surpresas que pararam. Lil deu aquele seu sorriso inexpressivo. A nossa Else ficou olhando. “Se quiserem podem entrar e vir olhar nossa casa de bonecas”, disse Kezia, pondo um pé no chão. Mas com isso Lil ficou muito vermelha e sacudiu a cabeça rapidamente.

“Por que não?”, perguntou Kezia.

Lil respirou fundo e disse em seguida: “Sua mãe disse para nossa mãe que você não deve falar com a gente”.

“Ah, bem”, disse Kezia. Não sabia que resposta deveria dar. “Isso não tem importância. Mesmo assim vocês podem entrar e dar uma espiada em nossa casa de bonecas. Venham. Ninguém está olhando.”

Mas Lil balançou a cabeça ainda com vigor. “Então vocês não querem?”, perguntou Kezia.

De repente Lil sentiu que alguém puxava sua saia. Ela voltou-se. A nossa Else a encarava com aqueles seus olhos enormes e quase implorava; ela queria ir. Por um momento Lil olhou para a nossa Elsie, cheia de dúvidas. Mas então a nossa Else voltou a puxar a saia dela. Deu um passoadiante. Kezia foi na frente. Como dois gatos de rua elas seguiram até o quintal onde estava a casa
de bonecas.

“Pronto!”, disse Kezia.

Houve uma pausa. Lil ofegava; sua respiração era quase um ronco; a nossa Else estava petrificada.

“Vou abrir para vocês”, disse Kezia, muito gentil. Ela soltou o gancho e as duas olharam para dentro.

“Aqui está a sala de estar e a sala de jantar; aqui é a...”
“Kezia!”

Oh, que susto elas levaram!

“Kezia!”

Era a voz da tia Beryl. Elas se viraram. Na porta dos fundos, estava a tia Beryl, olhando fixamente, como se não pudesse acreditar no que via.

“Como você se atreve a convidar estas meninas para vir ao quintal?”, disse com frieza, furiosa. “Você sabe, tanto quanto eu, que não tem permissão de falar com elas. Vão embora, meninas, retirem-se. E não voltem mais”, disse a tia Beryl. E andou até o quintal e, com um gesto brusco, espantou as meninas como se fossem galinhas. “Saiam imediatamente!”, disse, fria e orgulhosa.

Elas não precisaram que lhes dissessem duas vezes. Vermelhas de vergonha, encolhidas, Lil com os braços cruzados no peito, num gesto humilde, como sua mãe, a nossa Else, aturdida, atravessaram o grande quintal e esgueiraram-se pelo portão branco.

“Menina desobediente, má!”, disse tia Beryl asperamente para Kezia, fechando com um gesto brusco a casa de bonecas.

A tarde fôra terrível. Chegara uma carta de Willie Brent, aterrorizante, ameaçadora, na qual ele dizia que se ela não fosse encontrá-lo naquela mesma noite em Pulman’s Bush, ele viria até a porta de entrada da casa e perguntaria o motivo! Mas agora que ela assustara as miseráveis das Kelveys e depois de passar um bom pito em Kezia, seu coração estava mais leve. Aquela desagradável pressão desaparecera. Ela voltou para casa cantarolando.

Quando as Kelveys deixaram bem para trás a casa dos Burnells, sentaram- se para descansar em cima de um grande cano vermelho na beira da estrada. O rosto de Lil ainda queimava; ela tirou o chapéu e pousou-o sobre o joelho. As duas contemplaram sonhadoramente os campos de feno, o riacho, o curral, onde as vacas dos Logans esperavam para ser ordenhadas. O que elas estariam pensando?

Então a nossa Else aproximou-se e ficou bem junto de sua irmã. Mas agora já havia se esquecido daquela senhora brava. Esticou um dedo e deslizou-o pelo chapéu da irmã; sorriu seu raro sorriso.

“Eu vi a lampadinha”, ela disse, suavemente.

Então ficaram em silêncio outra vez.



In. Contos. Trad.:  Alexandre Barbosa, Carlos Eugênio Marcondes de MouraSão Paulo: Cosac Nayf, 2005.

Octavio Paz - Poema


                    
  
               ENTRE IR E FICAR


                       Entre ir e ficar hesita o dia,
                       de sua transparência enamorado.
                       
