Giorgio Agamben - Ensaio



Transcrevemos aqui este ensaio
até hoje inédito em espanhol e português, publicado pelo jornal Clarín, em 21-03-09, o qual estava disponível na página do Instituto Humanitas Unisinos. A tradução é de Moisés Sbardelotto.




O que é ser contemporâneo?
A visão de Giorgio Agamben





1.

A pergunta que eu gostaria de inscrever no início deste seminário é: "De quem e de que somos contemporâneos? E, sobretudo, o que significa ser contemporâneos?". (...) De Nietzsche, vem-nos uma indicação inicial, provisória, para orientar nossa busca por uma resposta. (...) Em 1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que havia trabalhado até então em textos gregos e, dois anos antes, havia alcançado uma celebridade imprevista com "A origem da tragédia", publica as "Considerações Intempestivas", com as quais quer acertar contas com o seu tempo, tomar posição com relação ao presente. "Intempestiva é essa consideração", lê-se no começo da segunda Consideração, "porque tenta entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se sente orgulhosa, ou seja, sua cultura histórica, porque penso que todos somos devorados pela febre da história e deveríamos, pelo menos, nos dar conta disso".

Nietzsche situa, portanto, sua pretensão de "atualidade", sua "contemporaneidade" com relação ao presente, em uma desconexão e em uma defasagem. Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com aquele, nem se adequa a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas, justamente por isso, a partir desse afastamento e desse anacronismo, é mais capaz do que os outros de perceber e de apreender o seu tempo.

Essa não-coincidência não significa, naturalmente, que seja contemporâneo quem vive em outra era, um nostálgico que se sente mais cômodo na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe coube viver. Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe que irrevogavelmente lhe pertence, sabe que não pode fugir de seu tempo.

A contemporaneidade é, pois, uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, toma distância dele. Mais exatamente, é "essa relação com o tempo que adere a este, por meio de uma defasagem e de um anacronismo". Os que coincidem de um modo excessivamente absoluto com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, justamente por essa razão, não conseguem vê-la, não podem manter seu olhar fixo nela.

2.

Em 1923, Osip Mandelstam escreveu a poesia "O século" (a palavra russa vek significa também "época"). Ela contém não uma reflexão sobre o século, mas sim sobre a relação entre o poeta e seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Não o "século", senão, segundo o primeiro verso, "meu século" (vek moi):

Meu século, minha besta, há alguém que possa
Esquadrinhar em teus olhos
E soldar com seu sangue
As vértebras de dois séculos?

3.

O poeta, que devia pagar sua contemporaneidade com a vida, é quem deve manter o olhar fixo nos olhos de seu século-besta, soldar com seu sangue a coluna quebrada do tempo. O poeta – o contemporâneo – deve manter o olhar fixo em seu tempo. Mas que vê quem vê seu tempo, o sorriso demente de seu século? Gostaria aqui de lhes propor uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo em seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas sim as suas sombras. Todos os tempos são para quem experimenta sua contemporaneidade, escuros. Contemporâneo é quem sabe ver essa sombra, quem está em condições de escrever umedecendo a pena nas trevas do presente. Mas o que significa "ver a escuridão", "perceber a sombra"?

Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos em um ambiente sem luz, ou quando fechamos os olhos? O que é a sombra que vemos nesse momento? Os neurofisiologistas dizem-nos que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, chamadas, precisamente, deoff-cells, que entram em atividade e produzem essa espécie particular de visão que chamamos de sombra. A sombra não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência de luz, algo como uma não visão, mas sim o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina. Isso significa (...) que perceber essa sombra não é uma forma de inércia ou de passividade, mas sim de algo que implica uma atividade e uma habilidade particulares, que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir sua escuridão, sua sombra especial que não é, de todos os modos, separável dessas luzes.

Pode se chamar de contemporâneo só aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século e que é capaz de distinguir nelas a parte da sombra, sua íntima escuridão. Com isso, porém, não respondemos a nossa pergunta. Por que o fato de poder perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Por acaso, a sombra não é uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está dirigido a nós e não pode, portanto, nos incumbir? Pelo contrário, contemporâneo é aquele que percebe a sombra de seu tempo como algo que lhe incumbe e que não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que qualquer luz, se refere direta e singularmente a ele. Quem recebe em pleno rosto o feixe de trevas que provém de seu tempo.

