Amadeus Amado - Poema


vitr.jpg
Miragem


Pura miragem,
esta tarde:
o vermelho ilude
os teus olhos;
nada me faz entristecer.
Só o vento, aqui,
é verdadeiro.
Tombam homens,
mansões,
torres
e sonhos.
Eu permaneço firme,
fincado,
contemplando os teus olhos:
vermelhos
e ausentes.



Imagem retirada da Internet: ventania

Mário Jorge Bechepeche - Ensaio Crítico


             Foto by Sinésio Dioliveira

Peripécias sagazes de Valdivino Braz


"O Gado de Deus”, de Valdivino Braz, pode ser considerado uma das referências insignes do romance brasileiro




A pertinácia escritural de Valdivino Braz é um cenário de incontido jorro fervilhante e contínuo de galopes fráseos, de lépidos e desvairados petardos estruturais, linguísticos; enfim, um perfilamento e culminação de um remodelismo conjuntivo de décadas literárias. A prosa, com “Cavaleiro do Sol” (1977), e a poesia, “As Faces da Faca” (1978), ressentem-se do assanho impactador de neófito que assoma os horizontes deslumbrantes e irresistíveis da criação literária, mas ainda subjugado pelo imediatismo das temáticas e das influências de autores impregnantes e irresistíveis (como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Lêdo Ivo.) que ainda não revelam aquele seu futuro buril raiado que ele instauraria nas publicações posteriores, fantasticamente aguçado, lépido, mordaz, joyceano. Contudo, não se pode negligenciar, além da perpetrante capa de Laerte Araújo para “Cavaleiro do Sol” (ele que sempre acrescenta arte à estetização dos autores), a presença de alvissareiro embrião de forte lampejo estilístico já literariamente representativo nos contos “A Face Oculta da Maldade”, “Que se Passa com Joana?” e “Cavaleiro do Sol”. Nestes, a dotação de linguagem, ao manejar o tema, se lhes cai bem.

Com a forma (estilização), com a fôrma (a palavra, a frase), com a temática múltipla e inumerável, expressando-se por um modelismo inesgotável como arrepanhamento, intertextuação, intertextualidade, realismo mágico, criptografia, etc., Valdivino Braz faz de “O Gado de Deus” (2009), seu premiado romance, uma plataforma de dúcteis plasmações fráseas de arranque ágil e trepidante, um jogo galhofo, satirista, de efeitos fônicos e signóticos, de diletante efeito malabarista na narração com que a sequência dos topos em profusão provê perfeita e admiravelmente uma ginástica concomitante de imagens e ideias, impondo-nos a impressão de que ele faz do texto, à Joyce e à Faulkner, um boneco de mola que ele malemoleja e ventriloqueia a seu bel-prazer. Irrompe o romance com rupturas estruturais, fazendo o primeiro capítulo (como Josué Montello em “Labirinto de Espelhos”) que começa, assim, o romance no prefácio e daí se solta num ensaísmo literário que arrola as pugnas epistemológicas do universo das letras, da política, da música, etc., etc., e que vai vazando todo o livro.

Contudo, como ocorre na disparada do estouro da boiada, ele, triturando na máquina cinematográfica captadora de painéis da vida e da História, sua estilística liquidificadora e o seu excepcional poder mimetizante de alheias estilísticas intertextualizadas, permite que uma dialética escritural verdadeiramente fantástica se metamorfoseie em intertextualidades com estilos de autores hoje ícones de máxima genialidade na Literatura Universal, como Dante, Eliot, Joyce, Drummond, João Cabral de Melo Neto, João Guimarães Rosa. Sem dúvida, “O Gado de Deus” já pode ser considerado uma das referências insignes do nosso romance (goiano e brasileiro) e até um palatíssimo repasto para degustação internacional.

Superação dos mitos

Tal como já ocorrera com a sua poesia atual, na prosa recente também Valdivino Braz enseja a superação de alguns mitos que mantivera em “O Gado de Deus” e na esteira poética passada. Intenta, daí, a superação de adoções de ícones das fronteiras entre semiótica e linguística e suas crias, alcançando nos contos de “Morcegos Atacam o Vampiro” um retorno a uma linearidade mas que, sob seu vigilante tirocínio de conscientização do alcance estético sempre de acurácia genial, desata a prosa e fá-la escorrer em flexibilíssima e fluídica dialética, jocosa de psicodelismo e avivada de mordacidade espicaçante sobre as eternamente incorrigíveis mazelas da bicharada humana.

No levantamento de moldes estilísticos, não se podem omitir alguns caracteres do senso de obra aberta com que ritualiza seus textos: na fraseologia, a miúdo, as criptografias emergem fazendo o personagem assumir a narrativa, assim roubando-a do narrador (autor), nas páginas 72 e 73; a técnica operatória começa a sessão de cinema, sob um véu de lantejoulado realismo mágico, no conto “O grito dos mutilados” (página 35), em que, além desses tópicos (também presentes em “Devoções de Dona Dalva”), insere-se o ensaísmo literário, e só nele e em Heleno Godoy, este cânone aparece nos contos até então publicados.