                       A tarde circular é já baía:
                       em seu quieto vaivém se mexe o mundo.
                       
                       Tudo é visível e tudo elusivo,
                       tudo está perto e tudo é intocável.

                       O lápis, os papéis, o livro, o vaso
                       abrigam-se na sombra de seus nomes.

                       Pulsar do tempo, latejar-me à fonte,
                       teimosa, a mesma sílaba de sangue.

                       A luz tece no muro indiferente
                       um espectral teatro de reflexos.
                       
                       Bem no centro de um olho me descubro:
                       não me fita, me fito em seu olhar.
                       
                       O instante se dissipa. Sem mover-me,
                       eu me quedo e me vou: sou uma pausa.


 Tradução de Anderson Braga Horta

Octavio Paz - Poema





ARCOS

         A Silvina Ocampo



Quem canta nas ourelas do papel?
De bruços, inclinado sobre o rio
de imagens, me vejo, lento e só,
ao longe de mim mesmo: ó letras puras,
constelação de signos, incisões
na carne do tempo, ó escritura,
risca na água!

         Vou entre verdores
enlaçados, adentro transparências,
entre ilhas avanço pelo rio,
pelo rio feliz que se desliza
e não transcorre, liso pensamento.
Me afasto de mim mesmo, me detenho
sem deter-me nessa margem, sigo
rio abaixo, entre arcos de enlaçadas
imagens, o rio pensativo.

Sigo, me espero além, vou-me ao encontro,
rio feliz que enlaça e desenlaça
um momento de sol entre dois olmos,
sobre a polida pedra se demora
e se desprende de si mesmo e segue,
rio abaixo, ao encontro de si mesmo.

1947

Tradução de Haroldo de Campos

Imagem retirada da Internet: homem

Francisco Perna Filho - Poema


SAGRADA CEIA




A imagem,
carcomida,
age,
na ilusão da mesa,
na solidão do prato,
comportando olhos
peregrinos
e santos.
A imagem
da amanhecida ceia
ainda traz em si
uma serena alma
amarelecida em prantos.
A imagem,
que carcomida age
colhendo pratos,
amarelecidos em prantos,
revisa a fome
de santos e peregrinos.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.105.
Imagem retirada da Internet: Profana ceia dos mendigos

Francisco Perna Filho - Poema


ASFIXIA




A cidade
a[corda].
No pescoço,
o im[posto].
Gasolina ou álcool,
não im[porta].
A cidade
sempre acorda,
no pescoço,
a corda.
Na cidade,
o posto.


In. Refeição. Goiânia: Kelps, 2001, p.79.
Imagem: cartapotiguar

Otto Lara Resende - Conto



O elo partido



Subitamente, não sabia mais como se ata o nó da gravata. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. Uma vez, outra vez — e nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele pedaço de pano dependurado no seu pescoço. Vagarosamente, tentou dar a primeira volta — e de novo parou, o gesto sem seqüência. Viu-se no espelho, rugas e suor na testa: a mão esquerda era a direita, a mão direita era a esquerda.

— Vou descendo — anunciou a mulher, impaciente.

— Escuta — disse ele forçando o tom de brincadeira. — Como é que se dá mesmo nó em gravata?

— Engraçadinho — e a mulher saiu sem olhá-lo.

Quanto tempo durou aquela hesitação? Essa coisa familiar, corriqueira, cotidiana — dar o nó na gravata. Uns poucos segundos, um minuto, dois minutos ou mais? O tempo da ansiedade, não o do relógio. Não fazia calor, e nas costas das suas mãos começou a porejar um suor incômodo. Assim como surgiu, na mesma vertigem, passou: logo suas mãos inconscientes se organizaram e, independentes, sem comando, ataram a gravata e o puseram em condições de, irrepreensivelmente vestido, sair de casa. Ia a um jantar.

Estimulado pelo uísque, desejoso de atrair a atenção dos circunstantes, ocorreu-lhe, no meio da conversa, contar o pequeno incidente pitoresco:

— Agora mesmo, em casa. Ao me vestir. Esqueci como é que se dá o nó da gravata.