4.

No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem rodeadas por uma espessa penumbra. Tendo-se em conta que há no universo um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, a sombra que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, requer uma explicação. Gostaria de falar agora da explicação que a astrofísica contemporânea dá para essa sombra. No universo em expansão, as galáxias mais remotas de afastam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não pode chegar a nós. O que percebemos como a sombra do céu é essa luz que viaja extremamente veloz até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais ela provém se afastam a uma velocidade superior à velocidade da luz. Perceber essa luz que tenta nos alcançar, e não pode, na escuridão do presente: isso significa ser contemporâneo. Daí vem que ser contemporâneos é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capazes não apenas de manter o olhar fixo na sombra da época, mas também perceber nessa sombra uma luz que, dirigida até nós, se afasta infinitamente de nós. Isto é: chegar pontualmente a um encontro ao qual só é possível faltar.

Por isso, o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas. Nosso tempo, o presente, não é só o mais distante: não pode nos alcançar de maneira nenhuma. Ele tem a coluna quebrada, e nos encontramos exatamente no ponto da fratura. Por isso, somos, apesar de tudo, seus contemporâneos. O encontro que está em questão na contemporaneidade não ocorre simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge em seu interior e o transforma. Essa urgência é o intempestivo, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um "muito cedo" que é, também, um "muito tarde", de um "já" que é também um "ainda não". E reconhecer, nas trevas do presente, a luz que, mesmo sem nunca poder nos alcançar, está permanentemente em viagem até nós.

5.

Um bom exemplo dessa experiência especial do tempo que chamamos de contemporaneidade é a moda. O que define a moda é que ela introduz uma descontinuidade no tempo, que o divide segundo sua atualidade ou falta de atualidade, seu estar e seu não estar mais na moda (na moda, e não simplesmente de moda, que alude só às coisas). Apesar de ser sutil, essa divisão é clara: os que devem percebê-la infalivelmente a percebem e, dessa forma, certificam seu estar na moda. Mas se tratar-*mos de objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível. Sobretudo o "agora" da moda, o instante em que começa a ser, não é identificável por nenhum cronômetro. Esse "agora" é o momento em que o estilista concebe o traço, o matiz que definirá a nova forma das peças? Ou no qual ele a confia ao desenhista e depois à costureira que confecciona o protótipo? Ou, melhor, o momento do desfile, onde a peça é levada pelas únicas pessoas que estão sempre e somente na moda, as manequins, que, no entanto, justamente por isso, nunca o estão realmente? Porque, em última instância, o estar na moda da "forma" ou da "maneira" dependerá do fato de que as pessoas de carne e osso, diferentes das manequins – vítimas sacrificiais de um deus sem rosto – a reconheçam como tal e a convertam em sua vestimenta.

O tempo da moda está, portanto, constitutivamente adiantado a si mesmo e, por isso, também sempre atrasado; sempre tem a forma de um limiar inapreensível entre um "ainda não" e um "já não". É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que a moda, pelo menos em nossa cultura, é uma signatura teológica do vestido que deriva da circunstância de que a primeira peça de vestuário foi confeccionada por Adão e Eva depois do pecado original, na forma de um pano entrelaçado com folhas de figueira. (As peças que vestimos derivam não desse pano vegetal, mas das "tunicae pelliceae", dos vestidos feitos com peles de animais que Deus, segundo Gênesis 3, 21, faz com que nossos progenitores vistam, como símbolo tangível do pecado e da morte, no momento em que os expulsa do paraíso). Em todo caso, além da razão, o "agora", o "kairos" da moda é inapreensível: a frase "estou na moda neste instante" é contraditória, porque, no segundo em que o sujeito a pronuncia, ele já está fora de moda.