Finalmente, entre outras aferições, contos como “A Crespa Flor das Pernas”, “Rio Arrependido”, “A Vingança de Zé Divino”, cuja estilização corre como prata líquida sobre a página, podem muito bem, pela refulgência e esplendor das narrativas, ser alçados ao panteon nacional do mais relevante senso antológico. E Valdivino Braz assim também, pelo conjunto de tão significante literatura no Brasil, na galeria de consagrações universais.


Mário Jorge Bechepeche é médico e crítico literário, autor do livro “O Senso de Obra Aberta na Literatura e o Modelismo Conjuntivo da Atualidade” (1º volume).

Este texto foi originalmente publicado no Opção Cultural



Cecília Meireles - Poema


Primeiro Motivo da Rosa



Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.

Imagem retirada da Internet: Cecília Meireles

Cecília Meireles - Poema


Timidez 



Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

- mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

- palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

- que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

e um dia me acabarei.



Imagem retirada da Internet: Cecília Meireles

Sinésio Dioliveira - Poema


Buscando a eufonia




Buscando a eufonia
das cores da música
que a poesia canta,
minha lingu'estica
minha língu'ag'em
busca do mel poético
que há nas coisas.

Buscando a eufonia
das cores da música
que a poesia canta,
faço serem suaves
os pleonasmos viciosos,
hiatizo um ditongo,
ditonguizo o hiato.




Imagem retirada da Internet: O Mel

Sinésio Dioliveira - Poema


Nervo na flor da pele


O nervo
na flor da pele
no fundo do vale
a fúria expele
o furor deságua
e enxágua o suor
carnal dos dois.

O biquini de renda
a flor, a fenda
caminho que o espinho
se enfia e se afia
ferindo o vórtice voraz
que afaga o afã
da fome da faca.

O nervo
na flor da pele -
estrela de pelos negros -
ate-nua a agonia da pele
bebendo o suor da outra
estendida do lençol.

Carlos Drummond de Andrade - Poema


    Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


Imagem retirada da Internet: Carlos Drummond de Andrade 


Pablo Neruda - Poema



Gosto quando te calas


Gosto quando te calas porque estás como ausente
e me escutas de longe; minha voz não te toca.
É como se tivessem esses teus olhos voado,
como se houvesse um beijo lacrado a tua boca.

Como as coisas estão repletas de minha alma,
repleta de minha alma, das coisas te irradias.
Borboleta de sonho, és igual à minha alma,
e te assemelhas à palavra melancolia.

Gosto quando te calas e estás como distante.
Como se te queixasses, borboleta em arrulho.
E me escutas de longe. Minha voz não te alcança.
Deixa-me que me cale com teu silêncio puro.

Deixa-me que te fale também com. teu silêncio
claro qual uma lâmpada, simples como um anel.
Tu és igual a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão remoto e singelo.

Gosto quando te calas porque estás como ausente.
Distante e triste como se tivesses morrido.
Uma palavra então e um só sorriso bastam.
E estou alegre, alegre por não ter sido isso.



Tradução :Domingos Carvalho da Silva


In.20 Poemas de Amor e uma canção desesperada.Rio de Janeiro: José Olímpio Editora,1974.
Imagem retirada da Internet: silêncio

Pablo Neruda - Poema



Todos



Eu talvez eu não sei, talvez não pude,
não fui, não vi, não estou:
― que é isto? E em que Junho, em que madeira
cresci até agora, continuarei crescendo?

Não cresci, não cresci, segui morrendo?

Eu repeti nas portas
o som do mar,
dos sinos,
eu perguntei por mim, com encantamento
(com ansiedade mais tarde),
com chocalho, com água,
com doçura,
sempre chegava tarde.
Já estava longe minha anterioridade,
já não me respondia eu a mim mesmo,
eu me havia ido muitas vezes.

Eu fui à próxima casa,
à próxima mulher,
a todas as partes
a perguntar por mim, por ti, por todos
e onde eu estava já não estavam,
tudo estava vazio
porque simplesmente não era hoje,
era amanhã.

Porque buscar em vão
em cada porta em que não existiremos
porque não chegamos ainda?

Assim foi como soube
que eu era exatamente como tu
e como todo mundo.


Tradução: Luiz de Miranda

In. Últimos poemas. Porto Alegre: L&PM Editores,1983. 
Imagem retirada da Internet: porta

Ulisses Tavares - Poema



Esquizo




Tem um cara dentro de mim
Que faz tudo ao contrário:
Não temo amar, ele se borra
Sou esperto, ele é otário
Não amolo ninguém, ele torra
Acredito em tudo, ele é ateu
Sou normal em sexo, ele tarado
Agito sempre, ele fica parado
sou bacana, ele escroto
quem me faz infeliz e torto
É sempre ele, nunca fui eu.