E antes que despertasse qualquer curiosidade, uma chave se torceu dentro dele. O fato insignificante deixou de ser engraçado. Uma aflição mordeu-o no íntimo. Como uma luz que se apaga. Uma advertência. Um sinal que anuncia, que espreita e ameaça.

— Essa é boa — curioso ou simplesmente gentil, um dos ouvintes procurou estimulá-lo.

Mas o ter esquecido como se dá o nó da gravata já não era apenas um incidente pitoresco. Disfarçou o próprio desconforto e, grave, interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer como é que se ata a gravata fosse logicamente sucedido da incapacidade de contar.

Apenas um lapso, que pode acontecer com qualquer um. Tolice sem importância. E nem se lembrou mais, até que dias depois, achando graça, a mulher tirou-o da dificuldade: atou por ele a gravata desfeita na sua mão. Uma terceira vez ocorreu dois dias depois. “Estou ficando gagá”, pensou, entre divertido e irritado. Retirou-se do espelho e procurou com calma recuperar a inocência perdida. Pois era como ter perdido a inocência, de súbito autoconsciente.

Mas logo esqueceu e saiu para a rua, como todo dia. Pegou o carro e, autômato, foi até o edifício do escritório. Estava na fila do elevador, quando deu acordo de si. Era o terceiro da fila. Bem disposto, recém-banhado, cheirando à nova loção de barba, o estômago nutrido pelo recente café da manhã, olhava com magnanimidade o dia que o esperava, o mundo em torno. Pulsava nas suas veias sãs uma suculenta harmonia. Presente tranqüilo, futuro próspero. Confiava em si, confiava na vida.

Só o elevador demorava mais do que de costume, pequeno borrão na manhã alegre e amiga. Não fazia sentido aquela demora que, de repente, perturbou-o como um cisco no olho. Agarrado à pasta como se temesse perdê-la, verificou que o elevador continuava parado no sétimo andar, exatamente o do seu escritório. Queria não pensar em nada, apenas esperar como todo mundo, mas via com nitidez, como se estivesse de corpo presente no sétimo andar, um contínuo fardado a segurar a porta do elevador que se abria e se fechava por meio de uma célula fotoelétrica. Dois homens tentavam a custo enfiar dentro do carro uma mesa de escritório. Era a sua mesa, mas muito maior. Seus papéis pessoais, sua caneta, as gavetas devassadas.

Fechou os olhos, meio tonto, reabriu-os. A fila crescia, ninguém conhecido. Olhou a nuca do homem à sua frente: toutiço sólido, de cinqüentão próspero. Jurava que agora o elevador vinha descendo. Quis certificar-se e deu com a luzinha sempre acesa no sétimo andar. Outra vez, como se a tudo assistisse, viu o contínuo segurando a porta do elevador e dois homens de macacão tentando irritadamente encaixar lá dentro a mesa enorme. Na fila, ninguém dava mostra de impaciência. A rua ao sol lá fora — gente e carros passando — movimentava-se como todo dia. Pouco adiante, matinal, recém-florido, aparecia um trecho do jardim.

Mas o elevador continuava parado no sétimo andar. Retirou o lenço do bolso e, a pasta debaixo do braço, enxugou a fronte e o pescoço. Vinha-lhe de longe um desconforto a princípio moral — como se tivesse cometido uma falta grave que ali mesmo ia ser descoberta. Depois um mal-estar físico, como se tivesse perdido a carteira, alguma coisa que o diminuísse, uma vez desaparecida. Olhou o relógio de pulso, procurou conformar-se, esquecer que esperava. Há quanto tempo esperava o elevador? No sétimo andar, a mesa, a sua mesa, era grande demais para passar pelas portas que o contínuo continuava a imobilizar.

Dentro dele, um desejo minucioso de examinar-se. Como costumava fazer quando ia viajar. Arrumar a mala sem esquecer nada, um lenço sequer. Começava pela cabeça: pente, escova, loção. O aparelho de barba. As gravatas, as camisas, as cuecas. Peça por peça, ia passando tudo em revista. Mas naquele momento era como se tivesse esquecido qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos da fila cada vez mais numerosa.