Por isso, o estar na moda, como a contemporaneidade, comporta certa "soltura", certa defasagem, em que sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte de sua parte de fora, um sabor de démodé. Nesse sentido, dizia-se de uma senhora elegante na Paris do século XIX: "Elle est contemporaine de tout le monde". Mas a temporalidade da moda tem outro caráter, que a assemelha à contemporaneidade. No próprio gesto em que seu presente divide o tempo segundo um "já não" e um "ainda não", ela cria com esses "outros tempos" – certamente com o passado e talvez também com o futuro – uma relação particular. Ela pode, vale dizer, "encontrar" e, dessa maneira, reatualizar qualquer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda império ou neoclássica). Pode, portanto, colocar em relação o que dividiu inexoravelmente, voltar a chamar, reevocar e revitalizar o que havia declarado como morto.

6.

Essa relação especial com o passado tem outro aspecto. A contemporaneidade se inscreve no presente marcando-o sobretudo como arcaico, e só quem percebe no mais moderno e recente os indícios e as signaturas do arcaico pode ser seu contemporâneo. Arcaico significa: próximo do "arché", ou seja, da origem. Mas a origem não está situada só em um passado cronológico: é contemporâneo ao devir histórico e não cessa de funcionar nele, como o embrião continua atuando nos tecidos do organismo maduro, e o bebê, na vida psíquica do adulto. A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade que definem a contemporaneidade têm seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto bate com tanta força como no presente. (...)

Os historiadores da literatura e da arte sabem que, entre o arcaico e o moderno, há um encontro secreto, e não tanto por causa do fato de que as formas mais arcaicas parecem exercer no presente um fascínio particular, mas sim porque a chave do moderno está oculta no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo, em seu final, se volta, para se reencontar, para as origens: a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. Nesse sentido, justamente, pode-se dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia. Que não retrocede, porém, a um passado remoto, mas sim ao que, no presente, não podemos viver de nenhuma forma e, ao permanecer no vivido, é incessantemente reabsorvido para a origem, sem nunca poder alcançá-lo. Porque o presente não é outra coisa que a parte de não-vivido em cada vivido, e o que impede o acesso ao presente é justamente a massa do que, por alguma razão (seu caráter traumático, sua proximidade excessiva) não conseguimos viver nele (...).

7.

Os que tentaram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo só à custa de dividi-la em mais tempos, em introduzir no tempo uma des-homogeneidade essencial. Quem pode dizer "meu tempo" divide o tempo, inscreve nele uma divisão e uma descontinudiade: e, no entanto, justamente por meio dessa divisão, essa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo instala uma relação especial entre os tempos.

Mesmo que, como vimos, o contemporâneo é que abriu as vértebras de seu tempo (ou percebeu a falha ou o ponto de ruptura), ele faz dessa fratura o lugar de encontro entre os tempos e as gerações. Nada mais exemplar, nesse sentido, do que o gesto de Paulo de Tarso, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos essa contemporaneidade por excelência que é o tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama de "tempo de agora" ("ho nyn kairos"). Não só esse tempo é cronologicamente indeterminado (...), mas também tem a capacidade singular de relacionar consigo mesmo cada instante do passado, de fazer de cada momento ou episódio do relato bíblico uma profecia ou uma prefiguração ("typos", figura, é o termo preferido de Paulo) do presente (assim Adão, por meio de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado, é o "tipo" ou figura do messias, que traz aos homens a redenção e a vida).

Isso significa que o contemporâneo não é só quem, percebendo a sombra do presente, apreende sua luz invendável. É também quem, dividindo e interpolando o tempo, está em condições de transformá-lo e colocá-lo em relação com os outros tempos, ler nele a história de maneira inédita, "encontrar-se" com ela segundo uma necessidade que não provém absolutamente de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode deixar de responder. É como se essa luz invisível que é a escuridão do presente projetasse sua sombra sobre o passado, e este, tocado por seu feixe de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.

Michel Foucault devia ter algo semelhante em mente quando escrevia que suas indagações históricas sobre o passado são só a sombra projetada por sua interrogação teórica do presente. E Walter Benjamin, quando escrevia que o signo histórico contido nas imagens do passado mostra que estas alcançarão a legibilidade só em um determinado momento de sua história. De nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência e a essa sombra, de ser contemporâneos não só do nosso século e do "agora", mas também de suas figuras no texto e dos documentos do passado, dependerão o êxito ou o fracasso de nosso seminário.


Fonte Unisinos
Imagem retirada da Internet: Giorgio Agamben

Antônio Cícero - Ensaio




O que é poesia?