Imagem retirada da Internet: duplo

Braulio Tavares - Poema



A coisa





Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com pernas que ela terá de crescer de si própria;  
e que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e metonímias e quarks e transistores e estames
e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...  
Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando
com meus olhos de homem, me sorrindo
com tantas bocas de mulher, me envolvendo
com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu quero que essa coisa existisse, assim como  
eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa criada, cobra criante, serpente criança,
criatura sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada pela linha brusca do seu até-aqui
Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá  
como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,  
e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.



In. ANTOLOGIA SONORA – Poesia Paraibana Contemporânea. João Pessoa: Edições O Sebo Cultural, 2009. - Fonte: Antônio Miranda
Imagem retirada da Internet: coisa

Francisco Perna Filho - Poema


Prece 



Afasta de mim,
meu Deus,
este cinza dos olhos,
a lonjura da esperança
e o declive do desengano.
Não permitas
que a zombaria seja fato
nesta tarde,
mas que o afeto
escandalize todo o resto do dia.
Sobriedade, Senhor,
é o que eu peço,
para compor esta elegia
em louvor às ruas desertas,
aos cais abandonados,
e  às ausências perpetuadas.


Imagem retirada da Internet: cais abandonado











Hermann Hesse - Poema


JUNHO EM DIA DE VENTO


O lago está parado feito vidro.
Na alcantilada encosta da colina
ondula em prateado a relva fina.

Lastimosa e com seu temor da morte,
grita no ar uma ave de arribação
cambaleando em curvas indecisas.

Voando para cá, vem do outro lado
um som de foice e um forte olor do prado.


In. Andares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.57.
Imagem retirada da Internet: Lago Llanquihue

Ferreira Gullar - Poema





Cantiga para não morrer     


Quando Você for se embora
moça branca como a neve
me leve
me leve        
Se acaso você não possa
me carregar pela mão
Menina branca de neve
me leve no coração
Se no coração não possa
por acaso me levar
Moça de sonho e de neve
me leve no seu lembrar
e se aí também não possa 
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento
Moça branca como a neve
me leve no esquecimento




Pablo Neruda - Poema


Foto de um velho navio chinês
FAREWELL 





Desde o fundo de ti, e ajoelhado
um menino triste, como eu, nos olha.
Pela vida que arderá nas suas veias
teriam que amarrar-se nossas vidas.
Por essas mãos, filhas das tuas,
teriam que matar as minhas mãos.
Pelos seus olhos abertos na terra
verei nos teus lágrimas um dia.


Eu não o quero, Amada.
Para que nada nos amarre
que nada nos una.
Nem a palavra que perfumou tua boca
nem o que disseram as palavras.
Nem a festa de amor que não tivemos,
nem os soluços junto à janela.


(Amo o amor dos marinheiros
que beijam e partem.
Deixam uma promessa.
Não voltam nunca mais.
Em cada porto uma mulher espera:
os marinheiros beijam e partem.
Uma noite deitam-se com a morte
no leito do mar.


Amo o amor que se reparte
em beijos, leite e pão.
Amor que pode ser eterno
ou que pode ser fugaz.
Amor que quer libertar-se
para voltar a amar.
Amor divinizado que se chega
amor divinizado que se vai.)

Já não se encantarão meus olhos nos teus,
já não abrandará junto a ti minha dor.
Mas onde quer que vá levarei o teu rosto
e onde quer que vás levarás a minha dor.

Fui teu, foste minha. Que mais? Juntos demos
uma volta no caminho por onde o amor passou.
Fui teu, foste minha. Tu serás daquele que te amar,
do que colher no teu jardim o que eu semeei.

Vou-me embora. Estou triste: estou sempre triste.
Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.
... Do teu coração diz-me adeus um menino.
E eu digo-lhe adeus.


Imagem retirada da Internet: velho navio

Fagundes Varela - Poeta




Juvenília VII


Ah! quando face a face te contemplo,
E me queimo na luz de teu olhar,
E no mar de tua alma afogo a minha,
E escuto-te falar;

Quando bebo no teu hálito mais puro
Que o bafejo inefável das esferas,
E miro os róseos lábios que aviventam
Imortais primaveras,

Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo
Porque pressinto as garras da loucura,
E me arrefeço aos gelos do ateísmo,
Soberba criatura!

Oh! eu te adoro como a noite
Por alto mar, sem luz, sem claridade,
Entre as refegas do tufão bravio
Vingando a imensidade!