Quando a revisão a que se submetia chegou aos pés, ocorreu-lhe que tinha se esquecido de calçar as meias. Tentou sorrir da dúvida disparatada. E queria lembrar-se, ter certeza das suas meias, do momento em que as calçara. Recompunha cada detalhe de tudo que tinha feito desde o momento em que acordara. A barba, o banho de chuveiro, todos os atos, que, automáticos, inauguravam um novo dia, um homem novo. Usava habitualmente só meias cinzas, azuis e pretas.

De que cor eram, naquele momento, as suas meias? Um desejo ardente de esticar uma perna, depois a outra, arregaçar as calças e olhar, comprovar. Mas o medo irracional do ridículo, como se toda a fila acompanhasse a sua preocupação e esperasse apenas um gesto de sua parte para vaiá-lo. Sorriu sem sorrir, o sangue estremeceu pela altura do peito até o pescoço. Lá em cima, no sétimo andar, interminável, continuava a luta para meter a imensa mesa no elevador — e era como se estivesse presente, a tudo assistia.

A obsessão agarrou-o: de que cor eram as meias, de que cor? As suas meias, as que usava naquele exato momento. De que cor eram? Procurou se lembrar das circunstâncias com que em casa se vestiu, sua rotina, uma cadeia de gestos repetidos inconscientemente. Mas agora precisava lembrar-se: as meias? Tinha vontade de suspender a calça e olhar, mas se continha. Nada o denunciava, um cidadão como outro qualquer, um cavalheiro, impecável, à espera do elevador, que todavia não se deslocava do sétimo andar — a luzinha continuava acesa. E ninguém, na fila aumentando, se impacientava. Como se só a ele coubesse quebrar o silêncio. Todos o observavam.

Até que foi invadido pela certeza cruel de que usava meias vermelhas, um grito de sangue na sua indumentária azul. A gravata era azul, podia ver. A camisa era branca. O terno era azul. Mas as meias. As meias berrantemente vermelhas tornavam os seus pés alheios, episcopais. Estava de pé sobre pés estranhos, sapatos quem sabe de fivela e meias cardinalícias. Seriam rubras, eram, podiam ser?

Enxugou o suor no rosto, agarrou-se aflito à pasta como se, para existir, para continuar na fila, precisasse dela. A fila silenciosa, irritantemente tranqüila, aguardava um sinal para protestar, começar o motim. A manhã perfeita, luminosa. Lá fora, os carros e as pessoas passando. Mas as meias eram inabsorvíveis. Onde é que fora arranjar aquele par de meias, santo Deus? Ocultas ainda sob as calças, ameaçavam vir a público, denunciá-lo. Agora tinha definitivamente certeza: um escândalo, ridículo, um vermelho-vivo como o sangue fresco de um touro.

Súbito, como se tivesse estado distraído, ou dormindo, o elevador escancarou a porta no andar térreo. Sentiu-se paralisado, preso ao chão, incapaz de locomover-se como as pessoas à sua frente, como os que se postavam às suas costas. Procurava, pasmo, os dois homens de macacão, o contínuo uniformizado — e a mesa, a sua mesa. Mas só via o elevador, como sempre, como todos os dias. Foi preciso quase que o empurrassem, as grotescas meias vermelhas, para que ele, morto de vergonha, sem poder olhar os próprios pés, se animasse a entrar no elevador.

Saltou no sétimo andar e, por um triz, ia deixando cair a pasta. Trancou-se na sua sala. A mesa, devolvida às dimensões normais, continuava lá, imóvel. Finalmente tomou coragem para verificar. Suspendeu as calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo as suas meias eram azuis. E os sapatos voltavam a ser os seus sapatos. Movia-se outra vez com os próprios pés. O telefone o chamava. Foi falar ao telefone. E o dia prosseguiu, na sua confortável rotina. Nem de longe podia pensar em contar para alguém. Não havia o que contar.