Por Antônio Cícero


"Dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas"



O Poeta Edson Cruz perguntou "O que é poesia?" a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta diferente, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a poesia. O resultado se transformou num livro.

Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a poesia é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no grau de escritura de um texto. A ideia é que um poema (bem) realizado é um texto dotado de um altíssimo grau de escritura.

Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do discurso escrito, em oposição ao oral. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:

1. Enquanto o discurso oral é efêmero, o discurso escrito tem uma permanência indefinida; 2. enquanto o discurso oral é fluido e aberto, isto é, está sempre em movimento, como a vida, e sujeito a mudar a todo instante, o discurso escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança; 3. enquanto o discurso oral se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o discurso escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.

Pois bem, embora todo discurso tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.

Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o destino não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz respeito à primeira característica do discurso escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira característica, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de significar a permanência plena ou concreta do seu texto.

Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada igualmente por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é bem assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu como as transformações pelas quais ele passou antes de ficar pronto.

Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros como numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer como se fosse um desenho animado. Ele pareceria, então, fluido como uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a adicionar fotogramas a essa fita, ele pareceria também aberto como uma fala.

Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.

Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor -atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É assim que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber "dizer muitas mentiras parecidas com a verdade".

Pois bem, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo como o dizem. Como não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode dizer em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz respeito a um poema, parece-me em geral menos apropriado falar de "tradução" do que, como dizia Haroldo de Campos, de "transcriação".


In.Ilustrada. Folha da São Paulo,São Paulo, sábado, 03 de abril de 2010

Brasigóis Felício - Ensaio Crítico


O decote de Vênus


por Brasigóis Felício*



Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.

Gilson Cavalcanti escreve versos simples mas não simplórios. Ele tem domínio do verso, tem humor, sabedoria, e uma verve meio satírica, o que o faz palatável aos viventes humanos dotados de sensibilidade e recepção para a arte poética. Já pelo título se vê que todo o livro tem como tema único o plural universo feminino. O poeta abre o volume com um texto da poetisa Yêda Schmaltz, a quem homenageia mais uma vez, no corpo do livro: “Esta vontade de morder o mundo/e o mar que me afoga/as mulheres estão continuando/no sofrimento do amor,/que droga/mulher não presta para nada/a não ser para chorar/”. (In Baco e as Anas Brasileiras).

Já na abertura do livro Eva toma a palavra, sendo a voz narradora constante: “Sou Eva/a viva flor primeva/a que desceu do paraíso/a par do que precisa consertar/Sou Eva/doida doida/doidivana, doidivina/a que se dividiu na dor/parindo outras dores/ Fui Eva/ de cama mesa e banho/meu corpo não tem tamanho/e trago na carne hipocondríaca/contorcida entre costelas/a serpente entretelada de estrelas/”. Depois de outras pérolas, uma pitada de ironia: “O meu corpo/arado aos dentes/para o caminho das estrilas/sou Eva e vivo/de semear a semente/no sutiã dos conventos/a mulher de quatro elementos/para o espetáculo da nova era/”.

No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.

Esmera-se em ricas metáforas, em seu poetar sobre o mito e o fascínio do feminino – e mesmo a essencialidade de ser reprodutora e útero da vida, o poeta não endeusa, não mitifica – mas questiona, espicaça, como no poema A mulher e o espelho: “De frente ao espelho/os seios hiperbolizados na mão/como quem semeia fruta-pão;em pleno outono/(...) Por que tudo o que é feminino/cheira a naftalina?/. (...) O vestido de noiva/o hímen complacente/que guardo de presente/ao amado:/o gesto transparente/escorrendo na grinalda do tempo/”. Poesia rica em imagens, inventiva, cheia de verve.

Mais adiante, o poeta questiona o sulco dos hábitos de sua musa, real ou imaginada pela licença poética: “O que guardas/debaixo desse hábito de cambraia, mulher?/A castidade da fé, ou o ferrolho do prazer?”. Gilson Cavalcanti permite-se a licença poética de brincar com os versos popularizados na canção de Ataulfo Alves, sobre Amélia, a mulher sem vaidade: “De verdade, Amélia era a melhor/porque despida de menor vaidade/de Amélia a Maria Bonita,/ a boca maldita da contrariedade/”. No poema Cabra da peste, uma mostra de sua verve bem humorada:”Maria da Guarda/é neta da noite/bebe até ficar rica/compra briga por açoite/”.