Como adoro as florestas primitivas,
Que aos céus levantam perenais folhagens,
Onde se embalam nos coqueiros presas

Como adoro os desertos e as tormentas,
O mistério do abismo e a paz dos ermos,
E a poeira de mundos que prateia
A abóbada sem termos! ...

Como tudo o que é vasto, eterno e belo;
Tudo o que traz de Deus o nome escrito!
Como a vida sem fim que além me espera
No seio do infinito.


Imagem retirada da Internet:Fagundes Varela



Luiz de Miranda - Poema




No coração


Mais que bela
aquela que o poema não deu
e se quebrou
no cristal do bar

Mais que esta
a festa que o amor perdeu
diluindo-se
nas palavras sem voz

Mais que a despedida
a vida que se acende
no coração
com a esperança de quem chega

Imagem retirada da Internet: Ibisco

Jacques Prévert - Poema


Familiale



La mère fait du tricot
Le fils fait la guerre
Elle trouve ça tout naturel la mère
Et le père qu'est-ce qu'il fait le père?
Il fait des affaires
Sa femme fait du tricot
Son fils la guerre
Lui des affaires
Il trouve ça tout naturel le père
Et le fils et le fils
Qu'est-ce qu'il trouve le fils?
Il ne trouve absolument rien le fils
Le fils sa mère fait du tricot son père des affaires lui la guerre
Quand il aura fini la guerre
Il fera des affaires avec son père
La guerre continue la mère continue elle tricote
Le père continue il fait des affaires
Le fils est tué il ne continue plus
Le père et la mère vont au cimetière
Ils trouvent ça naturel le père et la mère
La vie continue la vie avec le tricot la guerre les affaires
Les affaires la guerre le tricot la guerre
Les affaires les affaires et les affaires
La vie avec le cimetière.


Imagem retirada da Internet:: combatente

Francisco Perna Filho - Poema


Geografia


Mando o meu endereço no envelope,
não quero que me respondas,
apenas que me visites.
Certeza  eu não tenho a respeito do rio,
das corredeiras
e do desbotado silêncio de suas lendas.
Mas necessito que venhas,
para eu entender de vez a tua geografia.

Imagem retirada da Internet: mulher

Luiz de Miranda - Poema

Paolo Pagani: Sediaci ženský akt (výrez)
By Paolo Pagani: Mulher nua sentada




Liricamente




O amor na distância
sempre trai
fico sem alicerce
nesse início de abandono
descalço na rua de dentro
do meu próprio amor
que é sabido
mas surpreende
iluminando-me

Amor, espécie de felicidade
passageiro do verão de maio
amor, silêncio de música
assemelhado à cor ao cheiro
às linhas do teu corpo nu


In.Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Instituto Estadual do Livro, 1995, p. 275.

Renato Russo - Poema



Tempo perdido


Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo.


Todos os dias antes de dormir,
Lembro e esqueço como foi o dia:
"Sempre em frente,
Não temos tempo a perder".


Nosso suor sagrado
É bem mais belo que esse sangue amargo
E tão sério
E selvagem.


Veja o sol dessa manhã tão cinza:
A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos.
Então me abraça forte e me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo:
Temos nosso próprio tempo.


Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas agora.
O que foi escondido é o que se escondeu
E o que foi prometido, ninguém prometeu.


Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.


Imagem retirada da Internet: Renato Russo

Jacques Prévert - Poema





PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO



                                                                            Para Elsa Henriquez


Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insectos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.


de “Paroles” (1945)


Tradução de Silviano Santiago




In. Poemas de Jacques Prévert,  Rio de Janeiro: Nova Fronteira - 2000.
Imagem retirada da Internet: Revista Agulha 

Jacques Prévert - Poema


O combate com o anjo



Não vás
Tudo já foi combinado
A luta é fraudulenta
E quando ele aparecer no ringue
Nimbado de relâmpagos de magnésio
Eles entoarão aos berros o TEU DEUM
E antes que te levantes da cadeira
Tocarão os sinos sem parar
Jogarão no teu rosto
A esponja sagrada
E não terás tempo de voar-lhe nas penas
Cairão sobre ti
E ele te golpeará no baixo-ventre
Desabarás
Os braços estupidamente em cruz
Na serragem
E nunca mais poderás fazer amor.


Tradução de Dora Ferreira da Silva



Imagem retirada da Internet: Jacques Prévert

J. Guillén - Poema


Uma Porta



Entreaberta, uma porta.
A quem busca essa luz?
Fluente o claro-escuro.


        Transparente e foge
- Para quem o silêncio -
Um âmbito de clausura.

                       Chama, talvez promete
                  A incógnita. Vislumbres.
                  Pra que sol tal repouso?

        E o trajeto propõe,
Dirige por um ar
Vazio e persuasivo.

         Interior. As paredes
Enquadram bem a incógnita.
Aqui? Nogal, cristal.