O tempo passou. Nada fora do comum aconteceu nas semanas seguintes. A não ser um pequeno desmaio da memória: esquecera o nome de um amigo de infância. Teimoso, idéia fixa, passou horas tentando lembrar. Não podia dormir sem que lhe viesse o nome que escapava. Uma falha na cadeia lógica e vulgar das lembranças que cercavam aquele antigo colega de ginásio. Puxando pela memória, reavivou pormenores há muito sepultados pelo tempo. Mas o nome. O nome não lhe ocorria. Sob a língua. Ou na ponta da língua, mas inarticulado, desfeito. Como a gravata, trapo inútil incapaz de organizar-se no nó. Tinha de esquecer que esquecera, para então recuperar, espontâneo, o que com esforço não conseguia arrancar de dentro de si mesmo. Tudo perfeito, alerta, mas um pequeno colapso insistente, inexplicável. Via a cara do companheiro, ouvia-lhe a voz, podia descrevê-lo traço por traço. Mas o nome. O nome por atar. Dormiu frustrado, mais aborrecido do que seria natural diante de lapso tão inexpressivo.

— Gumercindo — no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.

Amnésias assim, sabia, acontecem a todo mundo. Não chegam a ser tema de conversa. Deu de ombros, não comentou nem com a mulher. Dois ou três dias depois, porém. Numa noite em que se recolheu mais cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à cama e não conseguia deitar-se a cômodo, como toda noite.

— Como é mesmo que eu durmo? — queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono, insabida. Probleminha idiota, mas que o desorganizava mentalmente e súbito o lançava numa aflita perplexidade física. Deste lado: não era. Virou-se do outro lado: também não era. Estendeu-se de costas: as mãos sobravam, os braços não se incorporavam à rotina. Como distribuir o corpo na cama? Cruzou os braços no peito e sentiu-se estranho, ridículo. Cruzou as mãos e pareceu sinistro, fúnebre. Era como se antecipasse o defunto que não queria ser. Angustiante idéia da morte.

Até que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera dar o nó na gravata. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um episódio ao outro. Nada de particularmente alarmante, só uma ponta de grotesco. Vexame. Ajeitou o travesseiro, a cabeça alta demais. Afastou o travesseiro e enfiou a cara no colchão como se procurasse com alívio uma forma de sufocação. Insustentável, esticou as pernas e dividiu-se em dois. Recolheu as pernas, dobrou os joelhos, mas ainda assim não conseguiu retomar a naturalidade. Buscava um ponto de equilíbrio e não o achava. Seu corpo exigia um prumo inencontrável. De barriga para baixo, a cabeça sobrava, pesava, descomprometida. Não era assim. Nunca foi assim. E o tempo passava; o sono não vinha. Sentado na cama, passou a mão pelos cabelos ralos e procurou controlar-se. Que é que estava acontecendo? Ansiedade sem sentido, tolice. Decidiu recomeçar do princípio e ainda sorriu do próprio embaraço. Tinha a sua graça. Um cidadão morto de sono esquecer como é que costuma dormir. Virou a cabeça para a esquerda. Para a direita. Para a esquerda. Para a direita. A cabeça sobejava mesmo. Num princípio de tonteira, a cabeça cresceu de volume e desprendeu-se do corpo, que agora lhe parecia estranho, como se não fosse dele. Outra vez esticado, recolheu as pernas, dobrou os joelhos na altura da barriga. Enfiou as mãos entre os joelhos, enroscado em si mesmo, fetal. Suportou aquela disciplina por alguns minutos; resistindo ao desejo de se levantar, fugir da cama, do sono, de si mesmo. Vontade de esquecer-se, abandonar o próprio corpo, com que já não se sentia solidário.

— Como é mesmo que eu durmo? Como é raios que eu sempre dormi em toda a minha vida? — e não se sentia anatomicamente confortável, como se tivesse perdido uma chave sem qualquer importância — até perdê-la.

Como todas as noites, serena, abandonada, sem arquitetura, a mulher dormia ao seu lado. Impensável acordá-la para perguntar como é que ele dormia. Ficaria uma fera com a brincadeira sem graça. Ou ia pensar que estava louco. Pé ante pé, levantou-se no escuro e foi até a copa. Tudo rigorosamente normal. De pé, seu corpo era do tamanho de sempre, articulado. Abriu a geladeira — a luz da geladeira rasgou um cone de claridade na copa — e bebeu sem sede um copo d’água. Só percebeu que estava descalço quando pisou nos ladrilhos do banheiro social. Sem acender a luz, o medo de não se ver no espelho. O medo de não se reconhecer arrepiou-o. Outra cara, infamiliar, ou quem sabe sem cara. Acendeu a luz: afinal era ele mesmo, banalmente. Com alívio, reapertou a calça frouxa do pijama. Saiu do toalete sem apagar a luz e, outra vez na copa, tomou um comprimido para dormir e, com a mão trêmula, levou um copo d’água para o quarto. A mulher dormia tranqüila. Todo mundo dormia. Devagarinho, sem alterar a respiração, meteu-se debaixo dos lençóis, de costas, os olhos fechados.