Há uma hora marcada para o encontro do tempo dos relógios, e com os perigos vertiginosos do sexo? O poeta reflete: “Sem horas/atrás do amor/rumo adiantado/A ausência/adia a cor do pecado./Há dias, os ponteiros do meu sexo/apontam para o seu sexo/Qual dia acerto? São pitadas de brincanagem, adicionadas, como ervas finas, à geléia geral da linguagem – que vem a ser a alquimia da transfiguração do verbo, na criação poética.

Eu digo: elas por elas tivemos Elis/que só não foi feliz/por que não quis?/Mais leve de fardo foi Leila Diniz: o montão de areia para o caminhãozinho dos homens. G.C diz: “Leila Diniz encheu a pança/e foi desfilar no Leblon/em Copacabana/virou a cabeça dos homens/e desfez as mulheres/de suas saias de nuvens e areia/(...) o seu vôo foi tão leve/que a levou/para o umbigo do cosmos/de forma tão breve/”. Elis por Elis, tivemos uma, inquieta e vibrante: uma Regina sem medo de querer ser feliz.

Tanto agitou, em sua mente vertiginosa, e em seu corpo pequeno, que implodiu, numa overdose dantesca: foi nitroglicerina pura. Sendo de voz tão afinada, como explicar que não levou sorte, nem teve engenho e arte na afinação da arte de viver em paz, apesar da angústia inerente a todo Ser? Também, pudera: se desde criancinha, lá em Porto Alegre, já desafinava no coro dos contentes, é de se espantar que não tenha atravessado o samba muito antes. O poeta Gilson Cavalcanti confirma: “Sua voz/cascata de cristal/convocando a canção amiga/agora, um outro Tom/a faz equilibrar-se/na bossa etérea/entre Vinicius e Jobim/”. Esta Elis que foi a melhor intérprete de O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.

Ao final, recordando tantas partidas sem aviso e sem despedida, antes de lamentar que Elis tenha partido, é melhor re-cordar (tornar ao coração) que apareceu não a Margarida, e sim a sua Maria Rita, para animar a festa, segundo G.C. No poema Terezuda, mais um instante de alegre erotismo: “A beleza de Tereza/não se põe na mesa/Tetê se abunda/em bicicleta/é tesão de sobra/na padaria de meus olhos/Vem, Tetê, testar/a massa que nos promete o pão!’. E vai G.C. na carruagem da mesma malícia: “Kátia, de onde trouxestes/essas pernas tão lindas?/Drummond não teve acesso a elas/teria morrido de tanta poesia/”. O poeta Gilson Cavalcanti fecha o seu livro O decote de Vênus revelando-se pronto a encenar o último ato no drama de existir: “Completamente nu/nu de tudo, de todos/ (...) Fecham-se as cortinas,/porque a vida vai começar/do outro lado do espelho/”.


* Brasigóis Felício é poeta, cronista, e Membro da Academia Goiana de Letras.

Imagem: Zacarias Martins

Valdivino Braz - Poema












Chão de ausências

O vento varreu os rastros
e apagou deste lugar os sinais
da nossa presença.
Sou estranho nesta terra, minha mãe,
e piso um chão de ausências.

Arrancaram-me as raízes
e as curicacas, meu pai,
e não sei dos meninos meus irmãos,
soltos no mundo,
feitos filhos de ninguém.

Entre os esteios da casa desmoronada,
vasculho e recolho de tempo vestígios
- quase nada - das origens
e do que fomos outrora,
neste solo sáfaro
de nós.

Só escombros, minha mãe,
e a solidão
das macaúbas.


In. A palavra por desígnio.
Imagem retirada da Internet: Perdida

Valdivino Braz - Poema

Com este poema, encerramos a trilogia Blues, uma experiência simbolista muito interessante de Valdivino Braz, um dos mais criativos poetas brasileiros. Sejam todos bem vindos a participar com sugestões interessantes no campo da literatura: poemas, contos, crônicas e ensaios. Boa leitura!