                         Um silêncio se isola.
                      Familiar, muito urbano?
                      Cheira a uma rosa diária.

           Porta fechada: longe.
Esta luz é destino?
Então, é face a face...


Tradução de  Dora Ferreira da Silva


Imagem retirada da Internet: Guillén

Allen Ginsberg - Poema





Arte é ilusão, pois eu não ajo


Fico ou Parto – com constante alegria
Meus pensamentos, embora céticos, são sagrados
Santa prece para o conhecimento ou puro fato.

Então enceno a esperança de que posso criar
Um mundo vivo em torno de meus olhos mortais
Um triste paraíso é o que imito
E anjos caídos cujas asas perdidas são suspiros.

Neste estado não mundano em que me movimento
Minha Fé e Esperança são diabólica moeda corrente
Em mundos falsificados, cunho pequenos donativos
Em torno de mim, e troco minha alma por amor.


Tradução Cláudio Willer



Imagem retirada da Internet: Allen Ginsberg

François Villon - Poema




BALADA DA GORDA MARGOT





Se amo e sirvo a dama de bom grado,
Pensareis que sou vil e cabeçudo?
Ela faz tudo que é do meu agrado,
Por seu amor eu cinjo adaga e escudo.
Se vem cliente, a um trago mais graúdo
De vinho me recolho, a um canto perto.
De água, pão, fruta e queijo faço oferta.
“Bene stat” – eu digo a quem mais vaza –
“E volte sempre se embaixo lhe aperta,
Aqui neste bordel que é a nossa casa.”

Mas ocorre que as coisas ficam pretas
Quando sem prata vem dormir Margot.
Mal posso vê-la, de ódio às suas tretas.
Tomo cinto e jaqueta, e o que mais for.
E juro que me servem de penhor.
Ela, punhos nas ancas “Anticristo!”
Grita e jura por Nosso Senhor Jesus Cristo,
Que não dará. Com um pau lhe quebro as asas
E em seu nariz lhe gravo o meu escrito
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Depois vem paz e solta um peido bruto,
Venenoso qual sapo dendrobata.
Logo me acerta, rindo, o cocuruto:
“Vem vem, neném”, nas coxas me arrebata.
E dormimos qual saco de batatas.
Pela manhã quando lhe ronca o ventre,
Monta em mi, antes que se gaste dentro
Seu fruto. Gemo – e em cinza faz-se a brasa:
De tanto futucar, eu me desventro,
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Vente, chova, neve – e o meu pão foi cozido.
Igual às marafonas, sou servido.
Lá, mau gato a mau rato, bem medido –
Lado a lado – se sabe a maior rasa?
Onde lama é amor, amor é lama.
Nem quer-se a honra ou ela nos reclama
Aqui neste bordel que é nossa casa.

Tradução de Sebastião Uchoa Leite





In. François Villon/Poesia. Edusp, 2000
Imagempintura de Fernando Botero, pintor e escultor colombiano.

François Villon - Poema



Balada dos Enforcados




Irmãos humanos que depois de nós viveis.
Não tenhais duro contra nós o coração.
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis.
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada.
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Chamamo-vos irmãos : disso não desdenheis.
Apesar de a justiça a nossa execução
Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis
Que nem todos possuem juízo firme e são.
Exculpai-nos – que mortos, mortos, nos sabeis -
Com o filho de Maria, a nunca profanada;
A sua graça, para nós, não finde em nada,
No inferno não nos venha o raio despenhar.
Ninguém nos atormente, a vida já acabada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;
O sol nos ressequiu até à negridão;
Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! -,
Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.
Em tempo algum tranqüilos nos contempiareis:
Para cá, para lá, o vento de virada
A seu talante leva-nos , sem dar pousada;
Mais que a dedal, picam-nos pássaros no ar.
Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Príncipe bom Jesus, de universal mandar,
Guardai-nos, ou o infemo nos arrecada:
Lá nada temos a fazer, nada a pagar.
Homens, aqui a zombaria é inadequada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


In.Poemas de François Villon. São Paulo: Art Editora, 1986.





João Bonifácio - Ensaio Crítico


 


Raymond Radiguet: o regresso do mais odiado




A vida de Raymond Radiguet foram 20 anos e o tifo a ceifá-lo depois de um jorro de mulheres, escândalo, ódio popular, escrita fria e as inevitáveis comparações com Rimbaud. O seu romance de estreia, "Com o Diabo No Corpo", escrito em idade precoce, volta a estar entre nós.

Foi-se embora com a mesma pressa com que surgiu e enquanto cá esteve nunca abrandou, nunca olhou para trás ou sequer para os lados: escreveu, escreveu e, consta, viveu com a ferocidade dos audazes ou dos escolhidos.

E depois já lá não estava.