E começou a flutuar no espaço. Abria os olhos, continuava a boiar, mais baixo, mais baixo, até chegar ao nível da cama. Fechava os olhos e o jogo recomeçava. Ora só o corpo, girando circularmente, subindo, descendo. Ora o corpo e com o corpo a cama, rodando depressa, mais depressa. Abria os olhos, parava. Mudou de posição: de bruços, como no seu tempo de criança. A mãe lhe trazia o xarope no meio da noite e lhe recomendava que se deitasse de bruços, para vencer o acesso de tosse. Antigamente. Mas agora o sono não vinha. A ponta do sono, inagarrável. O sono desfeito como um novelo amontoado, sem começo nem fim. Sem nó.

Pacientemente, deitou-se do lado direito. Depois do lado esquerdo. Não insistiu na postura: encolheu as pernas, esticou os braços. Um braço recolhido e o outro estendido ao longo do corpo. Não reencontrava a perdida intimidade consigo mesmo. Não sabia mais deitar-se e dormir. Ficou quieto, tentando esquecer, sem pensar. Deflagrada, a insônia recusava-se a apagar dentro dele a sua luz amarela. Desejo de absorver-se, reorganizar-se, pedaço por pedaço. Membro por membro. Reintegrar-se. Esquecer-se para dormir. Recostado contra o travesseiro, meio sentado, a noite tinha ancorado para sempre num porto de fadiga e torpor. Noite longa, lenta, oleosa, de silêncio e vácuo.

Um chinelo pendendo do pé. Cochilou na cadeira de balanço, como um agonizante, afinal entregue, que sem convicção espera o amanhecer. Despertou com o corpo dolorido, os pés inchados — na árvore da rua a algazarra dos pardais despertos. O dia clareando, libertou-se da insônia e se meteu na cama até a hora do costume.

Dia estafante, devolvido à rotina como se nada demais tivesse acontecido. Só à noite contou o caso, a insônia, para a mulher, que ouviu calada, irrelevante. Mas não contou o que agora lhe parecia absurdo: esquecer-se, como quem perde uma chave, de como deitar-se para dormir. Era um segredo e uma ameaça. E à distância de algumas horas, remoto como uma experiência alheia.
Naquela mesma noite levou para o quarto e para a cama o temor de que tudo ia se repetir. Pegou um livro, mas não conseguia prestar atenção à leitura. Ligou o rádio. Demorou-se no banheiro. Entrou e saiu do quarto, cortou aplicadamente as unhas dos pés. Ao espelho, observou as rugas nos cantos dos olhos, o cabelo ralo. Com uma pinça, tirou uns fios mais espessos das sobrancelhas. Espremeu os cravos do nariz e arrancou dois ou três cabelos encravados da barba. Queria afastar a lembrança da véspera. Distrair-se.

E dormiu naturalmente, como todo dia. O cotidiano refeito, as noites tranqüilas, repousantes. Até que uma semana depois:

— Esqueci como é que eu durmo — disse ansioso à mulher.

— Bobagem — ela resmungou, morta de sono.

— Minha posição na cama.

— Deita e dorme — disse a mulher imperativa, sem olhá-lo.

Foi a primeira insônia completa de sua vida. Noite branca, hora a hora, minuto após minuto, segundo por segundo. Virava e revirava-se na cama, esbarrava no mesmo desconforto. A vida deixava de fluir. Uma parada, um branco, uma ausência. A falta de uma ponte. Um elo perdido. Levantava-se, procurava esquecer, desligar-se daquele segredo comprometedor. Ligar as duas pontas do que sempre fora ao que devia continuar sendo, sem interrupção. Fumou cigarro atrás de cigarro. Porque não queria fumar fumava mais. Andava pela casa. Olhava pela janela a rua — a calçada vazia, a árvore, as lâmpadas acesas. Pensou, lembrou, repensou, relembrou. Cruel, a noite vagarosa, a interminável noite ancorada. E a sua pequena desprotegida solidão, palpável, aborrecido plantão para nada. Estar só e acordado o fazia mais só, mais acordado. Velava a si mesmo. Tentou dormir no sofá da sala, mas nem o sofá nem a cama acolhiam naturalmente o seu corpo, o seu sono. Dormir era perder a própria companhia.