ÂMBAR E BLUES


PÊNDULAS LÂMPADAS

BÊBADAS BALADAS BADALADAS

MADRUGADAS NO BAR DOS BARDOS


CAMPÂNULAS E CALÊNDULAS

NOCTÂMBULAS PALABRAS

QUE SE DESDOBRAM

DE SUAS DOBRAS


LÂMINAS

PUSILÂMINES

SONÂMBULAS SÍLABAS

SIBILADAS


TRAGOS AMARGOS

VIDAS PERDIDAS

NAS NOITES DE TUDO

COM AS BAGAS DE SEUS NADAS


VÂNDALAS MARIPOSAS

KAMIKAZES DA LUZ

SOBRE AS MESAS

EM COPOS DE ÂMBAR

E BLUES






Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema




O TRISTE FIM DE JOE BLACK



Joe Black se enrabichou com Suzana,

uma leoa lá em Louisiana,

mas não deu certo com aquela dona,

e se embeiçou por uma loura no Missouri.

Conheceu tudo que havia de bom e de ordinário

em suas belas e louras aventuras.


Agora o seu negócio é roer o osso de tudo isso,

feito um velho cão deitado num canto da calçada,

um sujeito caído de mau jeito à beira do meio-fio,

ou ali de pé a contemplar o rio e a balançar o corpo,

como se fosse o balanço de um relógio no tempo frio.


Com o rosto oculto na sombra de seu chapéu preto,

Joe Black sempre gunguna,

que não quer mais se meter com loura nenhuma.

Prometendo um dia se jogar no rio

de águas tão profundas quanto suas mágoas,


prometendo se jogar por tudo isso,

prometendo se jogar no rio e acabar logo com isso.

Não faça isso. Há quem lhe peça,

mas já sabendo que ele fará exatamente isso.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!


Dia virá depois de um tremendo pileque

em que ele fará exatamente isso,

pro fundo do rio com os seus gemidos e resmungos,

pra misturar seu corpo negro com os murmúrios do mundo,

pra correr mundo com a água turva e turbulenta de tudo.


Pobre Joe Black!

Pobre Joe Black!



Imagens retiradas da Internet

Valdivino Braz - Poema


Melancholy Blues


B.B. Pinga Made in Brazil num bar azul do Tennessee,
um desses barzinhos chinfrins, como tantos por aí.
B.B. Pinga no King Creole em New Orleans,
onde o Elvis cantou praquele filme Balada Sangrenta.
Também bebi ali pelos bares da Carolina do Sul,
perdi minha alma numa tarde cor de mostarda e magenta,
my soul que se escondeu do sol,
numa bebedeira por causa de Mary Blues.


B.B. Pinga com os negros meus irmãos
dos campos de algodão
e das terras lamacentas do Mississippi,
onde fui perseguido e espancado por membros da Klan.
Quem me dera ser grego e levar a vida na flauta de Pã!


Andei por outras bandas, bebi no Alabama e era só lama,
lodo negro o coração dos brancos
nos sombrios pântanos do Alabama.
É, brother, me embriaguei feito um gambá, se quer saber,
ouvindo B.B. King cantar Nobody loves me but my mother.


Bebi uns tempos com uma prostituta decadente,
que gostava de mim, minimizava-me a dor latente
e consolava minha pobre alma doente.


Let’s go, Baby, eu dizia praquela vadia minha amiga,
que adorava John Lee Hooker e entrou na minha vida.
Tire a blusa, tire o jeans, tire a calcinha, maninha.
Abra seu livro, your pocket bock, com as pétalas do poema.
Mostra, meu amor, a borboleta na flor de suas pernas.


B.B. Pinga até dançar um rock num barzinho de New York,
e lá pelas tantas cantei Tamborim Man com Bob Dylan,
que me presenteou com o seu livro Tarântula.
Lá em Atlanta me jogaram na cara que isso era mentira.


Ainda em New York declamei poemas de Dylan Thomas
e de Eliot, o poeta da terra devastada.
Tive a língua travada pelo nome de J. Alfred Prufrock
e me senti assim um dos homens ocos de Thomas Stearns,
onde se acrescenta o que falta ao próprio Eliot.