Deixou um rasto de escândalo, obras por publicar, amigos fraternais, ódios extremos e amores, muitos amores vividos com celeridade e sangue quente. Com coração frio, dizia Cocteau - seu protector e, constam as más línguas, amante -, mas com sangue quente. Deixou, também, um livro de poesia publicado ainda em vida, bem como um romance, que espoletou iras e o tornou famoso, "Le Diable au Corps" - que finalmente pode ser lido em português, graças à tradução que a Relógio D'Água agora publica. Na sua arca póstuma, pequena em termos pessoanos, jazia um romance inédito mas acabado, "Le Bal du Comte D'Orgel" e mais alguma poesia.

Ainda que escassos como corpo literário, esses dois romances foram mais do que suficientes para inscrever o nome de Raymond Radiguet no cânone ocidental. Chamaram-lhe "o novo Rimbaud", e de entre todos os candidatos ao lugar de novo Rimbaud talvez ninguém tenha desempenhado o papel tão bem. Mas quem não faz os seus juízos depender das suas inseguranças intelectuais, e portanto não submete a sua ordem racional à frigidez marmórea do cânone, pode sempre argumentar que Rimbaud não foi mais do que um adolescente talentoso com propensão para o histrionismo, ao passo que Radiguet - todo ele drama - tinha um raro poder de análise da luta travada entre o Superego e o Id, para usarmos os termos canónicos de Freud. A prova encontra-se não na poesia, mas nas escassas cento e poucas páginas de "Com o Diabo No Corpo".´

Ordem para morrer

"Ouve-me", disse Radiguet a Cocteau numa noite de Dezembro de 1923, "tenho uma coisa terrível a dizer-te: dentro de três noites serei morto por soldados de Deus".

Isto não deve ser lido como um dos típicos mitos românticos que povoam a literatura, tornando-a em pobre circo desses mistérios simplórios a que se reduzem as obras com recurso a adjectivos como "génio" ou " alma ". Isto era o tifo, que apanhou Radiguet aos 20 anos, quando ele já era um romancista conhecido - e rico - à conta de "Com o Diabo No Corpo". Os soldados de Deus vieram pouco depois, a 12 de Dezembro: segundo a descrição de Cocteau, Radiguet disse "A ordem foi dada" e depois acrescentou "Eu ouvi a ordem".

Após mais duas ou três frases sem sentido, Radiguet estava morto. No entanto, em escassíssimo tempo ele tinha conseguido não só atormentar a França que gostava de decoro como também uma boa parte dos indecorosos - entre outros, Hemingway não o gramava nem a tiro, acusando-o de usar o corpo para ascender no reino da literatura. Ao que parece, Radiguet mantinha relações homossexuais com este ou aquele escritor (Cocteau à cabeça) enquanto passeava o seu corpo jovem mas experimentado por todas as raparigas que lhe aparecessem à frente.

Não era uma criança frágil perante o mundo, mas também é inconcebível que fosse um cínico (como à altura lhe chamaram, muito por causa do tom do narrador de "Com o Diabo no Corpo"): a experiência de viver nitidamente espantava-o e tudo em que tocou, tudo o que desejou, sentiu ou pensou, foi alvo de análise. Acontece que Radiguet, tendo o sangue quente (vivendo depressa e muito, ou deixando um cadáver bonito), pensava frio: era um analista sem piedade da experiência humana, retratando sem pudores cada oscilação de humor, cada indício de crueldade ou egoísmo que subjaz às acções de cada indivíduo.

Acerca da sua morte, Cocteau escreveu: "Não acusem o destino. Não falem em injustiça". Estava convencido de que Radiguet pertencia àquela raça que chega, vê, vence e se esvai, num processo de combustão que faz de um dado homem o seu próprio combustível. Há outra razão - menos sentimental - para Cocteau desejar que não se fale em injustiça. É que, escreveu, o coração de Radiguet era "duro e, como um diamante, impenetrável a qualquer toque". O coração de Radiguet precisava de "fogo e outros diamantes" e "permanecia indiferente a tudo o resto".

No entanto, nada na sua genealogia previa tamanhos talentos, tamanha indiferença glaciar perante esse mundo que atravessou a velocidade estrepitosa. Ou pelo menos, nada que saibamos, já que o seu crescimento permanece envolvido em mistério.

Radiguet nasceu em 1903, em in Saint-Maur-des-Fossés, uma terreola a cerca de dez quilómetros de Paris. Pouco mais se conhece da sua infância além da ascendência paterna: era filho de um caricaturista não propriamente célebre. Sabe-se que desde cedo Radiguet escrevia e desenhava, mas não consta que o seu talento para esta última disciplina fosse mais do que razoável.