O dia claro, alto sol, a casa restituída à sua visão familiar, a cozinha e a copa recendendo ao café fresco, fez a barba, tomou banho e saiu. Foi trabalhar — a incomunicável insônia, de que à luz do sol se envergonhava. Era inverossímil. E era preciso guardar o segredo. Como se escondesse um malfeito infantil, sua culpa.

— Que é que há com você? — a mulher deu enfim sinal de perceber.

— Nada.

— Então dorme.

O horror de ir para a cama. E a impossibilidade de contar, partilhar sua vergonha. Ficou mais sozinho. Já não era igual a todo mundo. Tinha medo e orgulho — um homem diferente. Sua singularidade ameaçava, mas consolava também. Sentia-se mais próximo de si mesmo.

— Por que você não consulta um médico? — a mulher desconfiava.

Pequenos derrames imperceptíveis — leu numa revista vagas informações sobre problemas que os neurologistas estudam. Falhas de memória, hiatos convulsivos. Pensou em consultar mesmo um clínico: medir a pressão, o sangue. Mas não gostava de médico e confiava na saúde de ferro. Deixou de preocupar-se com o nó da gravata. Esqueceu a insônia. Ridículo contar a sério que, na hora de dormir, já não sabia como se deitar. Não tinha importância.

Uma tarde, ao falar pelo telefone. Era com o sócio, com quem se dava bem, prosperavam. A princípio apenas um mal-estar indefinido. Depois não conseguia se lembrar da cara do sócio. A voz conhecida, a conversa nítida, o riso de sempre, os mesmos cacoetes — mas como era mesmo a sua fisionomia? Desligou o telefone e teve a impressão de que estava pálido. Apertou a cabeça entre as mãos. Fechou e abriu os olhos, pontinhos volantes. Como é a cara dele? Transpirava como se estivesse numa sauna. E aquele vazio: a cara, como era a cara? A cara sonegada, escamoteada como num passe de mágica. Tudo o mais era como de costume, mas a penetrante sensação de aviso o ameaçava. Ansioso sinal, plano inclinado.

Trancou-se no banheiro e lavou várias vezes o rosto. Precisava refrescar-se, afogueado. Um frio fogo o queimava. No entanto, refletida no espelho, sua cara normal, até favorecida. Menos rugas, as entradas da testa menos cavadas. Seu definido perfil: era ele mesmo, sem qualquer alteração. Como todo mundo, tinha uma fisionomia pessoal e intransferível. Mas o sócio — como era o sócio? Estúpido vazio. Sabia-se despojado de qualquer coisa essencial e, pela primeira vez, frágil, desprotegido contra o que podia acontecer, teve medo, tremeu de medo. Era um compromisso que não queria aceitar, mas de que não conseguia desvencilhar-se. Precisava apelar para alguém, pedir socorro. Recuar do abismo, mudar de rumo, rejeitar o que podia vir, o que sobrevinha, iminente, incontornável — e não tinha nome, nem configuração.

Desligado de tudo, sem interesse pelo trabalho, foi para casa mais cedo. A casa podia protegê-lo. Leu sem pressa o jornal e ligou a televisão. Era um homem normal, um homem como qualquer outro, mas, por trás dos seus gestos, de sua normalidade, um vazio o convocava. Telefonou para a casa do sócio, não o encontrou. Desejo de sair para a rua, ver gente, cada qual com seu perfil. Ver o sócio, recuperá-lo — o que só foi possível no dia seguinte, quando se avistaram no escritório.

— Nunca me viu? — por um momento o sócio pareceu estranhar a maneira como ele o fixava.