É, brother, enchi mesmo a cara em New York,
ouvindo Liza Minelli cantar New York, New York.
Era fim de noite e de repente me lembrei da morte do pássaro,
The Bird, como era chamado o nosso Charlie Parker.


B.B. Pinga até cair morto e virem bater à minha porta
os frios ventos do Norte a me chamar
com a voz negra e gutural do corvo Edgar.


Eram noites geladas
naquele inverno da nossa desesperança.
Eu lia o romance de Steinbeck
e ouvia na rua os gritos de Florence:
Fuck you, Joe Black! No maior pileque,
a velha e doida Florence com o seu chapéu de flores
e os mendigos lá fora,
se esquentando ao fogo dos tambores.


B.B. Pinga feito mosca de bar e me danei.
Me dei mal com o melô da minha melancolia no Barfly,
e me mandei com Robert Johnson praquela encruzilhada.
Topei um solo de viola em duelo com o Diabo,
perdi a parada, bebi uma caixa-d´água de pinga
e te digo, irmão, que a vida é mesmo uma íngua.


Minha vida ao desalento é um velho sax em surdina,
lamento perdido na madrugada,
tocado de uma sacada para os telhados do Brooklin
e do Bronx e do Harlem.


Ó my mother, estou indo, estou voltando pra casa.
Sofro de delírios, ando vendo coisas,
estranhas coisas como um bebê de regresso às tuas entranhas,
o bastardo que sou de um pai negro que se afogou
no lago profundo de teus olhos azulegos, ó mãe.


Estou a caminho,
sozinho com a minha gaitinha de blues a tocar.
De volta ao lar, de volta ao lar,
pois todo caminho é circular.


Andarilho pelos trilhos do destino,
vou indo nesse trem de viajantes clandestinos,
e esse trem a me levar vai me deixar no fim da linha,
de parelha com o riozinho onde tudo começa
e só regressa com o fim do dia a se acabar.
Já não demora mais a hora de chegar, mãezinha.


Mamãe, mamãe, estou aqui.
Estou bem aqui, mamãe.
Cansado de tudo,
não quero mais perambular pelo mundo.
Nunca mais.
Never more.
Nem que eu olhe pra trás.
Nem que eu chore
e me desespere pra voltar.
Nem por amor.
Não quero.
Não quero mais.


O corvo me espanta e me persegue feito alma penada,
querendo que eu pague a conta de tudo com a minha vida.
Tenho pavor do corvo Edgar,
que se acabou de tanto beber,
e no entanto era o grande Edgar Allan Poe,
o grande Allan Poe,
o grande Edgar.


B.B. Pinga num barzinho do meu bairro no Brasil,
ouvindo B.B. King e viajando pelas bandas do Blues,
voltando no tempo sem sair do lugar em pleno ano 2000.
Daí compus o blues da longa história que se ouviu,
um pouco também ao som de John Lee Hooker,
e talvez seja este o mais longo dos blues,
indo de trem até chegar ao Guinness Book.





Imagens retiradas da Internet

Floriano Martins - Poema


Blacktown hospital, bed 23

6.

Releio tuas sombras mergulhadas na noite.
As que me afagam por dentro em horas mortas.
Desconheço os planos do bisturi, seus adágios,
o pavio deixado à mostra para que sangre a espreita.
Em nome do céu a caça desterrada.
A água da terra no olhar faminto.
Vislumbro o enigma do fósforo,
a arte elementar dos sapatos deixados sob a cama.
Olho à volta e revejo cada metáfora.
Ignoro os mosaicos que não percorremos.
Vomito fezes, negrume de veias ressecadas,
uma herança de dores sobre a terra.
Persiste o pesadelo de tua voz agonizante,
prece implacável, prece de lábios rasgados em que duvidas
que o morto sou eu e uma revoada de anjos
aceita o demônio que levas contigo.
A letra golpeada, a realidade indefinida,
e vens por baixo do lençol
transbordar-me de abandono e fadiga.
Uma atrocidade mística que me tira o sono,
e retalha a miúda esperança.