Era o mais velho de sete irmãos, facto que surge (com maior ou menor precisão no número de irmãos) em "Com o Diabo No Corpo". Não é a única coincidência biográfica entre a obra e a vida. Em "Com o Diabo No Corpo", que, para todos os efeitos, pode ser visto com um romance de iniciação, o protagonista - um adolescente com tremenda consciência de si, que relata os factos na primeira pessoa - não abandona os estudos, mas mesmo assim está livre da escola (à excepção de um breve período): por uma série de razões estuda em casa e tem muito tempo livre para se iniciar nas artes do amor, isto pela simples razão de ser um jovem sobredotado que consegue estudar em quatro horas o que leva aos outros dois dias.

O herdeiro de Rimbaud

Na prática, na vida, corria o ano de 1918 e Radiguet mudou-se para Paris, onde começou de imediato a colaborar com jornais e revistas. Fez parte de círculos artísticos ligados à pintura: Picasso contava-se entre os amigos e Modigliani pintou-o de forma comovente: é no traço elíptico de Modigliani que nos apercebemo da beleza de Radiguet.

Obviamente que, sendo um homem de letras, a poesia também fazia parte da sua dieta e do seu círculo social. Escreveu na revista "Sic", onde pontificavam os surrealistas (Breton e Aragon à cabeça), e pouco depois editava o seu primeiro livro de poesia, "Les Joues En Feu", que saiu em 1920 mas estava acabado desde uns precoces 15 anos. O facto de o livro não lhe ter valido de imediato o epíteto de "génio" tê-lo-á enfurecido, e terá sido aí que nasceram as comparações com Rimbaud: diziam-lhe que até o amante de Verlaine tinha esperado até aos 17 anos para escrever uma obra-prima. No entanto, é incerto que Radiguet tivesse mesmo os poemas escritos aos 15, bem como incerta é a sua reacção (há registos contraditórios).

Aos 20, Radiguet isola-se numa pequena terra perto de Toulon e escreve "Com o Diabo No Corpo". Hoje pensa-se que Cocteau, que por esta altura já era o seu mentor, terá tido um papel essencial na edição do texto. Hoje sabe-se também que por esta altura já abundavam os rumores de que a relação se estendia da mente para o corpo, ao mesmo tempo que se acumulavam alusões a uma certa promiscuidade de Radiguet com o belo sexo e estudos posteriores indiciam que o grau de autobiografia das suas obras ficcionais é maior do que se imaginava - pensa-se mesmo que a famosa cena de "Com o Diabo No Corpo" em que o jovem anti-herói arrasta, por capricho, a sua amante grávida pelas ruas de Paris à chuva seja verdadeira.

Igualmente se diz que "Le Bal du Comte D'Orgel" tem traços similares com a biografia de Radiguet, o que simultaneamente aponta para uma vida guiada pelos prazeres mas possuída por um grau de auto-análise quase cruel. Entre um e outro romance, Radiguet escreveu mais um livro de poemas, "Devoirs de Vacances", e uma peça de teatro em dois actos, "Les Pélicans".

O amor talvez tenha sido o seu grande tema, mas também a indiferença pelas "grandes questões": "Com o Diabo No Corpo" passa-se na Grande Guerra mas não há sinais de demasiada preocupação com o assunto. O narrador faz, aliás, questão de dizer que esse foi o melhor tempo da sua vida, sendo esta uma das razões para o escândalo que o livro causou: um adolescente na cama com a esposa de um combatente, demonstrando uma total indiferença pelos destinos da França, era de mais para os franceses.

Com ou sem guerra, a obra de Radiguet sustém-se no que tem de mais agudo: a auscultação de cada sentimento, o questionar deste, o assumir dos egoísmos e das pulsões, a análise de cada acto como possível jogo mental.

Ao cruel rapaz que com pouca obra inscreveu o seu nome no cânone fizeram o pior que se pode fazer a um corpo: pegaram no seu cadáver e puseram-lhe outra cara. Disseram que era o grande herdeiro de Rimbaud. O tempo encarregou-se de fazer Radiguet desaparecer de todos os mapas, excepto, claro, do mapa da literatura francesa. A Relógio d'Água encarregou-se agora de fazer com que ele voltasse às nossas prateleiras. Esqueçam-se as comparações e o cânone, volte-se às palavras secas, calculadas, cheias de emoção medida, senhoras e presas de uma teia mental que intriga até à última página.

Saudemos portanto o regresso daquele que sabia demasiado e passou demasiado rápido.


Texto originalmente publicado na Revista Eletrônica Portuguesa Ipsilon a propósito do relançamento do livro Com o Diabo no Corpo.

Imagem retirada da Internet: Raymond Radiguet

Marinalva Barros - Poema


POEMA DE AMOR E RIO VI



As digitais de um rio
Tatuaram meu espírito
Sou por isso matizada,
Povoada de estações

Afeita a cidades antigas
E ruas estreitas.
Alinhavada de correntezas. 