Queria e já não podia contar. E não poder contar o isolava definitivamente, como se, a partir dali, tivesse mudado de lado, passado para a outra margem. Dava adeus ao que vinha sendo, a tudo que era — ao dia-a-dia, aos negócios, ao confortável cotidiano. Mas lutava. Para qualquer nova emergência, não seria apanhado desprevenido. Obsessivamente, arquivava, armazenava traço por traço do sócio, seu rosto de sempre, inesquecível, doravante inescamoteável.

Uma tarde muito quente, no escritório, o ar-condicionado ronronando, vinha da rua exaltado, feliz com o resultado de um negócio que há semanas se arrastava, quando precisou telefonar para a mulher. Ao discar — lembrava-se do número, claro — deu por falta de alguma coisa. Um pássaro que de repente levanta vôo, uma paisagem que se oculta por trás de um obstáculo, um perfume que se esvai. Algo que se interrompe, curto-circuito na corrente elétrica. Uma ficha que desaparece. Ao alcance da mão, habitual, mecânico, um objeto que se subtrai — uma caneta, um par de óculos, uma anotação. Do outro lado da linha, na sua casa, o telefone chamava.

— Alô — disse ela.

Uma leve tonteira, como se levitasse, arrebatou-o. Perplexo, não aceitava o próprio silêncio e, para libertar-se, desligou. Sua mulher, não se lembrava da própria mulher. Seu nome, seu rosto — tudo permanecia a uma distância inatingível. Lá longe existia, não mais ao seu alcance. Entre ele e o que naturalmente sabia, seu patrimônio, um elo partiu-se, treva opaca, ausência. Mecanicamente, tirou a gravata e de pé, como num teste decisivo, refez o laço. Perfeito. Mas sua mulher. Às pressas, sem despedir-se, saiu imediatamente para casa.

— Chegou cedo — disse ela. — Alguma coisa?

— Dor de cabeça — ele disfarçou e, ao olhá-la, se convenceu do absurdo que era ter esquecido. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto, seu nome.

Trancou-se no quarto, espichou-se de costas na cama e leu de cabo a rabo o jornal da tarde. Uma incômoda sonolência fechou-lhe os olhos. A noite caiu sem que percebesse. Acendeu a luz da cabeceira e retomou o jornal como se o lesse pela primeira vez. Voltou à primeira página. Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Lia sem ler, desligado. Queria estranhar, alarmar-se, mas era como se tivesse sido sempre assim. E a certeza de que assim seria sempre, sem volta possível. Deixou cair o jornal no chão e, esticado na cama, sem qualquer protesto, acompanhava com os olhos uma pequena bruxa a cabecear tonta contra o teto.

— Que é que você tem? — até que enfim a mulher veio chamá-lo.

— Nada — respondeu, e estava perfeitamente em paz, resignado.

Brancas paredes despojadas, largo silêncio sem ecos. Desprendera-se de tudo. A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar.

— Quem sou eu? — ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.


In. Pompas do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1975.
Imagem retirada da Internet: elo partido

Otto Lara Resende - Crônica



Vista cansada 



Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.



In. Folha de São Paulo, 23 de fevereiro de 1992
Imagem retirada da Internet: vista cansada

Augusto Meyer - Poema



Gaita


Eu não tinha mais palavras,
Vida minha,
Palavras de bem-querer;
Eu tinha um campo de mágoas,
Vida minha,
Para colher.


Eu era uma sombra longa,
Vida minha,
Sem cantigas de embalar;
Tu passavas, tu sorrias,
Vida minha,
Sem me olhar.


Vida minha, tem pena,
Tem pena da minha vida!
Eu bem sei que vou passando
Como a tua sombra longa;
Eu bem sei que vou sonhar
Sem colher a tua vida,
Vida minha,
Sem ter mãos para acenar,
Eu bem sei que vais levando
Toda, toda a minha vida,
Vida minha, e o meu orgulho
Não tem voz para chamar.




In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet: janela

Jorge de Lima - Poema




Pelo silêncio



Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:


pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;


pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,


vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.





In. Jornal de Poesia
Imagem retirada da Internet:musa


Leia também

Valdivino Braz - Poema

Soldado ucraniano Pavel Kuzin foi morto em Bakhmut  - Fonte BBC Ucrânia em Chamas - Século 21                               Urubus sobrevoam...