In. Campos queimados (Inédito).Fonte: Grupomultifoco. Fotografia retirada da Internet: Floriano Martins

Vinicius de Moraes - Poema



















Marcha de quarta-feira de cinzas




Acabou nosso carnaval
Ninguém ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações
Saudades e cinzas foi o que restou.


Pelas ruas o que se vê
É uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando
Dançando e cantando cantigas de amor.


E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade...


A tristeza que a gente tem
Qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança
Contente da vida, feliz a cantar.


Porque são tantas coisas azuis
Há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar de que a gente nem sabe...


Quem me dera viver pra ver
E brincar outros carnavais
Com a beleza dos velhos carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz.



Imagem retirada da Internet: Drama

Francisco Perna Filho - Ensaio Curto


Qua me stultitia insanire putas?*


Por Francisco Perna Filho



Natural é ser diferente, poder dizer o que se sente, o que se pensa; fugir dos lugares comuns, sondar o próprio abismo existencial e comungar com os seus pares, com a aflição do mundo, com o dilúvio de ausências e não responder ao chamado dos manipuladores. Eis um traço de insanidade que muitos carregam, mas poucos conseguem alimentar o seu desconserto diante do mundo.

Os loucos atendem aos chamados interiores, dizem não à exterioridade. Não refletem o tempo, ousam; não alimentam esperanças, vivem; não se prendem a nada, celebram. São defensores da vida libertária e plena. As suas mentes são as suas sentenças. O medo não existe, a distância é inócua. O vício não tem cabresto. Eles, os loucos, avolumam-se como caixas empilhadas, são muitos, são múltiplos, apesar de tudo isso, ou por serem assim, são ternos, mesmo que não saibam.

A loucura está mais presente no mundo do que se pensa, manifesta-se no mais recôndito dos seres, na hora imprecisa, não tem cerimônia, não se atrela a nada, basta que algo que desconhecemos a motive e, deliberadamente, ela nos chega, toma conta, desconserta, desestabiliza e, por ser assim, muitos não conseguem divisá-la, não compreendem a sua linguagem, o seu discurso.

Somente os loucos, os leves de espírito, os pensadores, os poetas, os artistas e, lógico, os psiquiatras e psicólogos (nem todos, claro!)conseguem conviver com ela. Erasmo de Rotterdã lhe dedicou um belo ensaio: Elogio da Loucura; Michel Foucault escreveu A História da loucura; Cervantes, magistralmente, criou um dos personagens mais maravilhosos e insanos da literatura universal: Don Quixote, O cavaleiro da triste figura; Machado de Assis,em O Alienista, nos brinda com Simão Bacamarte e a sua Casa Verde; Fernando Sabino, seguindo a modalidade picaresca, também aborda o tema, em O Grande mentecapto, Sem falar na genialidade, inexplicável, de Fernando Pessoa, com seus heterônimos, com sua loucura literária e o seu desassossego:“toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.”

Todos eles, pensadores e artistas, especularmente refletem o seu tempo, os seus pares, os seus anseios. Traduzem a natureza humana e o abissal caminho que percorrem. Convivem com a fúria humana, com a aparência das coisas e as suas manifestações.

Se ser louco é rebelar- se, ser são é mover-se socialmente. É buscar o equilíbrio, é apascentar os lobos da discórdia, analisando os possíveis passos que se vai dar. Ser paciente e ser compreensivo, é olhar com profundidade os acontecimentos. É ser paciente e obediente e adaptar-se às mais variadas situações do dia-a-dia, aos absurdos presenciados nas ruas, nas repartições públicas, em todo tipo de descaso para com o cidadão, na relação diária com os seus pares.

Ser são é aceitar ser governado por incompetentes, é dizer que Michael Moore é um pensador, que essa porcaria que é veiculada nas emissoras de rádio é música, que o conceitual, nas instalações absurdas, é arte; que candidatos prestam contas ao tribunal eleitoral, que o Carrefour vende barato e que as universidades públicas são para pobre.

Ser são ou não, eis a questão! A rima é pobre, mas a questão é séria: de que lado estamos? De que lado você está? Nada melhor do que se olhar no espelho, se você for diferente...

* “De que loucura julgas tu que eu sofra?”

Imagem: Stultifera Navi, de Sebastian Brant.


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