Catulo da Paixão Cearense - Poema

O CANGACEIRO




   EU me chamo Sivirino
     Sapiranga, sim, sinhô.
     Sou fio de Zé Fôstino,
     que era fio d’um tropêro,
     Frô dos Santo, meu avô.

Sou naturá de Umbuzêro,
da Paraíba do Norte,
a terra das patativa
que eu amo cum todo o amô
de valente cangacêro!...
apois cangacêro eu sou.

     Não paga a pena, seu moço,
     eu dizê pruquê rézão
     já varei cum a parnaíba
     mais de vinte coração!

Minha históra é atrapaiada,
é toda cheia de ispinho,
e, cumo lá diz o outro,
seu moço, as água passada
já não move mais muinho.

Óie, moço!... Não há munío,
distante um casa de légua
de S. Migué de Traipú,
eu fisguei um cavaiêro,
o fio d’um fazendêro,
cumo quem fisga um tatu.

Esse garoto e canáia
um dia róbou de casa
a neta de um comboêro,
que era um hôme tão bondoso,
e despois, abandonou
aquele anjo fermoso,
cumo se fosse, seu moço,
um cachorro, um cão leproso!!!

Prú té matado o canáia,
a justicia que divía
me té dado uma medáia,
me chama de criminoso!!

               *

     Quando meu pae, que Deus tenha
     no Santo Reno da Glóra,
     ao pé d’um monte de lenha,
     mazômbo, os óio fechou;
     a fia que mais amava
     nestes braço me intregou.

Inda me alembro, seu moço!

Abraçado no pescoço
do véio, que se finava,
eu chorava, eu saluçava,
garrado cum minha érmã,
cumo à boquinha da noite,
chora e geme uma acauã!!

De noite, fazendo quarto,
óiando o pobre do véio,
taliquá, má cumparando,
 — São Pedro cum as barba branca,
 cum os seus cabelo branquinho,
 drumindo o sono da morte
 n’um véio banco de pinho...
 chorava, cumo, sintido,
 o pásso que foi firido,
 cum um tiro, dento do ninho!!

E quando, ao rompe da ôróra,
o véio foi carregado
n’uma rede, istrada à fora’!...
Quando ele foi sipurtado
prú báxo d’uns cajuêro,
ali, naquele momento,
eu fiz este juramento:
me torna n’um cangacêro.

               *

Dêxei meu pae sipurtado,
vortei lanhado de pena,
chorando a sorte tirana!

Mas porém, quando cheguei,
e intrei na minha choupana,
a minha mãe incontrei
cum o coração mais lanhado,
e mais duente que o meu!!

Prá dizê tudo, seu moço,
n’um domingo amarfadado
aquela santa morreu!!!

A morte era naturá!
Despois da morte do véio,
não poude mais suportá!

               *

Meu pae não perdeu a vida
pulos ano!! Não, Sinhô!

Morreu prú via d’um hôme
que era rico e, prú capricho,
uns mulambinho de terra
do pobre véio róbou!

     O jaburu quiz um dia
     que meu pae jurasse farso
     n’uma questã que ele teve
     cum um honrado lavradô.

O lavradô era pobre...

Meu pae, que era um hôme nobre
bateu o pé!... Não jurou.
A Justicia que fazia
tudo o que o hôme quiria,
im mêno de duas hora,
butou o véio prá fora!...
E tudo ansim se acabou!!

Despois que eu vim pró cangaço,
há munto que o tá ricaço
cumigo as conta ajustou!!

               *

óie, moço: vêje lá
se eu tenho rêzão
     ou não.

               *

Um dia, eu táva banzando,
deitado n’uma toucêra
de verde sanacurí,
quando vejo vim, d’ali,
o Antônio dos Picapáu,
amuntado n’um quartáu.


O coração piquinino
sartava, cumo um cabrito!

Vendo o Antônio que era eu,
gritou de lá: “Sirvirino!...
“A tua érmã!...“ Dei um grito,
que o cabôco istremeceu!

Apois, quando eu disse: — “Fala”
ele gritou lá da istrada:
 “Foi trazontônte róbada!!..”
E alevantando a çoitêra,
deu de ispóra no quartáu,
e se assumiu entre as fóia
de duas guapurinhêra!!

               *

Três dia andei a percúra,
atraz do tarapantão,
(o fio d’um figurão...)
mato abáxo, mato arriba,
e só discansei, seu moço,
quando eu tirei o pirão
do buxo daquele cão,
cum a ponta da parnaíba.

               *

 Gibão e chapéu de côro
 n’uma orêia derribado;
 um guarda-peito de onça
 no peito sarapintado;
 cravinóte sêmpe iscravo
 dos bom, cumo vassuncê,
 aqui tá um cangacêro,
 mas um cangacêro honrado,
 taliquá, cumo me vê.

Fonte: ebooksbrasil.org
Imagem retirada da Internet: cangaceiro

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